Miragens
Moçambique é dos casos mais gritantes no que diz respeito ao acesso à electricidade, apesar de possuir recursos energéticos em abundância.
A maior parte do país continua completamente às escuras, sendo a taxa de acesso à eletricidade uma das mais reduzidas do mundo. Nas zonas rurais, por exemplo, somente cerca de 1% da população tem acesso à electricidade. Nas zonas urbanas, o acesso e o consumo mantêm-se por sua vez limitados, devido ao seu custo elevado e ao seu abastecimento errático. Grande parte dos residentes da capital Maputo, ainda recorre, em certa medida, à lenha ou ao carvão para suprir as suas necessidades energéticas.
Boaventura Monjane*
Em acréscimo, a prestação do serviço é de má qualidade. Os cortes de eletricidade ocorrem com frequência e sem aviso prévio. Esses cortes e as flutuações de voltagem provocam danos nos aparelhos domésticos e resultam vezes sem conta em despesas avultadas. A infraestrutura é de má qualidade e bastante vulnerável, o que faz com que as chuvas frequentes, características de um país como o nosso, provoquem cortes frequentes de eletricidade — numa clara denúncia da fraqueza da Electricidade de Moçambique (EDM), o fornecedor de eletricidade no país.
No início deste ano, partes do norte do país ficaram sem luz durante várias semanas, depois de as chuvas terem destruído postes de linhas transmissoras da barragem de CahoraBassa para a parte superior da Zambézia e daí para as províncias de Nampula, Niassa e Cabo Delgado, as mais povoadas do país.
Esse tipo de incidentes suscitam várias questões acerca da real capacidade dos projectos centralizados de produção de energia e de capital intensivo para prover a população de electricidade.
É necessário mencionar que Moçambique exporta maior parte da sua eletricidade para países como a África do Sul. Maior consumidor de electricidade da África Austral, a África do Sul precisa de energia para atrair investidores para megaprojetos de consumo energético intensivo, como fundições e refinarias. É, por conseguinte, pertinente pôr em causa a eficácia de uma produção eléctrica em grande escala se mais de 70% da população não tem acesso à electricidade, sendo lhe negada em certa medida a dignidade humana.
Os discursos do governo de Moçambique demostram a anseia que se tem por explorar barragens, o carvão e os vastos recursos de gás encontrados no território nacional, para colmatar a gritante falta de acesso à eletricidade em Moçambique. Não obstante as boas intenções desses discursos, a sua abordagem não é inovadora, nomeadamente, no que se refere a resolver os problemas do acesso, do custo e da qualidade de energia, dando primazia às pessoas e não às empresas.
Os donos dos recursos energéticos em Moçambique
Para além da colossal Hidroeléctrica de CahoraBassa (HCB) o governo tenciona construir uma nova barragem gigantesca, Mphanda Nkuwa, que irá, segundo os seus promotores “contribuir para o desenvolvimento socioeconómico de Moçambique e colmatar o défice de fornecimento de energia que enfrenta a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC)”.
Mas este projeto é alvo de muita oposição, devido aos danos que provocará no Rio Zambezi e nas populações locais. Segundo a Justiça Ambiental, nada indica que a Mphanda Nkuwa venha alterar o cenário actual pois “por mais que a região atraia novas empresas poluidoras de produção intensiva de energia, os pobres de Moçambique continuarão às escuras”.
De facto, 80% da energia a ser produzida nessa barragem será destinada à exportação.
Apesar da electricidade de HCB ser produzida internamente, há indícios claros de que a acumulação de valor ocorre no exterior. Por outras palavras, Moçambique não beneficia da sua própria electricidade. A África do Sul importa a maioria da electricidade de HCB e a Eskom mostra-se extremamente desesperada, sobretudo agora que a rejeição de carga já é um problema diário na RSA. Para nosso grande choque, Moçambique compra de volta a sua própria electricidade à sul-africana Eskom a preços muito elevados. Uma grande parte da electricidade comprada acaba por ser utilizada pela fábrica de alumínio Mozal, de capital maioritariamente estrangeiro, que produz para exportação. Mesmo a central elétrica à base de gás de Ressano Garcia, estranhamente instalada na fronteira com a África do Sul, não mostra evidências de trazer assim grandes mudanças. Será interessante ver quanta electricidade produzida a África do Sul levará para casa.
Outros recursos energéticos
Boa parte das maiores concessões de minas de carvão e reservas de gás está nas mãos de companhias estrangeiras que detêm o direito de vender participações a outras entidades.
Estas companhias têm, por conseguinte, poder total sobre os recursos. No sector do carvão, calcula-se que a bacia carbonífera de Moatize, na província de Tete, produza seis mil milhões de toneladas, sendo os principais extratores a Vale do Brasil, a Jindal da Índia e a Rio Tinto. Esta última vendeu recentemente acções à Indian Cold Ventures Limited (ICVL). Para sustentar o seu balanço financeiro num período de queda dos preços de carvão no mercado, a Vale seguiu o mesmo caminho e vendeu uma participação na mina de carvão de Moatize ao grupo japonês Mitsui, abrindo assim o banquete a mais um convidado. De entre os outros projectos em grande escala ligados ao carvão na província de Tete, destacam-se: o projeto Ncondezi; o projeto Revuboe em que a Anglo American comprou 58% das acções, bem como o projeto do Zambeze detido pela australiana Riversdale Mining.
