Fragmentos de uma imaginação nacional
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Ao longo dos diferentes momentos da minha estadia em Moçambique – entre 1996 e 2003 – ouvi inúmeros e diversos relatos sobre Samora Machel. Buscando, talvez, uma inspiração levistraussiana, seria útil tomar alguns deles como um conjunto narrativo único que envolve diferentes versões – ou seja, o mito como o conjunto das suas transformações, o qual, por sua vez, atua, para além dos conteúdos substanciais das suas "histórias", como o operador lógico de um tema recorrente: a unidade da nação. Não se trata aqui de averiguar o caráter supostamente autêntico ou falso dessa ou daquela narrativa sobre Samora, senão de indagar sobre como uma determinada imaginação nacional é atualizada e reatualizada, sem solução de continuidade, à medida que essas narrativas – "lembranças/esquecimentos" – são contadas e recontadas uma e outra vez. Talvez, um dos conjuntos mais reveladores – que ilustra, ao mesmo tempo, a natureza complexa da relação Samora e o "povo" – seja o que coletei no Norte do país, num trabalho de campo cujo objetivo era analisar a relação entre o Estado (e seus porta-vozes) e as comunidades muçulmanas da província de Nampula e da Ilha de Moçambique.
Foi por volta de 1975 que Samora Machel, recém-presidente, viajou ao Norte do país em sua primeira visita oficial. Na Ilha de Moçambique, Samora fez questão de se dirigir aos muçulmanos e ingressar na mesquita central. Esse ato ficou marcado na "memória" de muitos muçulmanos, produzindo uma espécie de incidente-metáfora que, no futuro, alimentaria um conjunto de narrativas sobre a relação de Samora com os muçulmanos do Norte.
Samora teria, supostamente, desrespeitado uma regra sagrada para os muçulmanos ao adentrar na mesquita central da Ilha de Moçambique: ele não teria tirado os sapatos antes de ingressar no recinto principal. Contudo, nas várias entrevistas que realizei com diversos muçulmanos, as versões sobre o incidente foram diversas e contraditórias. Algumas pessoas inclusive pareciam não se sentir completamente à vontade para comentar do assunto. A ausência de uma versão clara e convincente sobre o episódio mostra as tensões entre Samora Machel –porta-voz da jovem nação moçambicana – e as comunidades muçulmanas. Nesse sentido, a suposta atitude de Samora constitui um pretexto para pensar tanto os processos de construção de equívocos como de compatibilidades, e também para pensar as dinâmicas de atribuição de significados – polissêmicos – em relação à sua figura.
Todos os relatos sobre o episódio na mesquita podem ser classificados dentro de três ordens. A primeira é a do escândalo e indignação. Os muçulmanos de maioria macua, seguidores de alguns dos braços das Confrarias do Norte do país, não tiveram dúvida em se mostrar inconformados com semelhante atitude de desapreço por parte do primeiro presidente do país. A segunda, à qual poderíamos chamar de diplomática, reconhece a gravidade da falta, mas busca amenizar o incidente ao postular que nenhum dos assessores de Samora Machel lhe avisou acerca dos procedimentos de etiqueta para o ingresso na mesquita. Esta reação busca absolver Samora de qualquer culpa, depositando todo o peso da responsabilidade na falta cometida por seus assessores e acompanhantes imediatos. A terceira foi simplesmente a da negação: o imediato não reconhecimento do incidente, classificando-o como calúnia.
Também há outro conjunto de narrativas que ilustra a relação de Samora Machel com os muçulmanos, mas num momento histórico posterior. Trata-se da famosa reunião realizada em dezembro de 1982 entre a direção do partido Frelimo e do Estado moçambicano e os representantes das principais confissões religiosas existentes no país. Desta vez, não se trata de uma suspeita, rumor ou desconfiança. Ao contrário, é um momento no qual o Estado-nacional, após anos de implantação de uma política anti-religiosa, resultado do ideário "marxista-leninista", procura construir uma relação de cumplicidade com as diversas comunidades religiosas em nome do "amor à pátria" e da unidade nacional.
Era o momento da já mencionada Ofensiva Política Organizacional, iniciada em 1980, que provocou debates profundos no partido Frelimo acerca dos rumos futuros do país. Contra o que Samora chamava de "inimigo interno" haveria que se impor uma profunda moralização no seio do governo e, sobretudo, um forte controle no âmbito das administrações provinciais. Uma das palavras de ordem recorrentes era "organização" e foi precisamente isto que Samora Machel reclamou aos principais representantes das comunidades religiosas do país. Com igual veemência, clamava pela necessidade de fortalecer a unidade nacional entre todos os moçambicanos: "Moçambicanos de todas as crenças [...] esta Nação é patrimônio comum [...]. A Nação identifica-se pelos seus símbolos. Perante a história, perante a cultura, perante a Nação não há católicos, não há muçulmanos, não há protestantes, não há ateus – há moçambicanos patriotas ou antipatriotas" (1983, p. 20).
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In http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-69092009000200002&script=sci_arttext
Vejam também aqui INDIANOS SUNITAS EM MOÇAMBIQUE – 1974/2004
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(Nas págs 57/58)