Centelha por Viriato Caetano Dias ([email protected] )
“ A política está cheia de idiossincrasias e, de tempos a tempos, chegam ao poder ministros e presidentes decididos a realizar reformas. Contudo, estes indivíduos têm muita dificuldade em implementar a mudança, porque herdaram uma administração pública que constitui um obstáculo, em vez de ser um instrumento. Trata-se de uma instituição hostil à mudança, porque cada um dos funcionários públicos beneficia do emaranhado confuso de regulamentos e despesas que coordenam.” Paul Collier (2010) - “Os milhões da Pobreza”, Alfragide, Casa das Letras, pp. 144 – 145.
Os ventos de mudança poderão conduzir Moçambique a bom porto, em virtude da anunciada reunião extraordinária do Comité Central do partido Frelimo, a ter lugar no dia 05 de Fevereiro do ano em curso, na Escola Central da FRELIMO, na cidade da Matola, província de Maputo. Faço parte daqueles que não lançam o foguete antes da hora exacta e, incrédulo que também sou, espero ver para acreditar nas mudanças que há muito aguardo com enorme “tesão” de expectativa. Porquê, então, a abordagem sobre o cepticismo nas decisões do conclave que se avizinha? A razão é simples: Porque os cargos políticos são exercidos com base na confiança partidária e nos serviços de secretária (contrapartidas), poucas ou raras vezes é feita pela via da competência pública. A queda de um “camarada chefe” significaria a peregrinação ao deserto, passando a enfrentar longos e prolongados períodos de jejum, o que na prática traduz-se na perda de refeição e do estatuto social que até então ostentava no seio familiar, do partido e da sociedade em geral.
A razia que se propala vir a acontecer na reunião de 05 de Fevereiro só pode estar na cabeça dos seus mentores, porque a Frelimo jamais deitou fora os seus quadros, incluindo aqueles que no exercício das suas funções revelaram-se ase-lhas, são protegidos por constituírem uma memória institucional que o partido do “batuque e da maçaroca” conservam e preservam implacavelmente. Os casos de descomunhão e abandono verificam-se quando o aselha, por qualquer motivo, ousa desafiar a Comissão Política, desobedecendo regras e princípios plasmados na epístola da Frelimo. A propósito escreveu o edil de Quelimane, Manuel de Araújo, o seguinte: “Em Moçambique, desafiar uma decisão do Comité Central da Frelimo ainda se pode tolerar, mas desafiar a posição da Comissão Política do partido mor é no mínimo heresia, e as heresias pagam-se caro!”.
Enquanto o foco da mudança for a preocupação com os nomes “das moscas” e não “a lixeira” (o sistema), o país continuará a “pingar como uma carne na assadeira”, isto é, a sofrer. Neste sentido, o aselha que deixa de ser chefe ou director na “instituição X”, passa a ser presidente do conselho de administração ou ministro na “instituição Z”, mantendo-se assim um ciclo de vicioso de incompetência e ignorância. Por conseguinte, por muito que o presidente da República queira alterar a velha ordem ideológica e institucional, será debalde porque encontrará um bando de aselhas que se empenharão no acicate das suas políticas. O presidente Guebuza quando assumiu o poder em 2005 alterou em amiúde algumas “pedras” do partido e tentou mudar o sistema, mas acabou ele mesmo mudado e até fustigado (manifestações populares, sequestros, ataques inconvenientes contra a Renamo, EMATUM, etc.) pelos camaradas.
Eu gostaria de estar enganado. Estou a esforçar-me bastante para um exercício da imaginação diante de uma realidade nua e crua. A verdade é que vai ser mais uma reunião em que os actuais novos chefes (“bons”) serão ovacionados e os antigos chefes (“maus”) serão purificados espiritualmente, como acontece quando alguém é lavado numa pia batismal, tornando-se “Homem novo”. O modo de governação em Moçambique merece uma reflexão mais profunda que esta centelha não pode fazer em duas, três ou quatro páginas.
Neste momento, por exemplo, o país caminha em duas direcções antagónicas. Por um lado, temos o presidente da República, Filipe Jacinto Nyusi, que se autodeclarou empregado do povo - “o povo é o meu patrão”, cujas políticas e acção governativas dependem inteiramente da anuência do partido Frelimo e, por outro, um Filipe Jacinto Nyusi que é claramente uma espécie de presidente não executivo de um dos partidos mais complexos do mundo, onde alguns “dinossauros” (fundadores) reclamam a paternidade do Estado moçambicano. Este é o PRIMEIRO dilema do presidente Nyusi: acabar com os intocáveis na Frelimo e restituir um partido em que todos são por um e um por todos, num espírito patriótico e de defesa dos superiores interesses nacionais.
