O professor catedrático jubilado de políticas de saúde tem 75 anos, mas continua o trabalho para melhorar o SNS
É no gabinete que tem agora no Ministério da Saúde que Constantino Sakellarides nos recebe numa tarde de quinta-feira. Depois das quatro, deixou a agenda livre para a conversa correr sem condicionalismos. Não vamos falar apenas de saúde, como é hábito, mas de si, da família, de uma história que começa na Grécia, chega a Moçambique, passa por Portugal e se estende aos Estados Unidos, a Espanha e à Dinamarca. Uma vida preenchida por um casamento, três filhas, cinco netos e muitos projectos, que foi acontecendo sem grandes determinismos mas com optimismo. Naquele fim de tarde foi desfiando cada época, cada momento ou experiência com uma história ou uma personagem que o marcaram ou serviram de exemplo, sempre com convicção ou emoção nas palavras. Foram cerca de três horas. Era a primeira vez que dava uma entrevista de vida. O telefone começa a tocar e, mesmo assim, consulta a sua lista de pessoas, de livros, filmes e música que o acompanha. De Che Guevara a Martin Luther King, de Nelson Mandela ao Papa Francisco, este colocado recentemente porque é uma pessoa absolutamente notável, do livro O Vermelho e o Negro, de Stendhal, que tem tudo o que um livro deve ter, ao Memorial do Convento, de Saramago, um dos mais poéticos sendo prosa que já leu, passando pelo clássico de cinema O Homem Que Matou Liberty Valance a uma comédia indiana mais recente e que recomenda, A Lancheira, que retrata a classe média, a Não Chores por Mim Argentina num dueto de Andrea Bocelli e Nicole Scherzinger, este é o outro lado do professor catedrático jubilado que só os que o tratam por Costa ou Saka conhecem.
Comecemos pelo nome: Constantino Theodor Sakellarides.
Eu sou Constantino, por ser filho de Theodor Sakellarides, o meu pai. Não tenho o nome da mãe, os gregos não usam. E sou Constantino de nome próprio, por ser o nome do meu avô, que vem de São Constantino, o imperador que introduziu o cristianismo no Império Romano, um santo popular na Grécia, como sua mãe, Santa Helena. Metade dos gregos são Constantinos, mas hoje já abreviam para Costa, mas os Costas são todos Constantinos. Quando fui à Grécia pela primeira vez, e já tinha 40 anos, perguntaram-me se a minha família era monárquica, só os monárquicos mantinham o nome completo, o povo abreviava para Costa, era mais prático. Constantino é como João ou José em Portugal, nada tem de particular. Theodor, sabe o que significa? Dádiva de Deus.
O simbolismo teve algum peso?
Não muito. É a tradição grega.
E diminutivos teve?
Tenho dois. Para os colegas e amigos sou o Saka, quando jogava basquetebol no Académica de Coimbra e nas equipas de Medicina só me conheciam assim, para a família sou o Costa, é o diminutivo grego. Isto sem falar na colecção de mil e uma maneiras de escrita que me aparecem em casa ou no trabalho, em envelopes e noutras coisas. Já nem discuto, apenas digo escreva como ouve.
Os pais são gregos mas nasceu em Moçambique, como é que aconteceu essa mistura com África?
Foi uma história impressionante. O meu pai nasceu no Norte da Grécia e foi com a família, que era da Macedónia, para a África do Sul aos 5 anos e depois para Moçambique, nos anos de 1920. A minha mãe era filha única, nasceu no Cairo, mas a mãe dela era da Cefalónia, uma ilha do mar Jónico entre a Itália e a Grécia, ainda tinha descendência italiana, e o pai era de Creta, uma mistura mediterrânica magnífica. Um dia o pai dela resolveu ir ter com um primo a Lourenço Marques (agora Maputo), em Moçambique. Deixou o negócio no Cairo e foi para lá, as coisas começaram a correr bem e enviou uma carta à mulher a dizer que vendesse tudo e partisse com a filha. Ora, naquela época, o tempo de a carta chegar, desfazer a casa, apanhar o barco para África e chegar lá passou quase um ano e meio. Quando chegaram, a minha mãe tinha 17 ou 18 anos e a mãe quase 40, o homem tinha desaparecido. Foram procurar o primo, em casa de quem se tinha alojado, que lhes disse que o marido (o meu avô) se tinha zangado com ele e desaparecera. Já viu o que era duas mulheres em África sem nada, só com as malas com os seus pertences? A minha avó começou a costurar para fora e a ganhar uns dinheirinhos. Mas qual foi a solução: casar a rapariga. E a palavra mágica era: homem estabelecido, que tivesse alguma coisa de seu. Encontraram o meu pai, 12 anos mais velho do que a minha mãe.
E foi assim...
Espere, uma semana antes do casamento, a minha avó recebe uma carta do Cairo do marido a dizer: "Cá estou no Cairo outra vez, voltem." A minha mãe disse à minha avó: "Se voltas, vou contigo." Mas a minha avó escreveu a dizer-lhe: "Vou casar aqui a tua filha, se quiseres vir ter comigo vem, eu não volto para o Cairo." E ficou 40 anos, até morrer aos 70 e muitos, para casar a filha. Foi assim que nasci eu e as minhas três irmãs.
