Expirados os prazos legais a Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana tornou públicos testemunhos de pessoas que poderiam estar envolvidas no assassinato de Samora Machel e vários passageiros do voo trágico de 19 de Outubro de 1986.
Apenas publicou um testemunho de um moçambicano, que se refere a contradições internas que existiam na época realmente ou somente em parte entre alguns dirigentes nacionais.
Que se saiba, pelo publicado, a Comissão não convocou nenhum dos dirigentes das forças armadas e segurança do apartheid ou das populações vizinhas ao local, nem solicitou ouvir os sobreviventes da tragédia. Igualmente, nada se menciona sobre a decisão da comissão sul-africana que, de acordo com as normas da IATA,decidiu sobre o acidente. A conclusão espantosa da comissão imputava a queda do avião a erros de pilotagem da tripulação. Curiosamente, coincidência ou não, dirigia a comissão um célebre juiz do apartheid Cecil Margoo, que entre outros malabarismos judiciais, havia concluído que o militante e activista contra o regime Steve Biko, em 1977 se suicidara, dando cabeçadas nas paredes da sua cela, quando os dados da autópsia demonstravam muitas provas de sevícias e torturas conducentes à morte do malogrado activista.
Recordemos alguns factos, passados há cerca de 30 anos:
O apartheid declarara Mbuzini zona militar, as populações locais e os sobreviventes viram soldados, posteriormente substituídos por polícias segundo as declarações feitas na época e no local. Quando a delegação por mim dirigida chegou ao local pelo início da tarde, só vimos polícias.
O Tenente General Denis Earp, comandante da Força Aérea do apartheid, declarou, eu li isso nos jornais do seu país, que os seus radares seguiram o avião presidencial desde Mbala a Lusaca e de Lusaca até ao embate. Igualmente afirmou e publicamente que seguira os nossos voos de busca.
Contrariamente às afirmações do então Ministro dos Negócios Estrangeiros do apartheid, nenhuma das autópsias dos tripulantes, do Presidente e dalgumas outras vítimas demonstravam indícios de consumo de álcool.
O comandante do avião dispunha de mais de 20.000 horas de voo, o seu co-piloto já voara perto de 10.000 horas, qualquer deles milionários do ar no jargão de tripulantes. Todos os tripulantes haviam feito treinos de centenas de horas de voo em Moçambique, com aterragens e descolagens de dia e noite e em condições adversas atmosféricas.
O embate do avião em Mbuzini ocorreu cerca das 21 horas. O Ministro Pik Botha telefonou-me cerca das 06h00 da manhã, cerca de 9 horas após a ocorrência. Eu chegava nesse momento a minha casa, onde viera rapidamente para tomar um duche, mudar de roupa e levar o meu filho de 7 anos então, para casa dos avós maternos. Disse-me o ministro que o Presidente estava morto e o acidente ocorrera na zona de Natal.
De imediato informei a Direcção do Partido e Governo que estava reunida na sede da FRELIMO desde a noite anterior. A direcção encarregou-me de ir para os locais e levar uma delegação, que sugeri integrar o Ministro Rui Lousã dos Transportes, o Ministro Fernando Vaz da Saúde, quadros das Forças Armadas e Segurança e jornalistas e fotógrafos, entre eles, Carlos Cardoso e Kok Nam. Foi aceite.
Voltei a falar com o Ministro Botha indagando para onde me dirigir no Natal, ele respondeu-me que se tratava do Transval e que me dirigisse para Komatipoort.
Com um Antonov 26 e um helicóptero aterramos em Komatipoort cerca das 08h30 da manhã. O polícia que lá estava nada sabia. Pedi que comunicasse aos seus superiores. Disse-me que de Pretória viriam pessoas para nos encontrar.
O General Ian Kotzee, então comandante geral da Polícia, chegou num helicóptero cerca das 11h. Dirigindo-se a mim e diante de testemunhas moçambicanas disse: Chego do local. O Presidente estava morto. Tomei a liberdade de o pôr num caixão e não o deixar em terra. Procurem um sinal para aquele lado (apontando para Mbuzini).
Já perto do meio-dia chegou o Ministro Botha. Partimos juntos para o local. Pelo caminho disse-me que tencionava solicitar aos EUA e Reino Unido que participassem no inquérito. Informei-lhe que isso contrariava as normas da IATA, que determinam que no inquérito estivessem envolvidos o país onde ocorrera o acidente, África do Sul, o país que operava o avião, Moçambique, e o país do fabricante, URSS. Pareceu concordar, mas não o fez.
Com os corpos do Presidente, Ministro Alcântara Santos, Fernando Honwana, Aquino de Bragança e com um dos sobreviventes descolei para Maputo. Lousã deveria regressar no Antonov com outros sobreviventes e feridos menos graves regressaria a Maputo, enquanto Fernando Vaz acompanharia os mais graves para Nelspruit, onde veio a falecer um moçambicano, enquanto um tripulante soviético a URSS o levou para Moscovo onde morreu pouco depois.
Como acordado as caixas negras da electrónica decifraram-se na Suíça, as dos motores na fábrica do TU 134 B e a de voz na África do Sul. A da electrónica esteve vários meses com os militares na África do Sul, antes de a entregarem aos peritos. Nada se detectou de anómalo nas caixas. Na de voz ouve-se nitidamente o Comandante declarar que estava numa rota errada e tenta levantar o avião, razão pela qual ele não embateu nas montanhas dos Libombos em Moçambique e arrastou-se já em Mbuzini, na África do Sul.
O apartheid alegou sempre e está nos documentos que o avião confundira o VOR de Matsapa na Swazilândia com o de Maputo, o que jamais se provou. Recusou toda e qualquer investigação sobre um sinal a partir de Mbuzini, contra a vontade moçambicana e soviética e unilateralmente declarou encerrado o inquérito concluindo com o erro de pilotagem.
Estes factos o Presidente Chissano apresentou-os publicamente à Assembleia da República.
Afirmei e escrevi e publiquei que me surpreendeu sobremaneira o facto dos embaixadores do Reino Unido e dos Estados Unidos me contactarem, antes do funeral do Presidente, para informarem que haviam recebido instruções do Gabinete do Primeiro Ministro e da Casa Branca que os seus países não participariam no inquérito. Porque as regras da IATA excluíam essa participação, fiquei sempre com a impressão de que o conteúdo real da mensagem significava que os seus países sabiam a verdade e não se podiam envolver, sem que isso os forçasse a tomarem medidas contra o regime do apartheid, o que não lhes convinha nem interessava. Igualmente, o governo post apartheid estava com as mãos atadas, porque nas forças armadas e segurança havia numerosos elementos em postos de direcção vindos do passado. Mexer e investigar o assassinato de Samora poderia comprometer a estabilidade ainda frágil do país, tanto mais que toda a documentação e provas materiais já se encontravam destruídas pelos envolvidos no crime.
Hoje termino aqui e continuarei no próximo número na terça-feira que se seguirá. Até lá um abraço,
P.S. À parte a família nenhuma instituição liga aos aniversários de Heróis Nacionais. A AEMO ignorou Craveirinha a 28 de Maio que se encontra na Praça dos Heróis. Os artistas plásticos, a 6 de Junho, esqueceram-se de Malangatana, que por vontade previamente escrita ficou em Matalane. Sansão Muthemba foi assassinado a 6 de Junho de 1968. Acham bem a amnésia? Haja patriotismo e orgulho pelos feitos dos nossos grandes. Um abraço a todos que deles se lembram e aos que corrigirem a negligência.
SV
O PAÍS – 16.06.2015