Tem um capítulo de vez em quando…
Este ano, sim. O Carnaval marcou passagem indelével nas memórias de quantos, congregados pela viola do Timóteo—O seu nome de nobreza é D. Timotensco Noronha Baessa de Faria e Castro Cascas ( Cipaio )—, percorreram as ruas da capital amodorrada, numa afirmação de juventude que se não conforma com o viver de wisques e canastas feito. Viver anti-nacional e dispéptico.
Enquanto a viola gemia suas notas incertas, arrancadas ora por uns ora por outros dedos—também incertos do que estavam a fazer—, a malta atirava aos ares qualquer fado ou canção—e até uma ou outra inofensiva serenata—, no tom dos soturnos cantares do Alentejo.
Digno de eterno arquivo éo tom magoado com que o Bráulio beliscava as cordas da viola e chorava umas no tas doloridas de mistura com palavras mágicas—como "tricanas", "Mondego", "Choupal". O seu rosto lívido, os olhos fechados ou semi-abertos e em branco e perdidos no infinito, a boca aberta em "ó", muito esticado para cima e para baixo, eram um sinal certo de uma alma de artista … incompreendido. "Incompreendido"—digo bem, porque a "comissão da nova nomenclatura dos gajos”, quando chega ao Bráulio Flor, cuja habilidade de cantar, desafinadamente, fados de Coimbra ficou, claramente, demonstrada no último Carnaval..."
Artista incompreendido, mas um tanto narcisíaco— perdido na contemplação da sua arte. Tanto que, de uma vez, quando já todos haviam fugido à frente de alguém que deu em correr-nos, ele continuou de viola em riste atacando a "fortaleza" com o seu dolente cantar, até se ver, frente a frente, com o perseguidor. Baixou a viola com muita dignidade, pô-la ao correr do seu lado direito como se fora uma arma e iniciou a retirada, o mais dignamente que pôde,..
Episódio para ser conhecido pelos nossos vindouros é o do muito digno Polícia de trânsito increpando o grupo carnavalesco dos estudantes, à esquina do Favorito.
— Saiam da rua que é para os carros e não para os peões!
Coitados de nós! Ficamos frios, gelados com este balde de água. E estávamos ao rubro, cantando ao nosso Reverendíssimo Reitor um dos números do nosso programa fantasma, para conseguirmos mais umas horitas de folgar após o jantar.
Mas, nem de propósito: Talvez por nossa culpa, o carro da polícia, ao pôr-se em "andamento salta para cima do passeio.
Rapazes! Aquilo é que foi gritar:
—Fora do passeio que é para os peões e não para os carros! Fora! Fora!
Seja-nos perdoada esta inofensiva irreverência que não podia deixar de explorar fortuita ocorrência.
Depois do jantar, continuamos a ronda carnavalesca a Nampula. Tiramos fotografias que estão um mimo ( pena não podermos mostrá-las aqui aos leitores!...); fomos ao Sporting, onde alguns ectilizados nos quebraram duas cordas da viola—crime nefando que o Pais esteve a ponto de castigar quebrando a viola inteira nas cabeças—autenticas cabeças de alambique!—dos criminosos; saímos indignados do dançadouro; demos mais umas voltinhas e terminámos com uma serenata—comédia espirrada pelo Pais, sentado no "roda-pé" da avenida...
Depois a noite estendeu sobre nós o seu manto escuro, recamado de estrelas e franjado de silêncio.
II
Para fixar e sancionar os nomes do Colégio de todos os rapazes, foi eleita, há dias, uma "Comissão da Nova Nomenclatura dos Gajos", que teve a sua reunião única e de resoluções definitivas para este ano de 55, no dia 1 de Março corrente.
Apraz-nos registar nas páginas desta História um pequeno documento que houvemos à mão e que é assinado por um tal "El Terrible Pote", e que, certamente, é o secretário da efémera Comissão,
Aí vai tal qual, como convém a documentos desta ordem: "Os nomes da malta, cá pelo Colégio, estão quase totalmente esquecidos. Já se não ouve chamar pelo Ferreira nem pelo Ambrósio, mas sim pelo Entorta Pregos e pelo Faca. Afiada, etc.
"Ora façamos um exame geral à nomenclatura dos "gajos".
"0 nosso amigo Timóteo, nobre ramo duma aristocrática família africana, é agora conhecido pele nome de D. Timotensco Noronha Baessa de Faria Castro Cascas ( Cipaio).
"Fernando Gil, a irrequieta e buliçosa criança do 5e ano é a Cobra Editora, vulgo Peixe Seco.
"João Pereira, cujo apêndice nasal transcende tudo o que olhos humanos puderam ver desde a primeira hora da criação até agora e que rivaliza até com o nariz de Cirano de Bergerac—é o famoso Regente Agrícola Coco Esquelético Narigudo.
"Bráulio Flor, cuja habilidade de cantar, desafinadamente, fados de Coimbra ficou, claramente, demostrada no último Carnaval, é o Planta Cantor ou então o Flor Sonora.
