Raul Domingos, em Grande Entrevista.
O negociador-chefe do Acordo Geral de Paz por parte da Renamo, Raul Domingos, diz haver condições suficientes para a eclosão de uma guerra no país, dado que existe um grande exército de moçambicanos descontentes.
Onde é que está o PDD?
O PDD está em todo o território nacional. Tem sedes em todas as províncias e uma implantação territorial considerável, praticamente com representações em todos os distritos do país.
Quais as principais dificuldades que os partidos extra-parlamentares enfrentam para se afirmarem no contexto político nacional?
Creio que são duas ou três grandes dificuldades. A primeira é, justamente, o espaço político que devia ser privilegiado nos termos constitucionais e a liberdade de se organizar e funcionar como partido político. Este espaço tem encontrado alguns obstáculos. O segundo problema é o de financiamento dos próprios partidos, e este arrasta consigo o terceiro problema, que é a condição da nossa população, isto é, dos nossos membros, que não possuem condições para sustentar o seu partido. Como é sabido, por natureza, os partidos políticos devem, em primeiro lugar, apoiar-se nos seus membros. Então, considerando o nível de pobreza dos seus membros; o nosso empresariado também não apoia. Então, cria-se o referido segundo problema, o de financiamento. Em termos constitucionais, os partidos deviam ter uma assistência e liberdade de funcionamento. Eles não têm na sua plenitude, porque existe um grande esforço do partido no poder de dificultar esse exercício. isto nota-se no famoso problema das bandeiras, há uma grande luta pelo içar das bandeiras ao nível do campo, das zonas rurais sobretudo, os chefes tradicionais são instrumentalizados para impedir que os partidos possam içar as suas bandeiras, e, inclusive, as próprias reuniões, as administrações dificultam. Se há uma força política que está reunida, várias vezes os membros são interpelados, porque não podem reunir sem autorização, o que é contra a lei e a constituição. Esta luta faz com que, muitas vezes, os partidos apareçam poucas vezes, e também penso que a imprensa não escapa disso. Infelizmente, a imprensa é mais pelo sensacionalismo, porque se alguém invade a sede do outro ou bate num militante do outro partido, isso é notícia. Mas se um partido realiza uma reunião ou faz uma visita a uma instituição, isto tem pouca relevância para a nossa imprensa, a menos que seja o partido no poder. Portanto, é assim que muitas vezes devíamos aparecer, mas não temos a cobertura que seria de desejar. Este conjunto de situações faz, muitas vezes, com que os partidos só apareçam quando, por obrigação, em momentos eleitorais, a imprensa acompanha as nossas actividades.
Tendo em conta que em Moçambique é quase impossível que os partidos políticos sobreviverem apenas de quotas pagas pelos seus membros. Em termos financeiros, como é que sobrevive o PDD?
Temos um e outro membro com possibilidades e que dá a sua contribuição, mas temos as quotas que são obrigatórias e, ao mesmo tempo, simbólicas. Dependendo da capacidade de cada um dar a sua contribuição, isto permite que o partido possa pagar água e luz nas suas sedes e fazer alguns movimentos. Há também alguns empresários que, de vez em quando, dão a mão para realizar uma e outra actividade. E, mais uma vez, infelizmente, não querem ser conhecidos, porque o partido no poder exerce uma repressão silenciosa.
Nota-se que, nos últimos tempos, Raul Domingo é praticamente um político ausente. A que se deve?
De forma nenhuma, aliás, todos nós somos políticos, porque a política é que faz o nosso dia-a-dia, e, pessoalmente, por vocação e por estar à frente de uma força política, tenho a obrigação de aparecer. E é por isso que estou aqui.
Senhor Raul Domingos, o MDM e o PDD surgem quase do mesmo contexto político e do mesmo partido, a Renamo. Ora, o PDD não conseguiu ainda o que o MDM alcançou, mesmo não tendo uma figura politicamente reconhecida, quando comparada com o Senhor Raul Domingos, que era o número dois da Renamo, quase a sombra de Afonso Dhlakama. Como é que explica esta situação?
