- Laurinda Alves
Conhecer raparigas usadas e abusadas sexualmente que vivem a sua história no segredo ameaçador imposto pelos agressores carrega-nos de culpas. Somos culpados do silêncio e da apatia de não agir.
Uma coisa é falarmos de violações e agressões a raparigas que ainda são crianças; outra coisa é conhecer as caras destas crianças. Uma coisa é generalizarmos e conceptualizarmos sobre o abuso sexual de menores; outra coisa bem diferente é conhecermos os nomes e as histórias de vida de algumas destas raparigas menores.
São menores de idade, é certo, mas muitas delas revelar-se-iam maiores, se medíssemos o tamanho da sua coragem e a altura da sua estatura moral. Foram abusadas, mas não se converteram em castigadoras. Muito pelo contrário! Lutam e agem incansavelmente todos os dias para que outras raparigas não passem pelo mesmo que elas passaram.
Conheci numa semana muitas dezenas de raparigas vulneráveis que passaram ou correm o risco de passar por situações de abuso sexual. E também conheci a autora de um estudo que ainda está em fase de conclusão e validação, mas aponta para dados terríveis: em algumas zonas de Moçambique há raparigas com pouco mais de 10 anos já submetidas a 15 homens diferentes e forçadas a 3 contactos sexuais por semana. Parece demasiado brutal para ser real, mas infelizmente esta realidade ultrapassa qualquer ficção.
As estatísticas relativas à gravidez precoce em crianças moçambicanas são igualmente assustadoras, e tudo isto revela um cenário discricionário, no qual as mulheres têm um estatuto muitíssimo secundário. Podem até trabalhar mais que os homens e ter um papel essencial nas suas famílias e comunidades, mas isso não lhes dá estatuto nem direitos.
Sabemos que a realidade de que falo não é um exclusivo de certas zonas de Moçambique, pois em todo o continente africano alastram tremendas desigualdades entre homens e mulheres. Em mais de meio mundo é assim, aliás. As raparigas abandonam a escola ainda muito novas e são forçadas a casar cedo demais. Houve até há pouco tempo leis que protegiam os violadores, obrigando as raparigas a casar com o agressor. Arrepia, só de pensar.
Ser mulher é também estar em comunhão com as mulheres que sofrem, são maltratadas ou abusadas. Não é preciso ser feminista nem activista dos direitos das mulheres e, muito menos, defensora de quotas em contexto político-social para ter consciência de que a assimetria entre géneros é esmagadora para as mulheres em demasiadas latitudes do globo. Vivemos os mesmos séculos, os mesmos tempos de guerra e de paz, atravessamos juntos as mesmas crises e tempos de progresso, mas a história das mulheres é uma e a dos homens é outra, completamente diferente. E o fosso entre umas e outros é abissal.
Conhecedores de tudo isto, muitos homens e mulheres lutam pela igualdade de género e pelos direitos fundamentais, criando movimentos e organizações focados na educação das novas gerações, dando-lhes critérios e ferramentas para agirem de forma mais consciente, mas também para despertarem a consciência geral, pois a apatia que prevalece em muitos políticos e decisores chega a ser desumana.
Conhecer raparigas usadas e abusadas sexualmente que vivem a sua história no segredo ameaçador imposto pelos agressores carrega-nos de culpas. Somos culpados do silêncio, da indiferença e, porque não dizê-lo, da mesma apatia que identificamos nos que podem agir, mas não agem.
Escrevo a pensar especialmente numa dessas raparigas. Uma criança que podia ser minha filha, se eu tivesse nascido em África. Uma menina muito bonita, reservada e de olhos tristes, mesmo quando ri. Uma mwarusi, que na língua Macua significa donzela, rapariga que ainda não é mulher. Estavamos a chegar para uma sessão com as mwarusi (apoiadas por mentoras pós-universitárias do projecto Girl Move) numa comunidade rural da Província de Nampula, quando esta menina chegou. Trazia com ela apenas um caderno e vinha a conversar com duas amigas.
Durante um par de horas, as mentoras Girl Move orientaram uma sessão criativa, divertida e incisiva sobre a responsabilidade individual e o contributo positivo para o colectivo. Depois, as mwarusi dividiram-se em grupos para trabalhar um tema específico que tem a ver com básicos essenciais para elas: saberem defender-se, atreverem-se a dizer ‘não!’ e protegerem-se umas às outras para não serem agredidas e abusadas.
A última hora da sessão com as donzelas da comunidade de Napipine, perto de Nampula, foi passada a fazer teatro. Sob a supervisão das mentoras Girl Move, as raparigas improvisaram role-plays muito eloquentes dos seus medos e urgências, mas também dos seus anseios e sonhos de futuro. Todas se envolveram nas breves peças de teatro acabadas de ensaiar, e todas foram complementares acrescentarando muito umas à outras. Fizeram-nos rir às gargalhadas, mas também nos fizeram chorar lágrimas que tentamos a todo o custo conter e esconder.
Assisti a todas as peças, vi e ouvi os argumentos que usaram, e comovi-me profundamente com a verdade de cada uma, mas também com a aparente leveza com que falaram de temas pesados. Muitas delas estão no auge da sua catarse (a rapariga de que falo, de olhos bonitos mas trites, é uma delas) e, por isso, a teatralização de situações ameaçadoras, bem como a capacidade de nomear sentimentos permite essa purga, essa purificação interior. As raparigas servem de filtro umas às outras e as mentoras são essenciais para orientar essa catarse.
Nos teatrinhos improvisados, as raparigas dão sucessivos alertas umas às outras e reforçam noções e laços que as protegem dos perigos reais. Nada do que dizem é fútil ou acessório. Mantêm o foco nos temas essenciais porque sabem que dele depende a sua sobrevivência emocional, mas também a sua integridade física. No fim, em conversas mais íntimas, a duas, olhos nos olhos, soube que esta menina de que falo assumiu há pouco tempo que só está a conseguir sobreviver ao trauma da violação por estar a ser ajudada pelas outras mwarusi e pelas mentoras Girl Move.
Aquilo que vi e ouvi em Napipine, mas também na comunidade rural de Marrere, onde a sessão foi igualmente animada, mas desta vez sobre noções elementares relativas ao aparelho reprodutor feminino, feita a partir de danças e canções, mas também de desenhos infantis e pulseiras que as próprias miúdas fazem com missangas de várias cores, de forma a poderem usá-las sempre no pulso para perceberem o seu ciclo menstrual, bem como os dias em que correm perigo real de engravidar, deu para perceber o que fazem as mentoras do Girl Move no terreno. Ou seja, fora da Academia que frequentam em Nampula e onde cumprem um programa avançado de liderança pelo serviço e empreendedorismo social.
Estas raparigas foram, elas próprias, mwarusi e sentiram na pele essa mesma vulnerabilidade, mas tiveram a coragem de sonhar e lutar por um futuro diferente. O seu exemplo é altamente motivador para as mwarusis com quem trabalham actualmente, ajudando-as a ganhar coragem para procurarem elas mesmas o seu futuro. A forma como tocam a vida destas mwarusis vai fazer com que muitas se tornem líderes no futuro e é este sistema de vasos comunicantes e contagiantes que já está a colher muitos frutos.
Podia ter começado por escrever sobre a Academia Girl Move e tudo o que as jovens recém-licenciadas moçambicanas aprendem lá, mas acabei por deixar para o fim, pois a realidade-real que atravessam e sobre a qual se debruçam semestre após semestre é brutalmente urgente. Citando Maria Eitel, presidente e CEO da Fundação Nike, que serve de inspiração ao projecto Girl Move, “a educação das raparigas é transformadora e muda o curso da história. Se investirmos nos 72 milhões de jovens raparigas que estão fora da escola e elas passarem a estudar e a viver de acordo com o seu potencial, teremos um mundo totalmente diferente. É hora de actuarmos!”
Foi exactamente esta urgência que determinou a fundação e construção da Academia Girl Move, criada para promover a educação das mulheres. Na Girl Move só entram jovens licenciadas com potencial de liderança ao serviço das comunidades, porque a missão é essa mesma: liderar pelo serviço e transformar a realidade. “Quando melhoramos a vida de uma rapariga através da educação, saúde e segurança, dando-lhe mais oportunidades, estas mudanças têm sempre um efeito multiplicador na sociedade e quebram os ciclos de pobreza e exclusão” assume Alexandra Machado, portuguesa de Lisboa e fundadora do Girl Move que largou uma vida de sucesso como gestora de topo numa empresa multinacional para estar ao serviço desta causa, em Moçambique.
Num ciclo virtuoso de mentoria, de rapariga para rapariga e mulher para mulher, criou uma equipa sólida e uma rede de apoio, capacitação e mudança que transforma Nampula, em Moçambique, mas vida a vida poderá transformar o mundo. Preparar uma nova geração de mulheres que contribui para a mudança da realidade implica envolvê-las com o problema. Dotá-las de competências e forças para sonhar, tornar os sonhos realidade e fazer com que muitas mais mulheres se atrevam a sonhar.
Passei uma semana em Nampula, com a turma de raparigas Girl Move, na Academia onde têm aulas e recebem formação no âmbito do extraordinário Programa Avançado de Liderança e Empreendedorismo, mas também estive com elas no terreno, onde são mentoras de dezenas de Guias do projecto Mwarusi, que por sua vez trabalham com centenas de mwarusis. Fiquei impressionada com esta rede que toca mais de 600 raparigas só na Província de Nampula. Em apenas dois anos a Girl Move já está a fazer toda a diferença na paisagem a norte, num país como Moçambique, onde milhares e milhares de raparigas correm risco de abandono escolar, gravidez precoce, pobreza (miséria!) e exclusão social. Grande parte desta sucessão de conquistas deve-se ao envolvimento das próprias autoridades moçambicanas e também este contágio quase imediato acaba por ser muito inspirador e gratificante para todos. Trata-se da chamada win-win situation, em que todos ganham.
O programa parte desta ideia inovadora de mentoria em rede, e de um programa altamente inovador, inspirado por Paulo Freire, que recorre às metodologias pedagógicas mais recentes e experienciais como as comunidades de prática, os estágios de Vida, as tutorias de carreira, o service-learning, o dragon dreaming e o design thinking. Ou seja, metodologias mais que testadas no mundo das organizações, agora aplicadas também naquela latitude para transformar a sociedade.
Fui como voluntária participar na formação e voltei como se também eu pertencesse ao projecto. A paixão de alunas e professores, mentoras e guias, mwarussis e voluntários é absolutamente contagiante. Percebo a fundadora do Girl Move, quando assume que o seu sonho é formar formadoras, incentivar líderes e capacitar mentoras para chegarem a todas as raparigas em risco de abandono escolar e exclusão. Soa a utopia? Talvez, mas como dizia Sebastião da Gama, é pelo sonho que vamos. E é pelo exemplo que continuamos, na certeza de que são realmente as minorias que fazem avançar o mundo.
In http://observador.pt/opiniao/dez-anos-quinze-parceiros-sexuais/