No sector do gás, desde 2004 que o campo de gás de Temane na província de Inhambane é explorado pela sulafricana Sasol que comprou os direitos de exploração do gás em Pande-Temane à Enron. O projeto inclui um gasoduto a fazer a ligação entre os campos de gás de Pande-Temane e a central de Secunda, na África do Sul.
Os riscos relacionados com a insegurança dos gasodutos são conhecidos e estão bem documentados. Por exemplo, na Nigéria, as comunidades foram afectadas pelos derrames de petróleo da Shell no Delta do Níger. Num país como Moçambique, incapaz de gerir até simples condutas de água, é pertinente questionar a segurança dos gasodutos instalados, tendo em conta os riscos elevados de poluição ambiental e para a saúde das pessoas.
Em Palma, na província de Cabo Delgado, a Americana Anadarko tenciona montar um dos maiores projectos alguma vez empreendidos por uma empresa energética ocidental. O projeto de Palma é um dos esforços mais extremos alguma vez envidados para converter essas descobertas monumentais de gás em energia comercializável
e representa uma feroz competição para a sul-africana Sasol.
Organizações da sociedade civil, a imprensa local e internacional têm documentado os impactos negativos das acções destas empresas, tanto a nível de violação dos direitos humanos como a nível ambiental. A Académica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais publicou recentemente uma declaração a denunciar a poluição que afecta mais de 30 mil pessoas no distrito de Moatize. A actividade de exploração mineira da indiana Jindal nessa zona provoca evidentes problemas de saúde.
Insurreição popular contra a injustiça energética?
A electricidade também está ligada a outros serviços públicos. Nalgumas cidades a EDM cobra coercivamente uma taxa sobre o lixo através da conta de eletricidade doméstica, apesar de muitos bairros ainda não serem abrangidos pelo serviço de recolha de lixo.
Esse sistema gera a revolta dos residentes dos bairros não servidos. Os consumidores põem em causa a legitimidade da cobrança coerciva, uma vez que os seus contractos com a EDM não previam essas taxas. Recentemente, o Conselho Municipal de Maputo anunciou um aumento da referida taxa, para garantir maior sustentabilidade da recolha de resíduos sólidos na cidade.
Moradores de um bairro de Maputo recentemente entrevistados pela TV Miramar queixaram-se de que não é justo aumentar a taxa a quem nem sequer beneficia do serviço. Um dos entrevistados disse: “Primeiro que venham recolher o lixo. De outra maneira, não pago.”
Considerando os moçambicanos um povo pacífico, os políticos ficaram surpreendidos quando o aumento de preços de bens básicos suscitou uma onda maciça de protestos. Os moçambicanos demonstraram não tolerar o aumento injusto dos preços dos alimentos, da água e dos combustíveis (incluindo a eletricidade). Mais espetacular ainda, em setembro de 2010, Maputo ficou paralisada, com as pessoas a protestarem contra o aumento em 30% do pão. Noutras cidades e localidades, o aumento dos preços dos transportes motivou outras ações de protesto em grande escala. O impacto das manifestações foi genericamente positivo, pois Maputo recuou nalguns dos aumentos a nível municipal.
Conclusão
A situação da eletricidade em Moçambique demonstra que se a tendência actual de produção de energia (forma centralizada e de capital intensivo para exportação) prevalecer, o país continuará a enfrentar os desafios expostos neste artigo. Isso pode gerar mais protestos generalizados por todo o país. O governo de Moçambique tem de mudar a sua abordagem e dar a primazia às pessoas e não às empresas, no que se refere à produção e ao fornecimento de electricidade. A natureza da economia está demasiado orientada para a exportação e deve mudar; caso contrário, dificilmente servirá o povo moçambicano.
Para além disso, embora o governo intensifique as sanções impostas aos consumidores que “roubam eletricidade” ou cometem fraudes relacionadas com a electricidade, as populações urbanas e rurais carenciadas conhecem os avultados subsídios de eletricidade e outras facilidades de que beneficiam as grandes empresas como a Mozal. Isso suscita várias questões entre os pobres, como a questão de saber porque são penalizados com sanções pesadas, enquanto as empresas recebem a eletricidade com enormes subsídios.
As iniciativas para melhorar a eletricidade nos países como Moçambique são desafiadas a fazer o seu trabalho de uma forma muito diferente, se o seu intuito for acabar com o fosso em vez de o alargar. Em nada contribuirão se tencionarem apoiar os modelos existentes e continuarem a subsidiar as empresas que já são ricas. É inevitável conceber projectos de energia de média e baixa escala que sirvam e beneficiem as pessoas e de dirigir os subsídios energéticos para baixo e não para cima..
DIÁRIO DO PAÍS – 18.05.2015