Jorge Horta
Pela primeira vez na história do País, um ex-chefe de Governo é preso. Para lá do circo mediático que a detenção do ex-primeiro-ministro traz, a actuação das autoridades portuguesas merece reflexão.
A detenção de José Sócrates, na última sexta-feira, ganhou contornos "hollywoodescos": Um ex-primeiro-ministro, amado por uns e odiado por outros, regressa ao seu país e, ao chegar ao aeroporto, é preso. A imprensa é avisada. Algumas estações de televisão captam as primeiras imagens do suspeito detido dentro de um carro descaracterizado. De imediato a Procuradoria-Geral da República confirma, em comunicado, o que será um dos acontecimentos do ano. E da década, arriscamos. Pela primeira vez na história do País, um ex-chefe de Governo é preso.
Para lá do circo mediático que a detenção do ex-primeiro-ministro traz, a actuação das autoridades portuguesas merece reflexão. Pelo impacto que terá no Partido Socialista (PS), que Sócrates liderou durante seis anos. Pelas repercussões no quadro político nacional, de uma forma mais geral. E pelo que significa de renovação na imagem que a Justiça tem aos olhos dos cidadãos.
José Sócrates governou Portugal durante seis anos, com duas maiorias absolutas, em 2005 e em 2009. Já vai longe a comemoração sobranceira de um dos seus aliados no PS, António Vitorino, que em noite de vitória eleitoral disparou aos microfones e câmaras televisivas um glorioso "habituem-se!". A saída de cena de Sócrates, em 2011, é marcada por um contexto de profunda crise financeira em Portugal. O Estado está a braços com uma subida galopante dos juros cobrados pelos investidores internacionais para comprarem dívida pública portuguesa. Uma tendência insustentável que força José Sócrates a pedir ajuda externa. E com isso, eleições antecipadas. Sai Sócrates, entra Pedro Passos Coelho. O PS é substituído no Governo pela coligação PSD-CDS. Até hoje.
O Partido Socialista vem mantendo uma vantagem sólida sobre o PSD nas intenções de voto dos portugueses, cansados de três anos de medidas de austeridade. Mas o legado de um Governo autista pela mão do "animal feroz", como José Sócrates chegou a ser apelidado, deixou marcas profundas na sociedade portuguesa. E isso ajuda a explicar por que razão não tem o PS, hoje, condições para alcançar, nas urnas, uma maioria absoluta. Nem mesmo com a nova liderança, aparentemente mais à esquerda, de António Costa.
A detenção de José Sócrates é um murro no estômago da narrativa que o Partido Socialista agora quer contar aos portugueses. A PGR levantou o véu sobre as suspeitas que pendem sobre Sócrates. Fraude fiscal. Corrupção. Branqueamento de capitais. A imprensa fala na existência de um património de 20 milhões de euros em contas associadas ao ex-primeiro-ministro. A mesma imprensa, ao longo dos últimos meses, deu conta do luxuoso estilo de vida de Sócrates em França, sem que lhe fossem conhecidos rendimentos suficientes para financiar o retiro em Paris. Sócrates processou judicialmente os jornais. Que não pararam de o investigar.
Durante anos a sociedade portuguesa olha para a classe política como inimputável. Isso não é uma singularidade lusa. Mas a detenção de Sócrates, que já fez correr tinta muito para lá das fronteiras lusitanas, tem o dom de criar nos cidadãos uma certa percepção de que a Justiça está a mudar. As detenções de altos dirigentes do Estado na Operação Labirinto, por suspeitas de corrupção nos vistos "gold", e, agora, a prisão de um polémico ex-primeiro-ministro vêm revelar que a máquina judicial tem, afinal, garras para chegar aos poderosos. Se essas garras são suficientes para efectivamente punir o crime de colarinho branco ou apenas arranhá-lo, é algo que só os próximos meses poderão esclarecer.
É naturalmente importante ter em atenção o princípio da presunção de inocência. Até prova em contrário, todos somos inocentes. E Portugal não deverá fazer sobre Sócrates um julgamento de praça pública. Seja como for, e qualquer que venha a ser o resultado do processo, José Sócrates não se livra de uma vergonhosa marca no currículo. Nas entrelinhas da história da sua detenção e no verso dessa mancha biográfica do ex-primeiro-ministro ficam motivos de sobra para que o País inicie, ou retome, um debate sério sobre o Estado da Nação. Isto é a Justiça a funcionar? A inimputabilidade da classe política terminou? A corrupção nunca mais será a mesma? Vale a pena, agora, não nos rendermos à espuma do mediatismo, e, finalmente, procurar resposta às perguntas que podem ajudar a construir um Portugal menos demagógico e intelectualmente mais sério.