Termo utilizado para referir armas de fogo antiquadas ou de fabrico artesanal, sendo, no geral, referidas como “armas de carregar pela boca”, e, por isso, também chamadas «espera-pouco».
Nos séculos XVI e XVII, os “mosquetes”, os “canhangulos”, a pólvora e o chumbo foram introduzidos pelos europeus, indianos, brasileiros, árabes e suaílis nas for -mações sociai s moçambicanas a troco de ouro, marfim, peles e escravizados. A grande expansão deste comércio deu-se a partir de meados do século XVIII, quando numerosas armas foram fornecidas aos chefes africanos do Niassa e do distrito de Moçambique com vista a facilitar a captura de seres humanos para o comércio escravista.
Um autor anónimo assinalava em 1784 que para além das armas tradicionais de arremesso usavam os nativos espingardas «que lhes vendem os portugueses à surdina e nelas se acham bem destros» (Anónimo, 1947), uso que já em 1766 era noticiado para a caçada ao elefante (Miranda, 1954).
A difusão local das armas e da pólvora fazia-se segundo os interesses específicos dos diferentes grupos de comerciantes e à revelia, no início, da própria coroa portuguesa, que acabou por legalizar a sua venda pela primeira vez em 1787.
Até final de oitocentos, salvo nos Prazos do Vale do Zambeze, as armas que entravam em Moçambique serviam nas lutas entre grupos locais, sobretudo para a captura de gente para o tráfico e no confronto com os residentes dos entrepostos e feitorias do litoral.
Até uma data mais tardia, só muito raramente as armas e a pólvora eram usadas nas caçadas. E isto pelos seguintes motivos: as armas eram ainda pouco eficientes para estes fins e a pólvora demasiado cara.
O comércio do marfim, peles, pontas de abada (rinoceronte) e dentes do hipopótamo era monopólio dos chefes, que obtinham estes produtos através das prestações tributárias quer das caçadas que organizavam com armas e armadilhas tradicionais.
De acordo com o viajante inglês Henri Salt, que andou pelo distrito de Moçambique (hoje província de Nampula) em 1809, os guerreiros desta terra pelejam com lanças, dardos, setas envenenadas e espingardas, possuindo destas um considerável número que recebiam dos árabes e dos portugueses (Salt, 1944).
No final do século XIX, com o fracasso da resistência africana e com a subsequente consolidação do domínio colonial e implantação do sistema capitalista (desenvolvimento agrícola, trabalho migratório, etc.), mas também aumento da procura de peles e marfim, a maioria das armas existentes passaram a ser utilizadas quase que exclusivamente nas caçadas.
O número de caçadores semiespecializados de animais de grande porte aumentou devido à procura daqueles produtos.
Nos dois primeiros decénios do domínio majestático da Companhia do Niassa, as armas de fogo e a pólvora eram comercializadas livremente, e com taxas alfandegárias mais baixas que no vizinho distrito de Moçambique. Eram trocadas por marfim, borracha, cera de abelha, e amendoim. Eram também oferecidas a agentes negros do colonizador por “serviços prestados”.
Transitavam ilegalmente por Ocua e Mecúfi para o distrito de Moçambique. Na mesma altura ainda se trocavam neste último distrito armas por marfim, peles e escravizados.
Na região de Angoche, no mesmo distrito, Lupi mencionava num trabalho datado de 1907, a existência de muitas espingardas, mas todas de carregar pela boca e, na sua maior parte, de pederneira. Fazia-se um consumo muito grande de pólvora, gastando-se, para cada tiro, dois decilitros e meio (Lupi, 1907, p. 104). Contudo, como referi num outro texto sobre os suaíli, Mussa Momad Saibo (Mussa Quanto), sultão de Angoche, chegou a dispor de um exército armado com mais de seis mil espingardas, número que nos parece exagerado.
Seja como for, a espingarda parece ter sido muito mais usada no Norte de Moçambique que noutras regiões da então colónia. Aliás, após a conquista imperial, os portugueses recolheram dezenas de milhar de espingardas (Botelho, 1936, p. 618).
As armas de fogo obtidas dos árabes, suahíli, portugueses e outros europeus, sobretudo franceses e ingleses eram um extraordinário bem de prestígio usado nas relações clientelares clânicas e do poder territorial. Mas no auge da captura de seres humanos para o trato e nas guerras contra a expansão e conquista portuguesa fortaleceu a reviravolta ocorrida no âmbito da conjuntura do final do século XIX e início do seguinte.
Nessa conjuntura estava também a desenfreada venda de armas de fogo e de pólvora através do território da Companhia do Niassa e, clandestinamente, pelos comerciantes portugueses e asiáticos do litoral do distrito de Moçambique. Em 1889 as armas e a pólvora eram os «artigos com que se fazem, quase que exclusivamente, as permutações no interior» (Amorim, 1889, p. 142).
Até cerca de 1890, altura em que se inicia grosso modo a ocupação colonial de Moçambique, o acesso e utilização de armas de fogo nas comunidades negras do centro e do norte de Moçambique eram controlados pelos chefes clânicos e territoriais e pelos senhores dos Prazos e dos «Estados do vale do Zambeze». Estes chefes distribuíam-nas pelos homens livres do seu séquito e, no Vale, pelos cativos guerreiros chicundas. Depois desta data, liberalizou-se de certo modo a sua distribuição, mas o novo proprietário não deixava de a “registar” na chefia da sua linhagem e ou do seu território, pois o sistema tributário (relativo às caçadas, por exemplo) continuou por muito tempo.
Por: Eduardo Medeiros
Jornal Ikweli – 16.08.2016