Há cerca de 400 milhões de anos, durante o período Devoniano, no que provavelmente seria uma pequena lagoa de água doce, algures numa zona tropical do mundo, um peixe fez um som que iniciou uma tremenda cadeia de eventos que culminou consigo e comigo a nascermos.
O som era o de ar a ser sugado, enquanto o peixe levantava a boca acima da superfície da água, desesperado por repor os níveis de oxigénio na sua corrente sanguínea. Rapidamente, engolir ar fresco tornou-se uma necessidade, uma vez que as brânquias não conseguiam fornecer oxigénio suficiente para que as águas tépidas e barrentas sustentassem a actividade animal. A sua bexiga, que até então ajudava a manter a flutuabilidade a nadar, começou a funcionar como um órgão de trocas gasosas, uma versão primitiva dos pulmões. Ao mesmo tempo, a pélvis e peitoral do peixe ficaram mais resistentes e a sua ligação ao resto do esqueleto mais capaz de elevar o corpo acima do substrato. Com estas duas etapas, o palco para a conquista de terra dos vertebrados ficou definido.
O som de um antepassado ancestral deste peixe-pulmonado (Protopterus annectens) a inspirar o seu primeiro bafo de ar significou um momento crucial na história da vida na Terra. O surgimento deste comportamento, juntamente com o desenvolvimento de quatro membros, preparou o terreno para a conquista de habitats terrestres pelos vertebrados e para a evolução de todos os tetrápodes.
Desde que pela primeira vez pisei o solo do Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, tenho andado obcecado pela ideia de encontrar o meu primo vertebrado vivo mais antigo, o peixe-pulmonado (Protopterus annectens).
Apesar do seu físico despretensioso, lembrando o de uma enguia grande, o peixe-pulmonado ocupa um lugar especial na história da vida na Terra. Desde sempre que os biólogos suspeitaram que o peixe-pulmonado nos dava uma percepção da origem dos vertebrados terrestres, mas foi apenas no ano passado que uma intensa análise filogenética molecular provou, com base em 251 genes(!), que o peixe pulmonado é um táxon irmão de todos os tetrápodes - anfíbios, répteis, aves, o leitor que me está a ler e o resto dos mamíferos. Anteriormente, este lugar era reservado ao Celacanto, um peixe marinho igualmente de proveniência antiga, mas agora, parece que o celacanto é um desdobramento de peixes anterior, que traçaram o seu próprio caminho igualmente interessante, ainda que menos crucial.
O meu primeiro encontro com o peixe-pulmonado ocorreu há uns meses atrás, quando me cruzei com um pescador que havia apanhado alguns destes animais. Infelizmente, no momento em que o conheci, estava morto e eviscerado, o que me deixou de coração partido e ainda mais obcecado. Nessa vez, deixei bem claro para quem quisesse ouvir que eu queria um peixe pulmonado vivo e, na semana passada, um pescador da aldeia de Vinho veio finalmente entregar-me um em mãos.
No Parque Nacional da Gorongosa, os peixes-pulmonados são comuns ainda que raramente vistos. Habitam poças de água sazonais e durante a estação seca, quando a poça evapora, os peixes-pulmonados enterram-se na lama e estivam por vários meses. Durante este período, os seus valores metabólicos caiem em cerca de 60 porcento e as trocas gasosas são feitas inteiramente através dos seus pulmões.
É difícil descrever a reverência quase religiosa que senti ao ver o meu primeiro peixe-pulmonado ao vivo. Estava perante um animal que, tenho quase a certeza, é parecido com algo que eu poderia ver nas lagoas do início do Paleozóico, muito antes dos primeiros anfíbios, mais ainda dos dinossauros. Enquanto observava o peixe-pulmonado a mover-se lentamente na minha caixa frigorífica, ele levantou repentinamente a cabeça para fora da água e, ruidosamente, inalou um grande gole de ar. Penso que nunca conseguirei esquecer o som produzido.
O peixe-pulmonado não tem barbatanas, como os outros peixes. Pelo contrário, tem dois pares de apêndices em jeito de chicote que actuam como pernas muito funcionais, ainda que fracas. Em 2011, um estudo experimental interessante demonstrou que as barbatanas pélvicas são utilizadas pelos peixes-pulmonados de uma forma muito semelhante à das patas traseiras dos animais terrestres, tanto para andar como para saltar. Isto lança uma nova luz sobre alguns vestígios fósseis do Devoniano, que se pensava terem sido deixados por anfíbios primitivos - na verdade, eles são provavelmente os antepassados dos peixes-pulmonares semi-terrestres. O desenvolvimento de membros articulados com os dedos (membros digitados) já não parece ser o pré-requisito para a conquista de terra.
CARACTERÍSTICAS DO PEIXE-PULMONADO
Se acha que isto parece ser caminhar é porque é. O peixe-pulmonar usa as suas barbatanas pélvicas de uma forma muito semelhante à dos pés de um tetrápode - a parte distal da barbatana torna-se um "pé" e as barbatanas produzem movimentos que permitem andar e saltar.
Quanto mais estudamos o peixe-pulmonado, mais fascinante se torna. É hoje claramente assumido que este animal detém o segredo para o desenvolvimento de orelhas de tetrápodes e foi o primeiro a desenvolver dentes de esmalte, do tipo dos que nós mamíferos temos agora. O peixe pulmonado também está soberbamente adaptado às estações duras da savana da África austral e pode enterrar-se no chão e sobreviver durante meses fora da água, escondido do sol quente num casulo lamacento (abundam histórias sobre os agricultores africanos que desenterram dos seus campos secos grandes peixes vivos.) A sua dependência de oxigénio atmosférico é tão forte que o peixe-pulmonado irá afogar-se se não puder respirar acima da superfície da água. As suas guelras fortemente reduzidas são praticamente desprovidas de funcionalidade mas durante o desenvolvimento larval do peixe-pulmonado, são externas e em jeito de penugem, semelhantes às das larvas da salamandra.
Na Gorongosa, os peixes-pulmonados são comuns em poças sazonais e rios do parque, alimentando-se de uma grande variedade de invertebrados aquáticos, peixes menores e rãs. Como eles são muito territoriais, é provável que quase todos os corpos de água nas planícies tenham pelo menos um destes notáveis animais. É uma pena que eles nunca sejam vistos pelos visitantes do Parque - na minha opinião, o peixe-pulmonado supera em termos de importância e de um conjunto fantástico de características, qualquer outro vertebrado da Gorongosa, incluindo leões e elefantes, e eu prometo assumir a missão de difundir o conhecimento da sua existência.
Na semana passada, no dia 27 de Março, o Laboratório de Biodiversidade E.O. Wilson foi inaugurado oficialmente, o culminar de um sonho meu e de muitas outras pessoas. Está para breve a divulgação de mais informações sobre o laboratório mas não será deslocado realçar que a primeira amostra de vertebrados da nossa colecção sinóptica é um pequeno pedaço da barbatana caudal do peixe-pulmonado, preservado para codificação futura de ADN. O animal foi devolvido ao seu habitat e espero que não tenha sido a última vez que pude olhar nos olhos do irmão gémeo do avô, do avô, do avô... do meu avô.
Semelhante a uma salamandra grande, o peixe-pulmonado tem quatro membros distintos, uma cauda comprida e apenas resquícios de brânquias. As brânquias são praticamente não funcionais e os peixes afogam-se se não conseguirem respirar acima da superfície da água.
Piotr Naskrecki - Cientista e Director-Adjunto do Laboratório E.O. Wilson, no Parque Nacional da Gorongosa.
NOTÍCIAS – 22.09.2014