O ANTIGO Presidente da República Joaquim Chissano afirma que a Renamo deverá depor as armas e optar pelo debate político para condizer com a postura de um partido político, por ela se achar democrática.
Faz entender ainda que aquela formação tem seus membros em vários sectores do Estado, mas que não se revelam porque a Renamo o acha assim conveniente, daí não ser verdadeira – diz Chissano – a tese da exclusão que Afonso Dhlakama defende. Nesta conclusão da entrevista com o estadista, o homem que governou Moçambique por 18 anos até Janeiro de 2005, assevera que para além da paz o seu projecto de governação contemplava a criação de bases para que o país desse passos firmes rumo ao desenvolvimento. Joaquim Chissano aborda também alguns dos feitos do seu tempo de Presidente e elogia a entrega do seu sucessor, Armando Guebuza, sobretudo na construção de infra-estruturas e revela esperança no actual Chefe do Estado, Filipe Nyusi, a quem augura continuidade na edificação do país. Eis, nas linhas que se seguem, o último terço da entrevista:
NOT.– Um dos legados que deixou foi a estabilidade do país, estabilidade no sentido de que a Renamo, com quem negociou e assinou o Acordo Geral de Paz em 1992, já não matava. Olhando para as coisas hoje, esta Renamo voltou aos disparos. Há algo que faria, se estivesse no activo, de modo a que esta Renamo não ameaçasse a paz e a estabilidade dos moçambicanos?
JC –Bom, é difícil responder a isso porque se eu recuasse devia ver o ponto à maneira do como estamos hoje. Mas se recuássemos talvez eu procurasse no seio dos membros da Renamo pessoas mais sensatas, com as quais nós pudéssemos colaborar para concretizar essa inclusão que eles acham que não existe. Para mim, não é inclusão pegar em alguém só por ser da Renamo para integrar em qualquer estrutura, qualquer empresa, etc. Olharia apenas para indivíduos idóneos, sensatos e responsáveis e então trabalhar com eles. Há muita gente da Renamo agora que foi para a escola, para as universidades, ensino técnico-profissional, etc., que pegaria e trabalharia com eles de propósito que é para ficar claro que temos estas pessoas. Eu creio que no aparelho do Estado há de haver muitos, tal como nas instituições públicas há de haver muitos que não são da Frelimo e que estão a trabalhar, mas que fazem questão de ficar calados para continuarem a dizer que a Frelimo discrimina e que só leva gente da Frelimo. Aliás, nós fizemos isso em duas ocasiões no meu tempo, em que nomeámos um director de uma empresa pública que é os Correios de Moçambique, que era da Renamo, e nós sabíamos muito bem que ele era da Renamo. Não pedimos que ele deixasse de ser da Renamo, porque sabíamos que ele tinha idoneidade e competência. Depois, eu pedi a um dirigente quase da Renamo para ocupar um cargo no Conselho Superior da Magistratura Judicial, tendo a direcção da Renamo o impedido de tomar esse lugar e mais tarde pedimos ao doutor Arouca, que também era da oposição, e ele aceitou. Portanto, hoje talvez pudéssemos olhar para as hostes da Renamo e ver pessoas com capacidade e idoneidade para que quando chegassem a esse lugar não representassem os interesses do partido, tal como nós exigimos aos nossos próprios membros quando os nomeamos para esses cargos. Nos postos de trabalho as pessoas não representam os interesses do partido Frelimo, mas os do Estado moçambicano. Se eu cometer um crime, o que o ministro do Interior tem que fazer é cumprir a lei e não olhar para mim como presidente honorário do partido Frelimo, porque ele representa os interesses do Estado. Então, queríamos que as pessoas da Renamo, que viessem da Renamo, do MDM ou de qualquer outra força política, se viessem a ocupar cargos públicos, que o fizessem com sentido de Estado e não de partido.
NOT. –Uma das chaves para o comportamento da Renamo hoje é o facto de ela ter armas e ser, portanto, para além de política, uma organização militar. O Presidente Chissano tentou desarmar a Renamo e não conseguiu. Tem alguma espécie de ressentimento por isso?
JC – Bom, estava claro que não era possível desarmar a Renamo de uma sentada, porque ou nós cegamente utilizaríamos a força, tentando desarmá-los à força, o que havia de criar uma luta e a luta passava por cima do povo ou optaríamos por ser racionais, como tentamos ser. Morreria muita gente, sobretudo porque a Renamo usa sempre uma táctica que faz sofrer o povo. Se forem a reparar, a Renamo não marcha contra quartéis e tal sem passar pela população. Cria sempre terror e intimidação, através de matanças à população. Aliás, faz isso para alguém lhe ver e ir a correr agarrar-lhe os braços e pedir para não fazer isso e ele ganhar o seu valor…
NOT -… o senhor Presidente fez isso?