Existem várias explicações. Não concordo quando diz que o PDD surgiu quase do mesmo contexto político que o MDM. O MDM surge num contexto em que o edil da Beira, não tendo sido aceite a sua recandidatura pela Renamo, decide enveredar por uma candidatura independente, e, na altura, porque já tinha realizado algum trabalho significativo na cidade da Beira, contou com o apoio dos munícipes e venceu as eleições. isto é, o MDM parte de uma base territorial, enquanto o PDD surge como um partido que foi registado no ministério da justiça; o MDM surge já como um território, um partido. O facto de possuir território é uma base sólida, um trampolim que permite muitas realizações. É assim que, na oportunidade seguinte, que foram às eleições intercalares de Quelimane, conseguiram mais um passo. Por isso que a base de partida é completamente diferente, e não só. enquanto o PDD surge inicialmente como uma ONG, que era o IPAD, eu pessoalmente não tinha intenções de criar um partido político. mas, depois daquela situação que aconteceu com a Renamo, a minha intenção era de me dedicar um pouco mais à sociedade civil, numa política menos activa. Mas senti-me persuadido, porque, dentro da organização, os membros inicialmente acharam que devíamos fazer mais do que educação cívica do cidadão, que era o foco do IPAD, porque o país precisava. Daí que surge a ideia de que Raul Domingos devia candidatar-se e constituir um partido. E senti que aqueles que eram os associados apresentavam argumentos convincentes e força, sendo assim, aceitei a ideia e constituímos o partido em 2003.
Há algum tempo teria dito, e passo a citar: “Se receber um convite da Renamo equacionaria a hipótese de voltar”. Mantem essa ideia?
Eu penso que teria dito isso há uns bons anos, não me recordo quando, mas posso dizer que, passados 12 anos fora da Renamo, tendo constituído um partido político, e neste momento estando num exercício de aliança com outras forças políticas para fazer face aos próximos pleitos eleitorais, essa possibilidade é muito remota.
E se receber a mesma proposta do MDM?
Estou aberto, mas não para integrar. Não faz sentido, porque estou a dirigir uma força política significativa. Se for no terreno, vai ver que, ao nível nacional, o PDD tem implantação, mesmo nos mais recônditos distritos, vai encontrar lá a bandeira do nosso partido.
Como é que classifica o actual ambiente político em Moçambique?
Tenso e conturbado. Penso que todos somos chamados ao bom senso, para pudermos preservar a paz, esta grande conquista que faz com que Moçambique seja um grande país e que esteja dentro do concerto das nações como uma referência de transição pacífica da guerra para a paz. Neste momento, podemos dizer que estamos sentados sobre um barril de pólvora, que a qualquer momento pode explodir.
Fazendo uma comparação dos três partidos representados no parlamento, consegue encontrar algumas diferenças ou semelhanças?
A diferença é óbvia, é que um está no poder e dois estão na oposição.
A Frelimo e a Renamo são movimentos que surgiram de um contexto belicista. Isto reflete-se, de certa forma, nos seus discursos, que se centram em “nós vamos atacar”, “nós vamos reagir”, entre outros. Acha que, desta forma, existem condições no país para que um movimento não belicista chegue ao poder, sob olhar impávido destes partidos?
Não é um exercício fácil, mas a maturidade política dos moçambicanos pode, seguramente, inverter a situação. Quero acreditar que os moçambicanos, politicamente, estão a crescer muito. Nos últimos anos, sobretudo com o advento da democracia - desde a assinatura do acordo de paz em 1992 -, há um olhar crítico e atento, quer na cidade ou no campo, que permite que os moçambicanos possam, em momentos apropriados, tomar uma posição que inverta a situação.
Como olha para o suspense que a Frelimo está a criar à volta do seu candidato para as eleições de 2014?
Isso mostra que há dificuldades, que não estão preparados, vamos esperar par ver, porque chegará um momento em que será incontornável a apresentação de uma candidatura.
Anda à volta muita especulação segundo a qual o suspense tem em vista procurar uma manobra política para acomodar um terceiro mandato de Armando Guebuza. Também tem esta percepção?
