MOÇAMBIQUE vai celebrar na quinta-feira 40 anos de proclamação da sua independência. O percurso para que esta fosse alcançada foi longo e, em muitas das suas etapas, sinuoso.
A heroicidade dos moçambicanos, que durante dez anos, até 1974, derrotaram os portugueses nos campos de batalha, é conhecida de diversas formas. Os livros de história, biografias, memórias e os depoimentos de muitos dos protagonistas, principalmente, revelam-nos os contornos da luta que permitiu que a 25 de Junho de 1975 o nosso país nascesse como nação. Um desses protagonistas é o antigo Presidente da República, Joaquim Chissano, a quem entrevistámos sobre o 40.º aniversário da independência nacional. Com Chissano falámos dos Acordos de Lusaka, o último grande passo para a proclamação da independência e concluídos entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Governo português a 7 de Setembro de 1974, as opções diplomáticas de Moçambique e a sua visão sobre o legado dos chefes de Estado que o nosso país teve neste percurso de quatro décadas. Eis, a seguir, alguns excertos da entrevista com o homem a quem os moçambicanos reconhecem principalmente como o obreiro da paz para o nosso país, em alusão ao final da guerra dos 16 anos que desestabilizou Moçambique até 1992:
NOTÍCIAS (Not)- Os Acordos de Lusaka foram uma espécie de “finalmente” para que Portugal reconhecesse o direito de Moçambique à autodeterminação. Sabemos que houve anteriormente iniciativas de diálogo que não resultaram devido à relutância do colonizador. Dessas, quais é que foram as mais marcantes até se chegar ao acordo?
Joaquim Chissano (JC)- Vou aproveitar esta ocasião para recuar um pouco, não muito, no tempo. Devo dizer que desde os anos 70, nos princípios, estava claro que o povo moçambicano estava a conquistar a sua independência. Isso era percetível por causa do avanço da luta armada, mas também pelo crescente apoio internacional que nós tínhamos, de tal ponto que nesses anos já a Frelimo era considerada mais ou menos como um governo de Moçambique independente. Daí todas honras que eram prestadas a Samora Moisés Machel, nosso Presidente. Por onde passasse eram honras grandes, com tapete vermelho, guarda de honra, etc., porque o mundo, sobretudo em África, já se apercebia que a independência era um facto. Mas não só foi fora que se aperceberam da irreversibilidade da nossa independência. Houve internamente outros que se aperceberam, como pessoas representadas por Jorge Jardim (empresário e colonialista radical baseado na Beira), que iniciam contactos com o Governo da Zâmbia, mais precisamente com o Presidente Kaunda, para tentar pôr um freio ao avanço da luta armada, alegando que se podia constituir um movimento libertador no interior de Moçambique que iria fazer o diálogo, desde que a FRELIMO continuasse a abrandar as acções armadas. Isto significava uma negociação com as forças portuguesas de cá para criar uma espécie de Brasil, onde foram os próprios portugueses lá a se desligarem de Portugal e proclamarem a independência. Portanto, os portugueses de cá queriam uma independência controlada por eles e com uma ligação contínua com Portugal. Então, pretendem ter um encontro e tratar do assunto da maneira que queriam com o Governo da Zâmbia e com a FRELIMO. Mas como nós sabíamos que Jorge Jardim tinha uma ligação muito directa com o regime em Portugal, sobretudo com o Salazar naquela altura e depois continuou a ter com Marcello Caetano, nós informámos ao Presidente Kaunda de que pessoa se tratava o Jorge Jardim e que nós não nos recusávamos o diálogo com Portugal mas este tinha de ser entre Moçambique e o Governo português. Estou a falar de antes do 25 de Abril de 1974, mais concretamente entre 1972 e 1973. Nós exigímos que Jorge Jardim, se quisesse negociar connosco, nos apresentasse um mandato ou uma credencial do Governo português. Nós só aceitávamos, portanto, negociar com o Governo português. Porque ele como moçambicano não precisava de negociar nada com outros moçambicanos no que à independência dizia respeito. Ele, querendo o bem de Moçambique, como queria deixar transparecer, que se juntasse ao movimento libertador ou que mobilizasse muitos brancos moçambicanos para se juntarem à luta de libertação nacional. À partida rejeitámos tratar de um assunto tão sério com um homem que conhecíamos muito bem, com as suas ligações e tendências políticas em relação ao regime colonial português e que queria exibir uma capa que não tinha, a capa de benfeitor que nem era. Então, criou-se mais ou menos uma espécie de confiança entre uma parte dos portugueses e o Presidente Kaunda…
Not -… qual é essa parte dos portugueses com que o Presidente Kaunda criou confiança?
JC- Foi com o grupo de Jorge Jardim mesmo e quiçá com outros portugueses que queriam uma independência fictícia para Moçambique, que queriam que o nosso país, a nossa pátria, fosse controlada em remote-control por eles e por Portugal. Ora, nós chegámos a trocar mensagens, através do Governo da Zâmbia, com Jorge Jardim, que não foi para frente porque ele não tinha nem foi capaz de ter um mandato do Governo português. Nós nunca nos encontrámos com ele face-a-face. Foi sempre através de um enviado e quem fazia esses contactos de intermediação era o Presidente Kaunda. E durante esse tempo também tínhamos informações que nos chegavam através dos nossos serviços (de inteligência, de que era responsável Joaquim Chissano), do descontentamento no seio das Forças Armadas portuguesas. Soubemos da criação de um movimento dos capitães que não viam com bons olhos a continuação da guerra e tinham descoberto que esta guerra era contra um povo que tem direito à independência. Portanto, não concordavam com a tese de que aqui, como em Angola e na Guiné, era uma província ultramarina de Portugal. Há este movimento que nós acompanhámos e evidentemente este movimento foi reforçado por causa da derrota do plano do general Kaúlza de Arriaga, o plano Nó Górdio (que prometera acabar com a guerrilha da FRELIMO). O movimento dos capitães reforçou a sua posição com a travessia das forças da FRELIMO para o sul do rio Zambeze e com operações que efectuámos já muito perto da Beira, nomeadamente em Gorongosa, por exemplo. O nosso avanço era imparável, pois íamos abrindo mais frentes e os portugueses já viam isso. Viam mais sobretudo porque os capitães estavam cada vez mais conscientes de que a luta para além de injusta seria inglória. Não teriam como vencer. Aliás, a guerra que Portugal moveu contra o povo moçambicano foi inglória…
Not -O avanço da FRELIMO e a tomada de consciência dos capitães foram a chave para que as conversações oficiais chegassem?
JC- Sim, foi. Sem dúvida. Continuando, sobre os contactos iniciais: há os contactos indirectos que aparecem através de Jorge Jardim; há um movimento dos capitães, com quem temos um certo contacto muito subtil…
Not -… como é que efectuam esses contactos com o movimento dos capitães?
JC- Através dos nossos serviços (de inteligência). Nós sabíamos que existia esse movimento dos capitães porque trabalhámos bem também essa componente. Não eram contactos oficiais com os capitães mas tínhamos essas informações porque soubemos buscá-las e mantê-las. Sabíamos do que estava a acontecer com os militares em Portugal e até em Timor-Leste, porque tínhamos lá colaboradores. Obviamente que não os vou identificar, por isso escuse-se de perguntar-me quem eram. Mas creio que um deles, de quem não me lembro do nome, depois da independência trabalhou directamente connosco aqui, nos nossos serviços de inteligência. Eu era chefe desses serviços durante a luta de libertação nacional, lembre-se. É assim que começam os nossos contactos. Depois dá-se o 25 de Abril (de 1974). E como nós acompanhávamos a informação, os acontecimentos, ficámos um pouco inquietos porque estávamos a pensar que haveria aí um golpe de mestre do general Spínola e das forças que o apoiaram na ideia de criar uma espécie de autonomia com as colónias para permanecer aquela ligação que muitos portugueses ainda queriam com as colónias. Víamos que ele não tinha um plano de autodeterminação e independência de Moçambique. Víamos que isso era muito mau porque poderia até desmobilizar o apoio da comunidade internacional que nós tínhamos. Então, nós tivemos de procurar formas de contactar as Forças Armadas que tinham feito o golpe. De uma maneira subtil enviámos pessoas para Portugal para irem ver qual era a situação e saber quem é e como passaria a ser o pensamento de Portugal em relação a nós.
Not -A quem infiltraram em Portugal em 1974?
JC- Aquino de Bragança, que para os portugueses era uma pessoa insuspeita, por à vista não ser moçambicano, mas que na verdade era moçambicano. Era goês, de facto, mas era moçambicano, era dos nossos. Jornalista e investigador que ele era, esteve lá e fez os contactos e trouxe-nos, com muita facilidade, as linhas de força. É assim que nós começámos a preparar um eventual encontro com uma delegação portuguesa. Quando os encontros começam nós já tínhamos feito todo o nosso trabalho de casa, incluindo simular as próprias conversações, em que alguns de nós faziam o papel da delegação portuguesa, com argumentos que pareciam fortes para nós ensaiarmos as respostas que daríamos em Lusaka caso elas nos fossem efectivamente colocadas. Isso era possível também porque tínhamos feito uma sondagem em Portugal das opiniões diversas sobre a nossa independência e sobre as pretensões dos políticos e da população portuguesa. É assim que estabelecemos uma posição, deixando claro o que não era negociável, que era a independência e a transferência de poderes do Governo colonial para o representante legítimo do povo moçambicano, que era a FRELIMO. Depois de muitas tentativas de quererem continuar a dominar o nosso país tínhamos a lição bem estudada. Muitas formas de dominação foram ensaiadas mas nós estivemos também atentos a isso e fizemos dos Acordos de Lusaka palco para que estivesse tudo claro em relação a quem era o legítimo representante do povo moçambicano. O Governo português enviou uma delegação que não estava mandatada a aceitar essa nossa posição. Portanto, a independência imediata, total e completa não foi entendida por essa delegação, que se assustou e pensava que a independência imediata significava saírem da mesa das negociações e a independência ser imediatamente proclamada.