JC –Não! Eu não! Mas alguém de fora que chega lá como que a olhar para uma criança com um facho de fogo na mão e a rogar à criança para não brincar com o fogo. É assim que se comporta a Renamo, é assim que ela se sente viva. Delegações estrangeiras vêm e fazem isso e aí ela se sente importante. Se a Renamo deixa as armas já ninguém fará isso, já ninguém olhará para aquela criança com um facho de fogo na mão. Se ninguém faz isso não sei onde a Renamo vai assentar-se, porque assentar dentro de uma força política é possível que tenha algumas dificuldades, pois a sua força política, bem vistas as coisas, é mantida sobre o poder de uma arma e não da razão ou do debate político. Neste momento, discute-se entre armas e não armas, e não ideias. É isso que é a Renamo, é esse o seu sustentáculo.
NOT. –E aonde vai o nosso país parar assim, senhor Presidente?
JC – Um dia a Renamo vai ter que depor as armas, eles terão que deixar cair as armas. Até porque o discurso deles só lhes leva a deixar cair as armas porque se dizem democratas. Então, eles têm de ter a consciência de que não podem ser um partido democrático armado. O que muita gente no mundo não entende é que a Frelimo não tem uma força armada, mas a Renamo quer convencer o mundo que a Frelimo tem armas e que, por isso, eles têm que as ter também. Mas a Frelimo não tem armas, se perdêssemos as eleições o ano passado ou nos outros anos, este Exército que o país tem é o mesmo que havia de ficar e não havíamos de dizer que é o Exército da Renamo. Aliás, o Exército é constituído por pessoas que nem são seleccionadas dentro da Frelimo, são recrutadas e não são perguntadas de que partido são. Mais: estou certo que no Exército há muita gente da Renamo, mas a Renamo não quer esta gente, quer outra, escolhida por eles no meio daquela gente que ela esconde. Portanto, não existe uma força armada da Frelimo, existem sim forças do Estado e é com estas que a Renamo quer fazer a equiparação. Isso significa que a Renamo vai ter homens armados dentro das forças do Estado. Aceitamos isso, mas uma vez entrados lá dentro, certamente que com a própria disciplina e estrutura militar eles deixarão de ser forças armadas da Renamo.
NOT. –Moçambique faz 40 anos de independência a 25 de Junho e o Presidente Chissano é um dos actores dessa conquista e também da gestão do país. O que é que tem a dizer sobre estes 40 anos?
JC – Tenho que dizer viva ao povo moçambicano que conseguiu realizar os seus objectivos. Ao proclamarmos a independência, nós assumimos a soberania, o poder passou a residir no povo e o povo passou e continua a exercer esse poder de uma maneira diversa. No princípio utilizávamos uma democracia directa e hoje tende a ser mais indirecta e isso tem que ser corrigido…
NOT. –… como é que era directa, senhor Presidente?
JC – Porque através de órgãos eleitos e não pela participação directa da população. Houve tempos em que sim senhor havia a Assembleia Popular e era Assembleia Popular porque o método de eleição era mesmo popular e também havia participação directa, local das pessoas que discutiam directamente os assuntos da população sem ser através de representantes, como é agora. Com a Assembleia Popular nos moldes que implementámos em 1977 consultava-se o povo directamente na aldeia, na localidade e ao mesmo tempo tinham representantes na Assembleia.
NOT. –O Parlamento que temos hoje não faz o mesmo papel?
JC – Agora sim somos um Parlamento, mas temos que criar formas para que haja uma maior interacção e consulta mais directa com o povo para se tomarem em consideração todas as particularidades que existem nos nossos distritos e localidades do país, para que a democracia seja mais participativa e não apenas representativa. É preciso haver as duas, pois o Parlamento se haveria de fazer valer dos muitos inputs que existem nas aldeias. Outro aspecto importante destes 40 anos, voltando à sua pergunta, foi termos nacionalizado a terra, no sentido de devolvermos a terra ao povo, pois caso contrário ela estaria em grande parte nas mãos de pouca gente e estrangeira. É um assunto muito difícil porque vemos que mesmo hoje há estrangeiros a lutarem pela nossa terra e a conseguir em alguns casos em moldes não definidos. Felizmente, temos muita terra, mas esta vasta terra precisa de uma gestão cuidadosa, porque com o andar dos tempos é capaz de começar a rarear. Temos muita terra, cerca de trinta e tal milhões de terra arável, e quando eu saí estávamos a usar menos de 20 por cento…
NOT -… muito menos, senhor Presidente…
JC– É preciso que essa terra toda seja valorizada, daí que é difícil quando vem um estrangeiro que quer fazer um investimento nós não darmos facilidades. Mas no que diz respeito à terra para a agricultura, aí temos que ter muito mais cuidado, porque são vastas áreas e a nossa população está a crescer. Por causa disso, eu sou por um bom planeamento físico do nosso país, de modo a que saibamos quais são as terras que devem ser reservadas para a expansão da agricultura em função da expansão da população e também para evitar o êxodo da população do campo para a cidade. Portanto, nesta questão da terra foi bom termos nacionalizado, porque naquela altura nós poderíamos não ter tido formas de impedir que a terra fosse distribuída pelos poderosos financeiros.