Acontece porém que os discursos do presidente da República são ofuscados pelos interesses muitas vezes inconfessáveis do seu partido. É com preocupação que se assiste a uma governação em que o presidente da República diz uma coisa, como por exemplo, “vamos agir para combater a pobreza extrema e a corrupção que carcoma o desenvolvimento do país”, e a bancada da Frelimo na Assembleia da República (AR) diz outra “nós aqui não acatamos ordens nem de dentro nem de fora” dos interesses da Nação.
Concordo em parte com os que dizem que os partidos políticos devem chancelar os programas dos governos, mas não condicionar a governação dos seus líderes. Sou de opinião que os programas partidários devem ser chancelados e fiscalizados pelo povo, numa democracia participativa e inclusiva, porquanto o presidente da República é o empregado do povo.
Governar é tomar decisões, sejam elas boas ou más. O presidente da República não deve ter receio de agir a margem do Comité Central, pois foi para isso que recebeu o martelo do poder. Foi o que disse o então primeiro-ministro português que tanto admiro José Sócrates: “Todas as lideranças políticas cometem erros – e eu certamente cometi alguns –, mas nunca cometi o erro de não agir e decidir” (citação de memória).
O SEGUNDO dilema é acabar com a fome.
O país inteiro está a morrer de fome, numa país que possui recursos naturais abundantes, situação que seria colmatada caso a empresa AGRICOM estivesse operacional. No artigo publicado pelo jornal EXPRESSO intitulado “Cadê AGRICOM”, Salvador Raimundo escreveu o seguinte “Escoamento e comercialização agrícola eram o forte desta empresa estatal, responsável pelo estabelecimento do equilíbrio entre zonas de um mesmo distrito, ou provincial, em matéria de produção alimentar. Morreu de doença prolongada, com lágrimas de crocodilo a emprestar um misto de cobardia e roubalheira”. O presidente Nyusi tem a dura missão de reduzir a pobreza extrema para cifras mais baixa dos actuais 54.7%, e para fazê-lo é necessário uma conjugação de esforços e o aproveitamento eficaz dos recursos naturais que o país dispõe. Existem outras formas de acabar com a pobreza extrema no país, por exemplo, a receita de Joffrey Sachs “(…) os governos devem fornecer fertilizantes subsidiados a agricultores que vivem num nível de subsistência, para que estes possam produzir o suficiente para comer, ou microcréditos para que mulheres que vivem no espaço rural possam iniciar micro-negócios. Uma vez que estas famílias tenham elevado os seus rendimentos acima do nível de subsistência e começado a acumular as suas próprias poupanças, os subsídios governamentais podem ser gradualmente retirados”, lê-se na sua célebre obra de intitulada “O fim da pobreza: como consegui-lo na nossa geração”, 2006, p. 373.
O TERCEIRO dilema tem a ver com a administração da Justiça. A Justiça no nosso país é uma trapalhada. De onde menos se esperava que viesse o crime, é onde está o seu viveiro. A separação de poderes não deve significar, por parte da classe jurídica, a libertinagem. A batina não deve esconder vícios, repugnantes, que envergonham a Justiça como um dos pilares da sociedade moçambicana. O presidente Nyusi tem esta dura missão de acabar com o elitismo na administração de Justiça, onde reina a impunidade, a soberba, a negligência, a associação criminosa, o abuso do poder, etc. O induto presidencial é prova inequívoca de que a Justiça funciona mal no país e apressa-se a tirar fotografias em busca de protagonismo, no lugar de trabalhar para servir o povo. Se daqui a 4 ano o presidente da República exigir a lista dos presos indultados, a Justiça dificilmente apresentará a lista (perdoe-me o pleonasmo), porque reina na classe uma “desorganização organizada”. Mais do que conceder indulto, é preciso acompanhar o modus vivendi dos visados. O trabalho de base sobre a organização da máquina de Justiça, o pensar sobre a criminalidade, a contribuição do pensamento intelectual para a mitigação da morte de albinos, o combate ao tráfico ilegal de pessoas e bens, enfim, a usurpação da propriedades do Estado, devem merecer uma atenção especial no seio da classe. Talvez tivesse razão o meu ídolo Arrone Fijamo Cafar quando escreveu “A justiça neste mundo é uma fantochada que se usa na relação das conveniências e assegurada pela invencibilidade dos poderes muscular, económico, compadresco, etc. Tudo isto justificado por milhares de leis acumuladas nas centenas e centenas de volumes de livros, pomposamente chamados de códigos. Não há justiça no mundo, meu amigo; a força é que manda.” É também na Justiça onde a nacionalidade moçambicana é vendida. Um problema antigo que carece de acções enérgicas. Para quando? Hoje em dia, segundo um dos meus leitores, é mais fácil tratar cartão de eleitor que bilhete de identidade, situação que dá aso à corrupção.