Not -Durante a guerra e mesmo durante o período das conversações foram surgindo outros grupos, no interior de Moçambique, a pronunciarem-se sobre os moldes para o alcance da independência. Em Lusaka como é que se debateu este assunto?
JC- Bom, a delegação portuguesa vinha com a ideia de um referendo, em que dizia que se devia consultar vozes do interior de Moçambique sobre a questão da independência nacional. Os portugueses suscitaram o aparecimento de vários partidos, num país em que não se fazia política. É como se de repente, de um dia para o outro, os moçambicanos tenham passado a ter a liberdade política, de formarem partidos políticos, estes que surgiram como que cogumelos depois das chuvas em tempo quente numa floresta. Esses partidos naturalmente que não tinham nenhuma base nem tinham ou teriam um programa diferente e não estavam necessariamente ligados com algumas forças que no percurso da luta de libertação tentaram emergir, como é o caso da COREMO (de Adelino Guambe, líder da UDENAMO durante a fusão dos três movimentos que resultaram na Frente de Libertação de Moçambique). Voltando à sua questão, devo recordar que os grupos a que se refere resultam de tentativas de perpetuação da dominação a que me referi antes. Andaram aí a querer dizer, por exemplo, que havia uma FRELIMO de dentro e outra FRELIMO de fora, FRELIMO das armas e outra FRELIMO que não é das armas, etc. Não nos desviámos do nosso foco e mantivemos, em sede das negociações, que não havia nada a negociar no ponto em relação à independência e, portanto, a ideia de referendo morria ali mesmo, pois os partidos formados depois do 25 de Abril não representavam nada de nada que tivesse a ver com Moçambique. Os outros que durante a luta andaram a ser anunciados, principalmente por Adelino Guambe, não representavam a ninguém nem a nada. Tanto mais que morreram de morte natural. Foi a força de alguns portugueses de utilizar estes indivíduos para criar novos partidos para, por via deles, exigirem um referendo. Respondemos firmemente dizendo ao Governo português que não se pergunta a um escravo se ele quer ser livre, sobretudo se esse escravo já pegou em armas para conquistar a sua própria liberdade. A luta armada de libertação nacional e o apoio que a nossa causa tinha aqui e pelo mundo tornavam claro que o referendo estava feito. Aliás, isso ficou mais claro ainda quando o povo moçambicano, durante as próprias negociações, se pôs de pé a reclamar uma independência imediata em Maputo e noutros locais, o que deu aquela reacção violenta dos portugueses em 1974.
Not -Retenho uma afirmação, Senhor Presidente, em que disse que a delegação portuguesa não estava mandatada em relação a alguns assuntos. Gostaria que descrevesse um pouco o clima no decurso das negociações no que diz respeito à confiança entre as partes.
JC- Havia muita desconfiança da nossa parte. Isso porque quem estava a dirigir o Governo em Portugal era o general Spínola, um homem em quem nós não depositávamos nenhuma esperança nem confiança.
Not -Porquê?
JC- Porque ele tinha um plano, que foi tentado mesmo pelo general Costa Gomes, que era um bocado mais à esquerda. Costa Gomes veio a Moçambique tentar alimentar a ideia da FRELIMO de dentro e tentou enviar uma delegação para convencer a FRELIMO a parar com a guerra para que haja uma negociação de independência com a FRELIMO de dentro. O plano de Spínola não era ver Moçambique independente de forma total e completa. Desfizemos essas ideias porque as pessoas que eles enviaram compreenderam logo o que os portugueses pretendiam, pois já eram nacionalistas e juntaram-se a nós. Tínhamos a desconfiança, sim, mas apesar disso tínhamos de avançar. Só para descrever o cenário: em Lusaka tínhamos uma mesa, não a das conversações, mas aquela onde se encontrariam as negociações, em que as duas delegações quando entrassem tomavam um e outro lado da mesa. E então quando chegassem o Presidente Samora estenderia a mão para cumprimentar a contraparte ali atravessando a mesa. Mas Mário Soares (então Ministro dos Negócios Estrangeiros português), que certamente também já tinha ensaiado e tinha visto noutras negociações, ele que é socialista, deu a volta à mesa, ignorando o formal estender da mão do Presidente Samora e disse: o que é isso? Dá cá um abraço”. Ele estava com esse gesto a dizer que ele já não era um inimigo mas um camarada como nós. Então aí ele próprio procurou tornar leve o ambiente. Mas nós ficámos sempre atentos porque esse carinho podia ser uma maneira de nos levar a concluir facilmente que estávamos a seguir o mesmo objectivo quando na verdade podia não ser.