NOT. –Fez parte dos Governo nos tempos do Presidente Samora e governou, após o falecimento deste, em momentos difíceis de Moçambique, nomeadamente quando o país estava em guerra. Mas tinha, quando foi o timoneiro, um projecto para esta nação. Qual foi?
JC– Momentos muito difíceis mesmo e posso dizer que os mais difíceis são aqueles em que fomos invadidos por regimes racistas da África Austral. O que eu pensava que era capaz de fazer sobretudo depois da experiência dos primeiros anos ou mesmo, posso dizer, do primeiro ano em que entrei como Chefe do Estado, o objectivo era deixar um país em paz ou, pelo menos, sem guerra. Mas como me foi dada a oportunidade depois dos Acordos de Roma, de permanecer mais tempo, o meu segundo objectivo era deixar um país reconstruído ou, no mínimo, com as bases lançadas para se continuar com o combate à pobreza e se iniciar com um processo de desenvolvimento económico. Isso era o que eu queria e penso que consegui fazer. Quando saí havia essas bases para o desenvolvimento económico. Hoje falamos da electrificação do país que não foi uma imaginação minha, porque esta ideia já vinha no PPI (Plano Prospectivo Indicativo, que se propunha a desenvolver o país na década de 1980 a 1990). Aliás, mesmo antes da independência já pensávamos que a electrificação do país era prioritária. E então levei isso muito a sério e conseguimos reconstruir as linhas de transmissão destruídas e construir novas linhas de transmissão e subestações para levar a energia eléctrica de Cahora Bassa até Montepuez e Pemba, de um lado, e para o Niassa, até Lichinga, em que o projecto era chegar até Metangula, e agora já chegou. Era o mais longe que queríamos chegar. Hoje trata-se de espalhar, continuar com um projecto que começou no meu tempo, fazer ramificações a partir dessas linhas principais. A agricultura cai dentro da rúbrica das reconstruções. Os regadios estavam destruídos e começou-se a desenhar formas de reconstrui-los, ao exemplo do regadio de Chókwè que continua ainda hoje em processo de reconstrução e de expansão e modernização. Sei que outros regadios na Zambézia estão também em processo de reconstrução ou mesmo de construção. Outras bases para o desenvolvimento que criámos na altura foi a abertura para o desenvolvimento de instituições privadas de educação, as universidades, institutos e escolas privadas, que iriam completar ou complementar o trabalho que é feito pelo Estado. Na área da Justiça, também tínhamos que criar bases para o desenvolvimento delas e é por isso que criámos uma academia da Polícia (a Academia de Ciências Policiais, ACIPOL), criámos uma escola para a formação de magistrados (Centro de Formação de Formação Jurídica e Judiciária). Criámos e ao mesmo tempo fomos construindo infra-estruturas para o seu funcionamento, estas e outras ao nível central, províncial, distrital, etc. Portanto, as bases foram lançadas desta maneira. Continuaram depois, como se viu.
NOT –Tem o privilégio de ser o primeiro ex-Presidente de Moçambique, que se retirou e foi sucedido por outro, que também saiu após cumprir dois mandatos. O país é tido como dos poucos em África onde as transições de poder foram pacíficas. Que comentário faz a isso, principalmente por estarmos num continente em que as disputas de poder geram lutas mais ou menos intestinas?