"Manuel Pereira, irmão de João Coco, é o Ivo Esquelético Carneiro.
"Óscar Simões, o Gorducho, o homem do presunto e do toucinho, é o Jack Toucinho, familiarmente o Touças.
"Arnaldo Leal, há muito que o deixou de ser. Agora, é o Bigorna Pernalta.
"Francisco Cunha, gordo, pesadão, quase que não pode arrastar—é o Xico Pipa Saguí.
"Rui Quartin com toda a sua magreza é, absolutamente, seco de carnes. E conhecido por "O Seco".
"Rui de Bivar, loiro, com a mania da selecção, é conhecido pelo nome de Osso ( por razões muito especiais e secretas!) e também pelo Galinha Loira.
"Já ninguém conhece Mário Cancela por este nome que era próprio." É, agora, o Calábria, ilustre e honrado bandido alemão evadido dos cárceres» Consta que, em virtude das suas proezas e feitos gloriosos, foi, recentemente, promovido a Portão.
"E outra malta infinita há com alcunhas. Não se registam, porém, todos aqui,. Pelo que, desde já declaramos este documento incompleto—Completo, só o Assis das Neves "porque tem relógio e tudo."
"O que aí fica é simplesmente para que as pessoas estranhas não se surpreendam, quando, ao aproximar-se de nós, ouça a chamar pelo Portão, pelo. Coco, pelo Seco, etc. Com estas notas, extraídas da grande Acta da reunião da "Comissão para a Nova Nomenclatura dos Gajos", ficará qualquer mortal, que ouse meter-se no meio dos estudantes, habilitado a não se espantar com os novos, e à primeira vista, estranhes apelidos que, por cá,
estão em uso agora."
Np.,1 de Março de 1955
a) El Terrible Pote
Aqui, o fim do documento e deste parágrafo de "A Nossa História". ~
III
Aquando da Festa dos Títulos Nobiliárquicos do Timóteo, o Seco, que é uma torneira aberta de poesia, teve o pensamento delicado de lhe dedicar um soneto, todo repassado da mais fina amizade.
O Timóteo
Mais magro que um esqueleto carcomido,
Transporta a escuridão, para onde vai.
O seu corpo, pelo Sol enegrecido,
Parece que para a frente sempre cai.
Tocador de viola conhecido,
No Brasil, na Itália e noParaguai,
Diz bojardas todo convencido:
Quando abre a boca só asneira sai.
Meu caro Timotensco de Baessa,
Habitante das terras calcinadas,
E sempre, para a malta, boa peça:
Nunca deixes de deitar meu caro
As tuas tao famosas calinadas,
Porque eu, anedotas, sou avaro.
Nampula, 2 de Março de 1955
No meu papel de historiador, não me compete contar as sílabas métricas da Obra—não as conte tambérn o leitor, porque isso de sílabas e acentos obrigatórios é contra as convicções do Seco... —, mas, para sublinhar mais a bondade de carácter do D. Cipaio, não deixarei de salientar a verdade deste verso comovedor:
"e sempre, para a malta,boa peça".
É verdade: o Timóteo, mesmo transportando a escuridão para onde quer que vai, é, realmente, um bom rapaz, um amável colega.
Na cerimónia e divertida da promoção do Cancela a Portão, depois de se lhe darem os conselhos que dirijam na vida, sob o peso desta dignidade nova e depois de se lhe lembrar a brônzea oitava dos Lusíadas
"Vedelos Alemãos, soberbo gado,
Que por tão largos campos se apascenta, "
e foi lido pelo autor o poema
O Cancela
Pernas tortas e barba já cerrada,
Cabelo em pé, e olhos de gazela,
A figura aqui representada
É do nosso amigo, Mário Cancela.
Do futebol um ás famoso,
Foi sempre o primeiro a ser escolhido.
Mas isso não o tornou nada vaidoso:
Continua a ser sempre comedido.
Na terra portuguesa continental,
Andou no Colégio de Eça de Queiroz:
Depois do que contou, iremos todos nós,
De longada ao nosso Portugal.
Pela sua enorme valentia—
Afirmaram-me ainda outro dia—
Que o primeiro ministro alemão,
O havia promovido a Portão.
Cancela: agora, em despedida,
Dou-te um abraço cordial:
Desejo-te uma longa vida,
E um futuro feliz—meu animal.
É sempre o Seco, que, desta vez, tem uma ternura um tanto ou quanto agreste, no final do poema. Mas é, para mim, sagrado dever exarar nestas páginas que aquele vocativo "meu animal" é a mesma coisa que "meu querido, meu rico!"
E é também conforme com a "certdõm da verdade" que, com as suas "pernas tortas e barba já cerrada", com o "cabelo em pé, e os olhos do gazela", não se tornou "nada vaidoso".
É a simplicidade em pessoa…
In “ARREBOL” – Colégio Vasco da Gama – Nampula – Moçambique -1955
NOTA:
Foi há sessenta anos…
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE