CARTA A MUITOS AMIGOS
A África é o nosso continente natal. A Humanidade descende dos nossos ancestrais que, do sul e leste caminharam para o Norte, estendendo-se depois para a Ásia, Europa e para as Américas, quando o Estreito de Behring ainda não separava o extremo da Ásia do Norte da América.
Diversas civilizações a chinesa, a indiana, o Médio Oriente, a Indonésia aqui aportaram muitos séculos antes dos europeus. O Islão aqui apareceu um bom meio milénio antes do cristianismo. As grandes armadas chinesas cá vieram comerciar e subiram o Zambeze em busca de ouro, marfim. Para a Índia e Médio Oriente vendiam-se escravos.
Com escassas forças a Europa ocupou a África.
Portugal não mobilizou sequer cinco mil homens para ocupar a nossa terra.
A Europa explorou as nossas divisões e ganâncias. Organizava um chefe para lutar contra o seu vizinho e assim assenhorar-se das terras, do ouro, das pessoas que venderiam como escravos. Divisões e ganâncias escancararam as portas aos inimigos.
Todos sofreram e o chefe conquistador de hoje, tão logo se via conquistado por outro para tal estimulado pela potência europeia.
Ficamos desumanos.
De tal modo que a Conferência de Berlim mediando as rivalidades europeias decidiu doar em 1877 ao Rei dos Belgas Leopoldo II o Congo dito belga como propriedade pessoal que, sem ironia, o denominou Estado Livre do Congo e, posteriormente, em 1908 legou o território e as gentes ao seu reino devido às numerosas denúncias públicas da exploração desenfreada da população e de diversos massacres.
Verdade, a colonização de Leopoldo e da Bélgica não se mostrou melhor nem pior daquilo que ocorreu nos demais territórios ocupados pelos alemães, franceses, espanhóis, franceses, ingleses e portugueses.
No caso da África do Norte, em particular na Argélia porque se queria lá implantar colonos houve grande violência para ocupar as terras, tal como na África do Sul, Rodésia do Sul e Quénia. Na nossa zona testemunhou-se a expulsão das populações para zonas inóspitas para se implantarem colonos nas boas terras. Os ingleses só queriam bancos, fábricas, minas, para os boers vencidos na guerra entregavam-se as terras férteis.
As campanhas anti-esclavagistas na Europa travaram o comércio de escravos e a guerra civil nos Estados Unidos pôs termo à escravatura. Mas o racismo persiste. Veja-se o Brasil, por exemplo. Quantos deputados, senadores, governadores e presidentes de municípios não brancos, quantos embaixadores e generais? Nas telenovelas brasileiras que por cá difundem incultura o não branco aparece como muleque, babá, jardineiro, vagabundo. Comparem os seriados brasileiros com os americanos onde negros e mulatos, latino americanos surgem como chefes, comandantes, generais, embaixadores, dirigentes.
A vinda de colonos portugueses para Angola e Moçambique ocorreu posteriormente bem entrado o século XX e sobretudo durante o período do chamado Estado Novo, sob a ditadura de Salazar.
Em São Tomé mandavam os latifundiários portugueses nas roças e angolanos e moçambicanos para lá se viam deportados, aí morriam e ficavam enterrados em covas anónimas. Houve parentes meus que lá desapareceram.
À Guiné-Bissau Portugal não ligava e até ao fim do colonialismo. Fez uma lá uma guerra para provar o princípio salazarista do Minho a Timor tudo Portugal.
Muitos problemas assolam a África independente, colónia apenas resta o disputado Saará Ocidental.
Do Norte a Sul diversas calamidades tombam sobre os africanos. Umas provocadas pela natureza e outras pelos homens, os dirigentes gananciosos que se querem donos de países e das gentes.
- De um modo geral os antigos colonizadores não perderam a sua natureza predadora e hoje transnacionais dominam países, governos não apenas em África como no Ocidente.
- Numerosos governantes africanos embora dirigindo repúblicas consideram-se monarcas absolutos, raros os países em que existem limites de mandato para Chefes de Estado, em nenhum se fixa limites para deputados, senadores etc. Sequer limites de idade e testemunham-se infelizmente já casos de senilidade.
- Por morte ou renúncia governantes querem transmitir o poder a filhos e esposas, como se o país fosse um curral ou machamba ou casa que se podem herdar porque o titular faleceu.
- Perseguem-se detêm-se antecessores e opositores.
- Amordaça-se a opinião, tecem-se louvores e hossanas a quem está no poder, como se todos vivêssemos na Coreia do Norte.
- Pilha-se o Estado e os bens do país, investe-se no estrangeiro e deposita-se em contas secretas em off shores.
Esta uma triste realidade que todos testemunhamos. Na nossa região apenas da Tanzânia, Namíbia e Botswana não ecoam escândalos e pilhagens.
Depois há o terrorismo.
Não ouço, não vejo, nem leio que na Nigéria e outros países vítimas do Boko Haram, que na Líbia, Egipto, Síria, Iraque, Afeganistão e Paquistão exista um conflito político-militar. Não falam desse tipo de conflito na França e Bélgica e outros países em que ocorreram atentados. Diz-se e correctamente que há acções e grupos terroristas.
Só em Moçambique teima-se em utilizar o termo conflito político-militar e todos se abstêm de denunciar o terrorismo, que assassina inocentes, destrói veículos, escolas, postos de saúde, etc.
Outros males nos assolam na nossa terra e nos vizinhos. A superstição, as falas mansas ou não de curandeiros e outros aldrabões exploradores de crenças e da ignorância.
Os albinos tornaram-se um alvo da patifaria.
Na minha terra, faz poucas semanas, desenterraram no cemitério uma pessoa de respeito que falecera em Agosto de 2015. Cortaram os braços e pernas e levaram, porque se tratava de um finado albino.
Felicito os tribunais de Pemba e Nampula que condenaram os autores destes crimes de rapto e assassinato de albinos a 30 e 40 anos de prisão.
Além dos autores dos assassinatos e mutilações dos pobres cidadãos e crianças albinas, há que ainda com mais severidade condenar os compradores de órgãos e os feiticeiros ou curandeiros que requerem este tipo de atrocidades. Estes os verdadeiros autores morais e os que incitam à barbárie.
Gostaria que a direcção da AMETRAMO se dissociasse e condenasse publicamente estes actos selvagens, que difundissem junto de todos os seus membros e à população o repúdio da infâmia.
A ignorância, a superstição, a mentira e a ganância ainda minam a nossa sociedade. Contra estes males, a Luta Continua!
P.S. Quando há atentados terroristas em Paris ou Bruxelas, na Nigéria, na Líbia, no Egipto, no Iraque, Síria, Paquistão nenhuma comunicação social fala de conflito político-militar. Actos similares na nossa terra são tratados na comunicação social como conflito político-militar. Brincamos com palavras e dão-nos rebuçados em vez de comida. Por favor, honestidade!
SV
O PAÍS – 31.05.2016