A versão de Almeida Santos*
Na véspera da partida da delegação portuguesa que ia iniciar em Dar-es-Salam as negociações com uma representação da Frelimo (n.r., ocorridas entre 15 e 17 de Agosto de 1974), recebeu-se em Lisboa a notícia, de fonte militar, de que uma companhia das Forças Armadas portuguesas havia sido “emboscada e aprisionada”, por Forças da Frelimo, em Omar (n.r. Namatil), no Norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia.
Justamente indignado, o Presidente Spínola exigiu que, antes de dar início às negociações, e como condição desse início, a delegação da Frelimo apresentasse desculpas à delegação portuguesa, por essa traiçoeira atitude das suas forças.
Assim fizemos. Mas, com surpresa nossa, Samora Machel começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar:
- Emboscada em Omar?! Uma companhia aprisionada?! ...
Por fim fez-se luz no seu espírito:
- O quê? Aquela “entrega” dos vossos soldados?
E voltando-se para um qualquer assessor da sua delegação:
- Traz a cassete...
Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida, e ouvi-la ficou a constituir uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.(n.r., segundo outras fontes, a cassete foi ouvida anteriormente em Dar-es-Salam, a 2 de Agosto de 1974, no quarto 602 do Hotel Kilimanjaro pelo tenente-coronel português, Melo Antunes que se encontrava na capital tanzaniana para conversações secretas com a Frelimo desde o dia 30 de Julho, delineando o que viria a ser o Acordo de Lusaka de 7 de Setembro no mesmo ano. Citado pelo comandante Almeida e Costa, da mesma delegação, Melo Antunes terá dito: “Merda, assim não se pode fazer nada.”
O que nós ouvimos foi o registo sonoro de uma “entrega”, não apenas voluntária, mas insistentemente solicitada.
“- Vocês quem são?
(Veio a identificação)
- E querem entregar-se porquê?
- Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria!
Queremos entregar-vos as nossas armas!”
Não garanto a exactidão das palavras - cito de memória -, mas asseguro o sentido delas.
Seguiram-se abraços, o “pega lá a minha arma, meu irmão”, etc., etc. É claro que não havia lugar a exigência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentar-mos isso mesmo.
Mal chegados, a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.
- Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete ...
- Uma cassete?!
- É verdade! Uma cassete!
Logo se pediu um leitor de cassetes.
Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado.
Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás do seu inseparável monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? Se aquilo era para ele o que era para mim, inveterado paisano, o que não seria para o lendário cabo-de-guerra?!...
Diz no seu livro “País sem Rumo” que se recusou a ouvi-lha, bem como “a aceitar que tão vergonhosa rendição traduzisse o espírito das Forças Armadas portuguesas em
Moçambique. Verdade é que antes recusou continuar a ouvi-la até ao fim. Mas o que chegou a ouvir bastou para ter escrito que essa gravação “ficará a assinalar uma das páginas mais vergonhosas da história do Exército português, ao oferecer a Samora Machel, na mesa das negociações, uma arma decisiva. As afirmações produzidas no acto da rendição, designadamente as saudações à Frelimo como libertadora de Moçambique e do povo português, constituíram prova irrefutável do índice de prostituição moral a que haviam chegado alguns militares portugueses” (ibidem, pag. 302).
Valerá a pena tentar explicar – já que justificar não é fácil – esse acto dito “de traição”? A única explicação possível é que a entrega voluntária à Frelimo tenha sido o resultado dos plenários de oficiais, sargentos e praças das unidades dos sectores de Cabo Delgado, onde terá sido deliberado , aos gritos de “nem mais uma operação, nem mais um tiro, suspender a actividade operacional”, decisão que, segundo Spínola, terá sido imediatamente transmitida às outras unidades do teatro de operações, incluindo a de Omar (Namatil), naturalmente.
Se assim foi, a guarnição de Omar (Namatil), errando sempre, é claro, ter-se-á limitado a cumprir ‘- ou a aproveitar de facto e in loco – essa deliberação a favor da paz. Se assim foi, repito, o acto continua feio. Mas não tanto! Terá obedecido a uma deliberação colectiva e superior. Em qualquer caso, a deliberação explica a “deposição
de armas”, não explica, e muito menos justifica, o acto de entrega ao inimigo do próprio físico, nem a passagem da fronteira para o lado dele, ou as declarações de admiração e apreço que a cassete regista.