O QUARTO e último dilema (podia aqui elencar mais e mais dilemas, sobretudo no sector da educação, onde as nossas crianças não conhecem a gramática da língua portuguesa) prende-se com a instabilidade político-militar. Escrevi na semana passada que o único caminho para a estabilidade política e militar no país é o diálogo. O tempo para ter-se apressado em dar-me razão. Tanto o presidente Nyusi como o líder da Renamo já fala da necessidade de dialogar e fazem-nos por reconhecer que nenhuma musculatura militar acabará como a Frelimo e nenhuma musculatura militar acabará com a Renamo. A guerra quando é ideológica não necessita de armas, palavras são suficientes para “incendiar” um país e retardar a economia. Deste modo, sou obrigado a concordar com o leitor acima citado “A Frelimo tem a hegemonia do poder, de igual forma que a Renamo tem a hegemonia para perturbar esse poder.” Teremos guerra até os fins dos tempos, se persistir a ideia de desarmar a Renamo pela força; o mesmo se aplica à Renamo, caso ainda continue a investir em acções militares para destituir o governo. Dhlakama não tem nada a perder e, portanto, está nas mãos do presidente Nyusi a chave para a paz em Moçambique.
Volto a citar Jeffrey Sachs:
“[Um] exército convencional no terreno não consegue suprimir revoltas ou actividades de guerrilha sem um tremendo banho de sangue e anos de agonia. Durante décadas, os Britânicos não conseguiram suprimir o Exército Republicano Irlandês, na Irlanda do Norte. A vasta força militar de Israel não pôde suprimir a revolta palestiniana. Os Russos não conseguiram suprimir os mujaedines no Afeganistão, nos anos 80, nem os Chechenos, nos anos 90. Os Estados Unidos sofreram baixas e partiram rapidamente tanto do Líbano como da Somália e ainda agora estão a lutar pelo controlo do Afeganistão às portas de Cabul. Em circunstâncias muito piores, os Americanos estão em vias de se meter em anos de viciosas lutas mutuamente destrutivas no Iraque, onde dezenas de milhares de homens furiosos estão dispostos a expulsar a força ocupante (…)” (p. 328). Tire, caro leitor, suas próprias conclusões. ZICOMO (Obrigado).
P.S.: Porquê Jacob Zuma? Apresento duas razões hipotéticas: Primeira, Dhlakama sempre gostou de internacionalizar os seus conflitos, isto é, dar um peso internacional a um problema local, o que lhe engradece e também legitima a sua luta. Afastaria, igualmente, qualquer tentativa de julgamento contra si e sai reforçado como herói aos olhos dos seus apoiantes. Não conheço um único conflito ou uma reivindicação de vulto em que a Renamo não tenha solicitado a ajuda da sociedade internacional ou para mediar ou para sair da “parte incerta”. Nas Relações Internacionais, a internacionalização do conflito significa o reconhecimento do conflito e a incapacidade do mesmo ser resolvido pelo governo ou se preferir uma derrota psicológica ao próprio governo. A segunda, parte de um longo debate que tive com o angolano General Higino de Sousa (Zé Grande), meu colega no programa de doutoramento, que a dado momento referiu que “a solução para a instabilidade militar em África é convidar os países que financiam os conflitos a estarem dentro dos organismos internacionais que estão envolvidos em dirimir esses conflitos. A exclusão do financiador só aumenta o conflito. Mais do que isso, é necessário convidar o financiador a fazer parte do diálogo para se sentir importante e poder negociar. A África do Sul foi chamada – estrategicamente - para a Conferência Internacional dos Grandes Lagos, por Angola, para fazer, directamente, parte no conflito, por ter interesses económicos na região.” É verdade que a receita do General Higino de Sousa não resolve os problemas na totalidade, mas reduz e dissuade, a nível internacional, o país que financia o conflito. Trazendo Zuma ao diálogo, Dhlakama teria espaço de manobra e legitimidade para lançar ataques de grande escala contra o governo, minando inclusive alguns interesses (mormente económicos) sul-africanos no país e fora dele. Também não se pode colocar de lado a questão de uma reaproximação entre Dhlakama e Zuma, se bem que nos últimos anos a África do Sul tem feito pouco pelas questões históricas que a liga ao Estado moçambicano. Uma vez que os interesses económicos pesam mais do que as questões históricas, o acto de se chamar Jacob Zuma à mesa de negociação, foi uma estratégia bem (?) pensada de Afonso Dhlakama.
WAMPHULA FAX – 18.01.2016