Entre 1901 e 1902, 350 refugiados bóeres viveram na vila das Caldas da Rainha, integrados e acarinhados pela população. As idas a Lisboa só eram permitidas mediante autorização, mas, no Verão, podiam ir à Foz do Arelho. A paz chegaria em 31 de Maio de 1902.
Chegaram às Caldas da Rainha num comboio de oito carruagens e vagões com carga, guardados por 25 homens da 16ª Companhia de Infantaria. Eram 350 refugiados bóeres, homens, mulheres e crianças, a fugir de uma guerra a 8600 quilómetros. A paz seria assinada no ano seguinte, em 31 de Maio de 1902.
No dia da chegada, “as mulheres e crianças foram levadas em carros puxados por cavalos para os lugares onde deveriam ficar alojados, enquanto os homens seguiram [a pé] um homem de barba branca por não haver viaturas suficientes. Junto às bermas estavam os portugueses, algumas senhoras choravam e jogavam flores em sinal de simpatia. Em toda a parte se aclamava “Viva os bóeres!”. As manifestações dos portugueses para com os refugiados foram fantásticas. Na cidade um comité de senhoras deu as boas vindas”. Em Viva os Bóeres! o historiador sul-africano Ockert J. Ferreira conta a aventura que levou, entre 1901 e 1902, mais de três centenas de bóeres até à vila termal portuguesa, onde viveram integrados e acarinhados pela população.
Havia razões para serem recebidos como heróis. Em Peniche, Alcobaça e Abrantes, onde também foram alojados refugiados, repetiram-se igualmente estas manifestações de apoio. O Ultimatum Inglês ocorrera havia apenas uma década e o sentimento anti-britânico estava ainda muito vivo no país. Os portugueses tomavam claramente partido pelos colonos de ascendência holandesa que batalhavam no extremo sul do continente africano contra os ingleses.
Na revista humorística “A Paródia”, criada por Rafael Bordalo Pinheiro, o seu filho Manuel Gustavo Pinheiro publica uma caricatura que retrata até a rivalidade entre várias localidades de Portugal para receberem os refugiados boers. Também o ceramista Avelino Belo cria 14 medalhas de homenagem à causa bóer com a esfinge do Presidente Paul Kruger e as armas da República Sul-Africana, do Estado Livre do Orange e da própria cidade das Caldas. Durante 38 dias este artista trabalha ainda numa jarra, denominada Bilha Boer, que oferece ao Presidente Kruger e cuja réplica se pode hoje apreciar num museu em Pretória.
Viva os Boers! relata que os refugiados foram inicialmente alojados no Hospital Termal, mas com a época de banhos, em 15 de Maio, são transferidos para os Pavilhões do Parque, que à data eram também usados como quartel militar.
Alguns alugam quartos ou casas na vila, causando espanto os baixos preços das rendas. Duas vezes por dia todos são obrigados a apresentar-se perante as autoridades, mas durante o resto do tempo andam livremente. As idas a Lisboa só são permitidas mediante autorização, mas, no Verão, podem ir à Foz do Arelho. O livro refere que os bóeres vão em burro, por atalhos e areais, até poderem chegar à praia e nadar.
A rígida religião calvinista desincentiva quaisquer namoros entre os refugiados, pelo que quando dois deles pediram para namorar duas compatriotas suas, foram imediatamente transferidos para Peniche. Ainda assim há registo de quatro casamentos celebrados nas Caldas da Rainha, um dos quais entre Stefanus Pienaar e Maria Magdalena Pelser, cujo romance tinha começado na viagem para Portugal, no navio Zaire, quando Pienaar contraiu a febre da água preta e Maria Pelser foi sua enfermeira.
Nos dois anos que estiveram na cidade (1901 e 1902) nasceram 18 crianças. Uma delas é baptizada de Jan Harm Caldas da Rainha Wessels, em homenagem à cidade que acolheu os progenitores. Mas quatro não sobreviveram.
Na época, a mortalidade infantil era elevada. Não consta que houvesse falta de condições sanitárias. Pelo contrário, Ockert Ferreira refere que a estadia em Portugal terá salvado da morte alguns refugiados: “por sorte, o clima agradável e saudável das Caldas da Rainha e ainda os bons tratamentos que tiveram, permitiu recuperarem das doenças de malária contraídas em Moçambique” (onde se tinham refugiado, fugidos da África do Sul, antes do governo inglês ter pressionado Portugal para os enviar para a metrópole).
De Moçambique os bóeres tinham trazido um stock de farinha. Nas Caldas da Rainha e no Porto houve peditórios para os ajudar. Da Holanda e da França chegavam dinheiro e géneros, como sabão e roupas. E até a Organização de Bíblias Holandesas enviou 120 bíblias e 40 evangelhos oferecidos aos refugiados das Caldas da Rainha.
Sendo na sua maioria calvinistas, o culto religioso era importante. “Os internos nunca foram impedidos de praticar serviços religiosos”, apesar de proibidos de cantar para não incomodar os vizinhos. “Mas através da intervenção do Pastor Hugo, mais tarde deram as autoridades portuguesas autorização para poderem cantar em voz baixa”, escreve o autor.
In http://www.publico.pt/portugal/noticia/quando-caldas-da-rainha-acolheu-os-refugiados-boeres-1697726
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(Foto: Na fronteira acabada de delimitar entre Moçambique e a República Sul-Africana (boer), cerca de 1891. Na imagem, os senhores em primeiro plano são uma delegação de Gungunhana. Os elementos da nação-estado moderna, importados da Europa, em estranha coexistência com a tradição imemorial africana.)