Sérgio Vieira, veterano da Frelimo que não sobreviveu ao vendaval partidário instalado num passado muito recente, que visava banir dos centros de influência todas as vozes contrárias ao coro extremista, reprodutor e seguidista instalado na Frelimo, escreveu recentemente uma crónica para reflexão.
A carta do coronel Sérgio Vieira mereceu atenção da nossa parte por duas razões intrinsecamente interligadas. Primeiro, pela forma quase que fiel como foram levantados os principais problemas que caracterizaram a anterior governação e o seu “modus operandi”. Em segundo lugar, porque a carta não foge muito ao espírito patriótico de indignação perante a incompetência e o banditismo estatal, denunciado num passado muito recente numa reflexão similar e desabafo do professor Carlos Nuno Castel-Branco. Só que este último teve o azar de ter dito o que disse com o xadrez político dominado por metodologias próximas do fascismo.
Acabou em tribunal, e o julgamento que arrasta consigo dois editores é já ao fechar deste mês.
A reflexão de Sérgio Viera e a de Castel-Branco têm dois denominadores comuns: a saturação perante a destruição do projecto de um país, em nome de um nacionalismo cínico acumulador, excludente, oleado pela ganância desmedida e por um desrespeito profundo pelas noções de República, Estado, suas instituições e cidadãos.
A par de Carlos Nuno Castel-Branco, Sérgio Vieira levanta reais, identificáveis e localizados. A EMATUM, um dos maiores escândalos financeiros está aí, a reivindicar publicamente o estatuto da mais crua burla e agiotagem internacional de que há memória. Não há por onde se lhe pegue. Estão todos envolvidos e com sério problemas de legitimidade.
A questão da madeira que é tirada das nossas florestas num autêntico sistema de “take away” chinês sem nenhum ganho para Moçambique também está aí às claras.
Em contrapartida, os nossos alunos sentam-se no chão, votados a todo o tipo de indignidade, e com os efeitos nefastos para a saúde e para a qualidade da própria educação daí decorrentes. Uma investigação conduzida pela agência britânica do meio ambiente provou que o actual ministro da Agricultura e o seu antecessor estavam envolvidos na negociata.
Nada aconteceu. A Justiça esteve a dormir uma sesta apoiada nos ombros dos criminosos.
Foi falado até à exaustão o negócio promíscuo dos Bilhetes de Identidade, Passaportes e Documento de Identificação de Estrangeiro Residente (DIRE), que foi adjudicado a uma companhia privada belga, a SEMLEX. A questão dos documentos de identificação é muito séria, por ter que ver com a nossa soberania. Em cada emissão de cada documento, o privado é que ganha mais que o Estado. Como se pode de depreender, são negócios privados da clique predadora a sobreporem-se ao Estado e a insultarem a nossa inteligência colectiva.
As fábricas que tínhamos espalhadas por todo o país sucumbiram à rede de privatização clientelista, sem perspectivas de desenvolvimento.
Fecharam as portas, e passámos a ser importadores de produtos dos quais, até há bem pouco tempo, éramos exímios produtores
A venda a grosso e a retalho dos espaços verdes da cidade de Maputo ao grande capital (multinacionais e bancos) é outra questão levantada por Sérgio
Vieira. Isso também é verdade. Sérgio Vieira apontou problemas sérios e que exigem resolução para a credibilização do sistema.
Mas, tal como tem sido prática reiterada no poder instalado, ao lidar com a crítica, em vez de se debater a mensagem e o que ela encerra, aproveitando o mérito e a pertinência da mesma, é muito provável que se debata Sérgio Vieira.
O seu passado, o seu presente e o seu futuro poderão ser anacronicamente convocados, com o intuito de não debater, mas abater o potencial promotor de debate.
É provável que nos façam recordar que Sérgio Vieira não é um moçambicano genuíno, por não ter a cor escura da pele. É provável que o passado do homem seja tirado das catacumbas, para se fugir à responsabilidade de promover um debate sobre o caos que é descrito.
É provável que se organizem cruzadas para “abater” o “mulato”, “goês” e outra tipificação racista a atribuir ao homem. Não seria uma atitude nova. João Mosca também já escreveu um artigo a falar da governação, e acabou por ser ele, João Mosca, tema de um debate.
Até há especialistas para tratarem das suas raízes e o catalogar como moçambicano não escuro.
Gilles Cistac teve azar provavelmente por ter colocado em causa o controlo de poder. Primeiro, foi injuriado publicamente, o seu carácter foi vulgarizado com vilipêndio de muito baixo jaez, e, por fim, foi assassinado a tiro.
Carlos Nuno Castel-Branco também esteve na mesma trajectória.
Escreveu um artigo factual e muito sério, e acabou vilipendiado, questionada a sua pigmentação de pele, incluindo acusado de estar associado a uma suposta agenda externa. Portanto, todos os que defendem a pátria dos tais vigaristas, gananciosos, que sugam o país como carraças, na linguagem de Sérgio Vieira, são catalogados como antipatriotas, como se houvesse um outro manual de um patriotismo anacrónico, destrutivo e ao serviço dos bandidos legalmente instalados.
Esperamos sinceramente que haja seriedade para se debater as questões levantadas por Sérgio Vieira, pois são reais, antigas, e continuam a arrastar o país para o indesejável. É preciso que haja olhos para ver os problemas apontados, em vez de ver a pele
cidadão, o lugar de onde vem ou as supostas agendas externas.
Pelo debate, pelo patriotismo e pelo bem do país. E contra o racismo.
(Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 28.08.2015