As férias vão-nos trazendo novidades. Ainda não chegaram ao fim, mas prometem muito mais.Numas regiões admoestam-me por me expor demasiado àquilo que consideram condições inadequadas de transporte e alojamento.
Esquecem-se de que sou produto dessa exposição e não me vejo com nada a mais que me proíba a viver como o fazia há dois ou três anos.
Agradeço, todavia, a ajuda e nalguns casos peço desculpas por parecer renitente. É que a vida maniente não me é familiar. Prefiro a realidade. Por isso, nalgumas regiões fugi ao protocolo improvisado a favor de quem não viam há algum tempo e sobre quem quiseram inventar alguns adjectivos, absolutamente postiços.
Foi numa dessas fintas ao protocolo que fiquei horas a fio com André Remígio, na paragem de Metoro, distrito de Ancuabe, Cabo Delgado. Ambos queríamos um meio de transporte que subisse para os distritos do Norte da província, numa altura em que os convencionais haviam seguido viagem. Estávamos atrasados. Era a vez de apanhar qualquer meio que nos aceitasse, de que modo fôssemos sentados.
Estava claro que o Remígio teria mais dificuldades, a sua bagagem era bem enorme e de certa maneira descomunal, mais pelo seu conteúdo. Cerca de 100 quilos de ratos, caçados nas margens do rio Megaruma, que divide os distritos de Ancuabe e Chiúre. O destino era a vila autárquica de Mueda, onde afinal os roedores são um alimento bem apreciado.
Remígio diz-me que soubera que havia uma praga de ratos a prejudicar a colheita de produtos agrícolas em Megaruma. Veio avaliar e descobriu que as quantidades eram comerciáveis, tendo depois se munido duma ratoeira e, em seis dias, conseguido aquela quantidade respeitável dos animalzinhos que os secou, prontos-a-servir, para mais uma tentativa de contornar a crise económico-financeira que a todos apoquenta.
Numa região onde os ratos não fazem parte da alimentação, André Remígio só teve um amigo naquela paragem: eu, que pretendia ouvir a sua experiência para alimentar este espaço. Os outros passageiros até se distanciaram de nós, talvez por isso, conseguimos uma boleia rapidamente, isolados que estávamos.
Disse-me que não era a primeira vez que o fazia. Que o negócio era rentável e que no planalto estava a ser esperado com alguma ansiedade. A colheita tinha sido robusta e pensava que estava “feito” porque numa assentada diária consegue cerca de três mil meticais.
Remígio diz mais: na minha cultura comemos ratos sem disfarce nem vergonha. Por outro lado, nós, os macondes, somos literalmente proibidos de roubar desde a nascença, facto que se repete nos ritos de iniciação. Somos obrigados a fazer alguma coisa para nós, para a nossa sobrevivência e nunca roubar!
De momento a momento, Remígio recebia chamadas telefónicas que lhe cobravam incessantemente o seu posicionamento espacial e se seria naquele dia, 14 de Julho, que chegaria a Mueda com a carga. Orgulhosamente, ele fazia-me entender que a espera estava a inquietar os seus clientes em Mueda.
O colega de viagem troçou a quem ainda se dedica ao roubo para sobreviver numa terra onde tudo se pode aproveitar, incluindo aquilo que não comem, porque, afinal, para os outros serve. Aqui se riem de mim, em Mueda sou esperado como salvador. Quanta contrariedade, numa mesma província!
Pedro Nacuo
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JORNAL DOMINGO – 24.07.2016