Por Ricardo Mudaukane
Símbolos de terror e motivo de calafrios para muitas pessoas, os campos de reeducação que a Frelimo criou após a independência tinham um propósito nobre, a “reeducação e dignificação”, considera o antigo Presidente moçambicano Joaquim Chissano.
Chissano recuou no tempo para tocar num tema altamente fracturante na sociedade moçambicana, durante uma palestra sobre os 40 anos da independência nacional, promovida, na segunda-feira, pelo Instituto Superior de Transportes e Comunicações (ISUTC).
“Acusaram-nos de criar uma Sibéria em Moçambique, mas aquilo não eram deportações, aqueles indivíduos estavam a ser reeducados”, declarou Chissano, distanciando os campos de reeducação fundados pelo partido no poder em Moçambique com os “gulags”, o sistema de campos de trabalhos forçados para criminosos, presos políticos e qualquer cidadão, em geral, que se opusesse ao regime da União Soviética, criados na inóspita Sibéria.
No Niassa, para onde foi deslocada a maioria dos desterrados, prosseguiu o ex-chefe de Estado moçambicano, há pessoas que agradecem o facto de terem sido enviadas para os campos de reeducação.
“Numa visita a Unango, quando eu ainda era Presidente, apareceu uma pessoa a pedir para ajudar os irmãos improdutivos, porque ele aprendeu a ser útil num campo de reeducação”, frisou Joaquim Chissano.
Chissano guarda na retira a reabilitação de um preso condenado por matar a mulher com um machado e que, uma vez “reeducado”, assumiu a chefia de um empreendimento agrário em Unango.
“No Malawi, essa pessoa teria sido enforcada”, declarou o ex-chefe de Estado, sugerindo a alegada brandura do sistema dos campos de concentração.
A Frelimo não é belicista
A criação de condições de trabalho para os moçambicanos, assinalou o antigo chefe de Estado moçambicano, era parte do PPI (Plano Prospectivo Indicativo), desenhado como bússola para o combate aos principais desafios sociais e económicos que o país enfrentava.
“Mas depois veio a guerra de desestabilização, no início, começou no centro, mas depois foi levada para o norte e para o sul. (…) Não tivemos uma guerra civil, foi uma guerra de desestabilização”, enfatizou Joaquim Chissano, tomando partido da discussão teórica sobre a natureza que a guerra dos 16 anos teve em Moçambique.
Para Joaquim Chissano, a Frelimo não era um movimento belicista, tendo enveredado pela guerra devido à intransigência do regime colonial português em aceitar os anseios da população moçambicana.
“Quando pensávamos no organograma da Frelimo, o presidente Eduardo Mondlane preferiu adoptar, por exemplo, a designação de departamento de defesa e segurança, porque entendeu que não atacávamos ninguém, estávamos apenas a defender-nos de uma agressão estrangeira”, anotou o antigo chefe de Estado moçambicano.
Nacionalizar foi importante para corrigir injustiças
Sobre outra matéria controvertida em Moçambique, as nacionalizações, Chissano defendeu que a estatização dos factores de produção e dos serviços essenciais básicos pela Frelimo visava corrigir as profundas injustiças herdadas de séculos de dominação colonial.
“A nacionalização da terra era importante, porque era a forma de valorizar os recursos naturais e a nacionalização da educação e da saúde era para eliminar a discriminação”, frisou Chissano.
Fruto das nacionalizações, continuou Chissano, Moçambique registou avanços “fenomenais” na saúde, educação e agricultura e foi considerado um exemplo em África.
“Na educação, conseguimos em apenas cinco anos de independência, o que o sistema colonial não conseguiu em décadas”, enfatizou o Presidente moçambicano, que foi primeiro-ministro no Governo de transição para a independência e ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro executivo pôs-independência.
Sobre as políticas de liberalização que Moçambique seguiu a partir de meados da década de 1980, Joaquim Chissano advoga que não se trata de “arrependimento”, mas de uma abertura imposta pela conjuntura.
“Não podíamos ter escolas ou universidades privadas porque não havia quem tivesse poder para pagar, mas agora há esse poder aquisitivo”, salientou Chissano.
Apesar da “guerra de desestabilização”, a Frelimo nunca descurou a necessidade de desenvolvimento do país, prosseguindo com políticas viradas à melhoria das condições de vida das populações.
Sobre o monopartidarismo que a Frelimo instaurou após a independência, Joaquim Chissano desdramatizou a qualificação de estado de partido único, considerando que esse sistema não foi imposto, mas resultou das circunstâncias políticas vigentes.
“Não foi necessário decretar o monopartidarismo, porque havia um consenso popular em relação ao papel de vanguarda da Frelimo. A bandeira da Frelimo cobria todos os moçambicanos e eu próprio não precisava de guarda-costas para abrir alas, a bandeira da Frelimo abria alas”, frisou Chissano.
Para Joaquim Chissano, é um paradoxo que se justifique a guerra no país com a luta contra o comunismo, pois, entende o ex-chefe de Estado, “a agressão começou alguns meses após a independência”.
“Como é que podiam lutar contra o comunismo, se a guerra começou alguns meses após a proclamação da independência e antes de a Frelimo assumir qualquer doutrina?”, questionou, com retórica, Chissano.
Carvão e gás não vão fazer milagres
O ex-chefe de Estado considerou que grandes reservas de recursos naturais de que o país dispõe não devem distrair Moçambique da aposta na agricultura, defendendo que esta área continua a ser a base para o desenvolvimento do país.
“Apesar do gás e do carvão, estou muito satisfeito, porque a agricultura continua a ser considerada como a base para o desenvolvimento do país”, afirmou o ex-chefe de Estado.
Na sua opinião, a indústria deve estar ao serviço da agricultura, tendo em conta o enorme potencial de que este domínio dispõe e o facto de ocupar a maioria da população do país.
“Hoje, temos de estar na fase da industrialização, mas como factor dinamizador da agricultura, a começar com a agro-indústria”, defendeu Joaquim Chissano.
Nessa perspectiva, continuou Chissano, é necessário que as instituições de ensino, técnicos e os camponeses construam sinergias que possam capitalizar o grande potencial existente na agricultura.
SAVANA – 04.12.2015