JC – Bom, nós tivemos sorte porque todos os chefes de Estado de Moçambique não vieram ao posto por uma campanha de desejo pessoal de ser Presidente e ter um grupo de apoiantes que pudesse se opor a outro grupo de apoiantes. Mais, a retirada do poder para nós não é um problema. No meu caso, bastasse que o partido dissesse chega eu sairia, sem mesmo que passássemos por eleições, porque nós estávamos ali a cumprir um dever partidário que assumimos como um dever de servir a nação. Os nossos antecedentes de luta são os que fazem com que sejamos assim. Agora, há muitos países que não passaram por isso, passaram por lutas intestinas para se decidir quem é que fica Presidente. Nos países que tiveram uma independência sem luta armada, nós vimos que houve muitos golpes de Estado e a partir daí nada era pacífico, as pessoas não se retiraram voluntariamente e agora se está a recriar nesses países sistemas democráticos. Portanto, desses países nada pode ser comparável a Moçambique, que se quisermos comparar pode ser comparável à Tanzania, embora esta não tenha passado por uma luta armada para estar independente. Houve na Tanzania uma luta política em que um Presidente (Julius Nyerere) popular tomou o poder, unificou o país numa união, a TANU (Tanganyka National Union) e que depois se retirou. A transição foi pacífica e o Presidente que o substituiu (Ali Hassan Mwinyi) continuou sendo amigo dele, que por sua vez foi substituído por um outro (Benjamin Mkapa), que também cumpriu e saiu. Está agora o (Jakaya) Kikwete e continuam ligados. Isso faz-nos dizer que Moçambique está a andar como a Tanzania. A África está a tomar medidas colectivas para que não haja distúrbios em tempos de transição, mas não falta um país ou outro que, utilizando certos pretextos, traz distúrbios, como é o caso do Burundi, onde há uma legislação um pouco ambígua, em que por um lado há a Constituição e por outro há um acordo de paz e uns lêem os seus direitos no acordo de paz e outros na Constituição. É o que está a acontecer no Burundi.
NOT. –Como é que olha para a gestão do país depois de si em termos de governação?
JC –Depois de eu sair entrou o Presidente Guebuza e eu penso que ele, pegando por onde nós tínhamos deixado, materializou várias opções construindo. Construiu infra-estruturas no país como, por exemplo, as pontes que nós já tínhamos preparado os requisitos necessários para a sua construção, como a ponte sobre o Zambeze, a ponte sobre o Rovuma, a ponte sobre o rio Incomáti, aqui na Moamba, e outras. Ele materializou o que já vinha, mas também teve várias inovações que foram facilitadas pelo facto de ter havido uma injecção de capitais no país. Ele construiu infra-estruturas públicas que nos faziam muita falta. Os nossos ministérios, a Procuradoria-Geral da República, funcionavam em residências ou casas que não ofereciam as características necessárias para o seu funcionamento; a própria Presidência da República funcionava numa casa que era um clube, o que não oferecia as condições necessárias para o trabalho eficiente. O Presidente Guebuza fez tudo isso e mais actividades em muitos sectores. No que diz respeito à inclusão do povo nos debates, ele continuou com uma actividade que eu exerci durante os 18 anos em que estive no poder, que é visitar frequentemente as bases e discutir directamente com Governos locais e com a população, também fez uma aposta. Eu fazia isso e ele continuou a fazer com o nome de Presidência Aberta. A diferença é que ele fazia com grande intensidade, até porque ele foi secretário-geral do partido e fez um ensaio quando tinha mais liberdade para implantar melhor as bases da Frelimo. Saíram muitas realizações no tempo do Presidente Guebuza e importa continuar em todas as áreas. Quando saímos deixámos um clima para os investimentos e estes investimentos vieram para que pudéssemos ter o país a continuar o seu crescimento. Por exemplo, a Vale do Rio Doce já estava cá, depois de termos a Mozal, a TRAC e os corredores (de desenvolvimento de Maputo, Beira e Nacala) também; tínhamos iniciado a reconstrução da linha férrea da Beira para Moatize (Linha de Sena). O Presidente Guebuza completou as negociações com Portugal sobre Cahora Bassa, em que foi mais ousado nas ofertas feitas a Portugal para terminar de uma vez o processo, e estou satisfeito porque tinha feito uma abertura de clareiras no terreno, etc. Enfim, há uma linha de coisas que foram realizadas, que para mim estão na linha que foi preconizada. Agora temos um novo Presidente que vai continuar a fazer crescer o país com a teoria dele dos andares, em que diz que vai construir o quarto andar. Ele está consciente de que os pilares continuam consolidados e não se devem deixar enferrujar, pois caso contrário terá que construir outro edifício. Mas ele vai continuar o edifício que nós deixámos, dentro da nossa filosofia de mudanças na continuidade. Ele terá que imprimir mudanças na maneira de fazer, na maneira de ser, na maneira de contactar, de dialogar, etc., etc., mas com o objectivo principal em mente. A não ser que nos diga que é preciso deixar esse objectivo para ir buscar outro e então nesse caso será uma mudança radical…
GIL FILIPE
NOTÍCIAS – 24.06.2015