Canal de Opinião por Afonso dos Santos
Capim Aceso
Eis uma lista de dezasseis conceitos tóxicos, por ordem alfabética:
– ajuda ao desenvolvimento
– auto-estima
– boa governação
– capital humano
– classe média
– classe política
– crescimento económico
– discriminação positiva
– elite
– “empoderamento”
– gestão do Estado
– igualdade de género
– inclusão
– luta contra a pobreza
– solidariedade
– zona nobre
Esta não é uma lista exaustiva de todos os conceitos tóxicos. Existem mais. Por exemplo: coesão social, comunidades locais, interesse nacional, maldição dos recursos naturais, sociedade civil.
Todos os conceitos incluídos naquela lista e estes que são referidos adicionalmente têm uma característica comum entre si. Todos eles pertencem a uma mesma ideologia, que é a ideologia do sistema político-económico actualmente predominante no Mundo, o capitalismo neocolonialista.
Esta ideologia pretende impor-se como ideologia global, total, totalizadora, totalitária.
No seu ensaio “Literatura e totalitarismo” (1941), George Orwell escreveu: “O totalitarismo aboliu a liberdade de pensamento com uma intensidade de que jamais se ouviu falar em qualquer época anterior. (...) Não se limita a proibi-lo de exprimir – ou até de pensar – certos pensamentos; dita o que irá pensar, cria uma ideologia para si, tenta reger a sua vida emocional, assim como tenta estabelecer um código de conduta. E isola-o tanto quanto possível do mundo exterior, fecha-o num universo artificial no qual o leitor não tem padrões de comparação. O Estado totalitário procura, em qualquer caso, controlar os pensamentos e emoções dos seus súbditos pelo menos tão completamente quanto controla as suas acções”.
Sendo aqueles conceitos tóxicos todos eles pertencentes a uma mesma ideologia, isso significa que os utilizadores de qualquer um desses conceitos utilizam também invariavelmente todos os outros. É uma espécie de linguagem de cartilha obrigatória.
Aqueles são os conceitos da ideologia do sistema de defesa e imposição da desigualdade social, pretendendo fazer crer que esta é uma calamidade natural, como se fosse uma vontade divina ou uma maldição demoníaca.
A característica principal desta ideologia é a colocação do dinheiro como valor supremo, acima da dignidade humana. Na óptica desta ideologia, os seres humanos estão irrevogavelmente divididos em duas categorias: senhores feudais e servos.
Esta ideologia despreza o trabalho e glorifica o dinheiro. Não há nenhum acaso na escolha das palavras que se utiliza. Por exemplo, o uso da palavra “colaborador”, que tem sido utilizada para banir o uso da palavra “trabalhador”, revela bem como esta ideologia considera que ser “trabalhador” é indigno, é desprezível, é vergonhoso, é uma desqualificação. Esta ideologia chega até ao ponto de reservar essa palavra para as prostitutas, designando-as como “trabalhadoras” do sexo. Entretanto, com a promoção da prostituição, qualquer dia ainda vão ascender à categoria de “colaboradoras” do sexo.
Não existe linguagem que seja neutra. Toda a linguagem tem carga ideológica, toda a linguagem é o veículo de uma ou de outra ideologia.
Recentemente, num serviço noticioso de um canal da televisão portuguesa, falavam de alguém que “é empresário da construção civil e dá emprego a vinte e um trabalhadores”.
Perante uma frase como esta, até se pode acrescentar mais. É que, além de lhes dar emprego, ainda lhes dá dinheiro, se eles aceitarem a oferta e forem trabalhar. Nem os anjos lá do Céu conseguem ser tão virtuosos, generosos, caridosos como estes santíssimos empresários terrestres, que constituem uma nova entidade mitológica, que é o empresário doador de emprego. É uma dupla oferta. Oferecem emprego e ainda oferecem dinheiro, quando os trabalhadores aceitam a oferta e executam trabalho. É miraculoso! É claro que aqui surge uma pergunta: onde será que esses empresários-doadores vão buscar esse dinheiro que oferecem aos trabalhadores?
Com esta conversa de que os empresários oferecem emprego, os profissionais da lavagem ao cérebro já não têm noção do ridículo e perderam, em definitivo, a consciência sobre os parâmetros da racionalidade.
A análise da linguagem como instrumento de manipulação e de dominação é uma área de estudo que tem raízes sólidas e que tem sido desenvolvida por vários autores.
No seu livro “A intoxicação linguística” (2007), Vicente Romano, professor catedrático jubilado de Comunicação Audiovisual da Universidade de Sevilha, escreveu:
“O emprego deliberado da linguagem para fomentar a confusão das consciências e a ocultação da realidade é o que se entende por manipulação. (…) a manipulação entende-se como a comunicação de alguns, ao serviço da dominação sobre os demais. Manipula-se quando se produzem deliberadamente mensagens que não têm a ver com a realidade social.”
E mais adiante:
“Todos os dominantes, sejam feiticeiros, religiosos, políticos, económicos, intelectuais ou de quaisquer outras naturezas, utilizaram as palavras para confundir, aterrorizar, ocultar e manter a ignorância sobre as autênticas relações de dominação e exploração. (…) Na linguagem da educação, como na da economia, na da comunicação social, da política, etc., predominam as terminologias utilizadas deliberadamente para confundir, para intoxicar as mentes.”
O sinal inequívoco e cintilante de uma sociedade diferente, de prosperidade para todos, só surgirá quando regressarem do seu exílio e se reerguerem na terminologia quotidiana as palavras “igualdade”, “liberdade”, “verdade” e “revolução”. (Afonso dos Santos)
CANALMOZ – 14.05.2015