Vimos que, nos telegramas que atrás transcrevi (ver texto de Luis Loforte), se indicava o início de Agosto como o prazo-limite para aguardar a fixação da data do início das negociações de paz sem a passagem à execução da cominação de “entrega das armas”. Ora, no diálogo que a cassete regista diz-se “é hoje o dia”, e fala-se em “entrega das armas”.
É assim perfeitamente crível que a chamada “traição de Omar” represente o cumprimento de anteriores deliberações e ameaças. As comunicações, à data, estavam longe de ser tão fáceis como hoje.
E não está fora de hipótese o não conhecimento, pela guarnição de Omar(Namatil), da trégua negociada pelos emissários de Spínola e Costa Gomes, e da nova situação criada pela publicação da Lei 7/74. Omar (Namatil) era no fim do mundo!
Pezarat Correia (n.r. um dos líderes do Movimento das Forças Armadas portuguesas, MFA) confirma de outro modo esta hipótese, aventando que os militares da guarnição de Omar(Namatil) teriam sido levados a crer que se havia chegado a um acordo de cessar-fogo geral, não representando o diálogo registado na cassete senão uma manifestação de alegria e confraternização por esse facto. Adianta ainda que esse erro nos pressupostos teria sido induzido pelo Rádio Clube de Moçambique, dominado pela Frelimo (Pezat Correia, in Portugal Contemporâneo, Vol. VI, pag. 138).
Versão semelhante é apresentada pelo tenente-general Sousa Meneses, em entrevista a Manuel Bernardo (ob. cit., pág. 159).
Reportando-se ao resultado de um inquérito que mandou fazer, afirma
o seguinte:
“Em Nampula já estávamos a mandar recolher as tropas. Uma das unidades que ia ser recolhida, salvo erro em 8 de Agosto, cerca de um mês antes da reunião de Lusaka, era precisamente Omar.
Omar (Namatil) acabaria por se render às cinco horas da manhã do dia 1 de Agosto. Ao saberem da prevista retirada (os da Frelimo) montaram altifalantes poderosos ao nascer do dia, e ocorreu um diálogo deste género:
- A guerra já acabou!
- Não acabou nada!
- Então chama lá o comandante. Nós somos da Frelimo e vamos festejar a paz!
Também havia três dias que o Rádio Clube de Moçambique vinha propagandeando estar a ocorrer a paz no Norte, tendo Mueda já declarado efectivo cessar-fogo.
Com aquele apelo para irem festejar, com uns copos, fora do quartel, o tal apregoado cessar-fogo, o alferes, com mais dois ou três militares, vieram à frente da porta de armas, enquanto a Frelimo, com mais de cem homens, entrava pela retaguarda e tomava conta do quartel.”
O general reconhece ter tido conhecimento da cassete, mas não chegou a ouvi-la. Nós sim. E não bate certo.
É tentador acreditar nesta explicação das coisas, que, mesmo segunda ela, se pareceria muito pouco com uma “emboscada”.
Mas, se assim tivesse sido, para quê a entrega das armas? E a cassete?
E a passagem da fronteira? E as explosões de fraternidade e reconhecimento?
Ficou-me pela afirmação de Norrie Mac Queen: “Os pomenores da questão de Omar continuam a ser algo vagos” (A Descolonização da
África Portuguesa, pág. 161).
*Almeida Santos, advogado residente em Lourenço Marques no tempo colonial, defendeu na barra do tribunal inúmeros nacionalistas moçambicanos. Depois do 25 de Abril em Lisboa, foi nomeado ministro da Coordenação Interterritorial, assumindo depois a Presidência do Partido Socialista. Sempre contou em Moçambique com inúmeros amigos, nomeadamente o primeiro Presidente da República, Samora Machel.
Trecho da obra ”Quase Memórias”, Vol. II, pág. 66-70.
SAVANA – 17.04.2015