Eu creio que o partido no poder tem conhecimentos dentro do seu seio e sensatez necessária para entender que, ao fazer isso, estaria a violar todos os princípios de uma convivência democrática saudável. Por outro lado, fazendo fé àquilo que têm sido as declarações públicas do Presidente Guebuza e seus seguidores, não se arriscaria a tomar uma posição dessas. Se formos a ver a carta da União Africana sobre a democracia e boa governação, vamos perceber que esta tentativa de alterar a constituição para acomodar um terceiro mandato é comparada a um golpe de Estado, que é inconstitucional e inadmissível. Por isso, quero acreditar que, ao acontecer isso, é condenável, e penso que naquilo que é o crescimento do partido actualmente no poder, não ira arriscar-se a uma afronta àquilo que são os princípios da União Africana, de que somos membros. Todas as manobras de revisão da constituição que ao longo dessas duas legislaturas vêm se falando, gastando-se rios de dinheiro, sem exactamente se dizer o que se pretende, está claro que estão à busca de um espaço para se poder fazer esse golpe. Mas acredito que os moçambicanos não vão permitir que isso aconteça.
Vinte anos após o acordo de Roma, sente que esta foi a paz que ajudou a negociar?
A paz é um processo. Sinto que o processo não está a seguir os passos certos e que a gestão deste acordo e desta paz tem encontrado, ao longo do tempo, algumas dificuldades. Acredito que, nos primeiros dez anos, tínhamos a sensação de que estávamos num bom caminho, mas de há uns anos para cá, parece que estamos a tomar alguns passos para trás, que culminam com alguns incidentes que perigam a própria paz. Se analisarmos aquilo que é a gestão do processo de paz, ou seja, do acordo de paz, começaremos a notar sinais de perigo, quando algumas vozes se levantam e dizem que o acordo geral de paz já morreu ou é caduco. A partir daí, começamos a ver que, efectivamente, estávamos a seguir uma direcção totalmente contrária àquilo que foi estabelecido por este acordo, que eu considero um dos instrumentos fundamentais para a preservação da paz, da democracia multipartidária e do Estado de direito democrático. Por isso, nós testemunhamos com muita tristeza que o aparelho do Estado volta a ser partidarizado, a existência de células de partidos nas instituições públicas; ao nível das forças armadas a partidarização passa pela exclusão, admissão, exoneração e passagem para a reforma de generais ainda com idade de fazer parte do Exército. Todo este conjunto de situações foi minando e roendo o tecido deste acordo que, em Moçambique, está incorporado na constituição, que é lei, daí que devia ser observado na íntegra.
Em alguns sectores, entende-se que a Renamo podia ter obtido mais ganhos com o acordo de Roma, sobretudo no campo económico. Partilha desta opinião?
Eu creio que sim, e penso que esta possibilidade continua em aberto. Nós não nos detivemos a discutir assuntos económicos em Roma e é importante dizer que o acordo que conseguimos foi o melhor que podíamos conseguir naquela época, tendo em conta a pressão que havia. Na mesma altura que negociávamos, em Roma, o acordo de paz para Moçambique, os angolanos negociavam em Portugal o acordo para Angola, que foi alcançado em seis meses de negociação, sob pretexto de que o importante era o cessar-fogo e que as outras questões seriam discutidas no país e em paz. O resultado é aquele que assistimos em Angola, meses depois voltaram à guerra. Em Moçambique, nós levámos mais tempo, procurámos aprofundar as questões políticas e militares com algum detalhe. Mas, infelizmente, os nossos irmãos tomaram o acordo geral de paz como o cessar das hostilidades e um trampolim para o retorno ao monopartidarismo, tentando relaxar e depois voltar ao ataque relativamente àquilo que é o Estado autoritário, através de várias manobras. Temos estado a assistir a situações semelhantes que perigam a paz, que são as escaramuças em Muxúnguè, os incidentes de Nampula, Gondola, tudo como consequência de uma gestão pouco apropriada da paz.
O PAÍS – 24.04.2013