Not -Esse gesto de Mário Soares fez uma distensão efectiva no decurso de todas as negociações? Sei que as conversações foram interrompidas e a parte portuguesa teve de regressar a Lisboa antes de o acordo ser selado…
JC - Sim, voltaram porque não tinham todas as condições para negociar connosco. Voltando ao gesto do Mário Soares, o que foi bom com ele é que podíamos discordar dos pontos que discutíamos a sorrir. A importância do gesto de Mário Soares, que chefiava uma delegação que incluía alguns conhecidos nossos, como Otelo Saraiva de Carvalho, foi sabermos também dos limites do mandato que eles tinham nas questões que íamos abordar. Por isso nesse primeiro encontro só se deu tempo para a delegação portuguesa regressar a Lisboa e repensar e buscar novo mandato. Assim foi e quando regressaram, com novo mandato, já não era o Mário Soares a dirigir a delegação; era o Melo Antunes (ministro sem pasta no Governo de Spínola). Mas devo dizer que não foi logo de imediato. Entre este momento e os contactos iniciais houve muitos outros passos, como enviarmos o Aquino de Bragança a Lisboa, o Óscar Monteiro a outros lugares da Europa para se encontrar com delegações portuguesas. A partir desses contactos combinou-se um encontro com o Presidente Samora Machel em Dar-Es-Salaam, em que uma delegação, que incluía Mários Soares, conversou com ele. E à parte houve um outro encontro com os militares portugueses, com o Melo Antunes presente, que culminou com um segundo encontro em Dar-Es-Salaam, onde se tomaram decisões importantes que foram materializadas no âmbito dos Acordos de Lusaka. Isso já deu-se depois da tomada de Omar (Namatili), onde os soldados portugueses se renderam porque já não queriam combater. Portanto, a criação de confiança foi isso.
Not -O entendimento entre a FRELIMO e o Governo português em Lusaka trouxe ressentimentos em alguns sectores dos colonos, os chamados “ultra”, que criaram distúrbios em 1974 em Maputo. Ainda estavam em Lusaka quando chegaram as notícias. Qual foi a reacção da delegação da FRELIMO?
JC - Quando isso chegou a Lusaka a delegação portuguesa já tinha partido. Nós ainda estávamos lá e a nos preparar para abrir os champanhes com os jornalistas moçambicanos que cobriram as conversações, que já estavam a festejar connosco a vitória. Foi nessa altura que soubemos que a Rádio Moçambique (Rádio Clube na época) tinha sido tomada. Então dissemos aos jornalistas para continuarem com o champanhe, enquanto nós recolhíamos para resolver a situação, para nos informarmos melhor e traçarmos estratégias. Porque já as delegações estavam a caminho de Maputo (os portugueses) e para o norte do país (os da FRELIMO) para darem instruções sobre o cessar-fogo, que tinha de acontecer à 00.00 hora, com esta notícia mandou-se parar tudo. Apesar de os preparativos se terem mantido, o Presidente Machel conseguiu uma ligação telefónica com o general Spínola exigindo que este resolvesse o que se estava a passar em Maputo porque o que estava a acontecer, disse o Presidente Samora, correspondia ao plano de Spínola. Ele falou muito fortemente, dizendo a Spínola que ele era um colonialista e que nós não aceitávamos esse plano dele. O Spínola ficou ofendido e disse a Samora “eu não entendo a língua que o senhor está a falar”. O Presidente Samora disse-lhe bem alto que a língua se chamava Português. Obviamente que o Spínola ouvia e entendia.
Not -O que é que iria acontecer se não parassem os distúrbios em Maputo?
JC - O Presidente Samora deu um prazo de 24 horas para que o Spínola resolvesse a situação, sublinhando-lhe que os nossos homens ainda estavam de armas nas mãos e em todas as posições, pelo que o cessar-fogo podia ser interrompido e os combates continuariam. O Spínola prometeu fazer alguma coisa mas na verdade a coisa foi resolvida localmente pela população, que marchou com pedras e com mãos vazias, barricando carros, a caminho da rádio para repor a ordem. De qualquer modo se os portugueses não tratassem do assunto nós trataríamos com a continuação da nossa luta até conseguirmos o nosso objectivo, que era liberar esta terra e os seus filhos.
GIL FILIPE
NOTÍCIAS – 22.06.2015