E os seus pais ficaram em África
Ficaram. Era a cultura da emigração. Quais eram os valores da emigração? Primeiro a família e depois o futuro dos filhos. E assim foi. As minhas três irmãs foram dotadas para casar e eu para educar. O meu pai trabalhou os anos todos da sua vida para me permitir estudar e às minhas irmãs para que casassem.
O que faziam...
O meu pai alugou o café na estação dos caminhos-de-ferro de Lourenço Marques. Ele viveu ali dos 18 até aos 60 e muitos anos. Abria a loja às sete da manhã e fechava às nove da noite. Eu cresci ali. A estação dos caminhos-de-ferro era a minha casa. Via os comboios a entrar e a sair, conhecia as pessoas todas, os maquinistas e todas aquelas máquinas magníficas a vapor, ficava deliciado.
Era o filho mais velho?
Não, sou o terceiro. O mimado da família. O único rapaz no meio de três raparigas, era uma festa. É sempre muito bom.
Marcou-o ter crescido em África?
Marcou-me depois, não nessa altura. Nessa altura, era português, nascido em África, mas não era nada africano. Vivíamos numa grande aldeia no meio de África, mas nada era África. No meu liceu - o Liceu Salazar - havia dois africanos, Pascoal Mocumbi (médico e político, já foi ministro da Saúde e dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro) e Joaquim Chissano (ex-presidente da República) que andava um ano à minha frente, se não me engano. Pascoal foi meu colega de turma e ainda me dou com ele. Mas estranhava como é que estando em África no liceu só havia dois africanos, mas era assim. Crescemos, sim, numa verdadeira colónia em África. O Óscar Monteiro, que foi meu colega de liceu e escreveu há pouco tempo um livro sobre a história da independência de Moçambique, diz uma coisa interessante: os alunos eram de dois tipos, os nacionalistas e os outros que vinham para cá estudar. Eu estava com eles, mas nunca fui um nacionalista africano. Nunca me senti africano, gostei de crescer em Lourenço Marques, numa colónia confortável, no meio de amigos, no meio de uma geração que cresceu fácil, mas que cresceu com gosto e que foi marcada por uma ideia: o mundo não tem limites, a minha geração, ou melhor uns 20 ou 30 desta geração, gritava que podíamos fazer o que quiséssemos. Se quiséssemos medicina, fazíamos medicina, se era diplomacia, fazíamos diplomacia, se era política... Não havia limites
Foi isso que o trouxe a Portugal?
Tornei-me português. A minha língua era o português, os meus amigos eram portugueses, fiz a escola em português, as minhas leituras eram em português. E há uma dada altura do crescimento, por volta dos 11 anos, em que não queremos falar grego, eu ainda falava, mas havia muita gente dessa idade que conhecia que não, porque eram vistos pelos outros como diferentes e não queriam ser, queriam ser iguais aos vizinhos. Eu tinha elementos culturais gregos, mas culturalmente era português. Podia ter ido para a África do Sul, mas tinha de perder um ano para ganhar o inglês universitário. E aos 18 anos a pessoa não quer perder ano nenhum. E os meus amigos vinham todos para cá.
Os seus pais aceitaram bem?
A minha mãe era mais instruída do que o meu pai, a primeira língua dele era o inglês, falava mal o grego e o português não muito bem. Era um português de comerciante. A minha mãe estudou no Cairo, num colégio, e aprendeu francês, grego, alguma coisa de árabe, inglês e português. Ela compreendia melhor que eu quisesse Medicina. O meu pai apoiou-me sempre, mas não achava grande ideia. Dizia-me: "O que tu quiseres estudar eu apoio--te, temos dinheiro, mas não acho boa ideia." Ele dizia: "Se fizeres um curso intermédio, trabalhas aqui num banco, não tens um emprego duro e desinteressante como o meu, sobes um degrau, não dois ou três, e ficas mais perto da família. Se vais para longe estudar, casas longe, perdes a língua, afastas-te da família. Não vale a pena." Aos 18 anos não queria ouvir isto, mas depois reconheci que ele tinha alguma razão. A minha família vive na África do Sul. Vou lá de três em três anos ou de cinco em cinco. A lógica dele era a da família, sempre. Eu também investi muito e não me dei mal. Acho que vale a pena.
Já vamos à família, começou o curso em Coimbra, passou pelo Porto e terminou em Lisboa.
Escolhi Coimbra por prudência, precisava de um ambiente em que me relacionasse facilmente. Quando desembarquei de comboio não sabia para onde ir. Saí da estação e vi pessoas de boné na cabeça que andavam a recrutar gente para as pensões, fui ter com um e disse-lhe que ficava na pensão naquela noite até me orientar. Mas assim que deixei as malas no quarto e subi à Rua Ferreira Borges encontrei um colega que já tinha vindo no ano anterior, o José Luís Cabaço, que depois foi ministro da Cultura em Moçambique e que estava a tirar Direito, que me disse: "O que estás aqui a fazer?", eu respondi que estava numa pensão. "Numa pensão, estás maluco? Vens é para a nossa casa." Umas horas depois já estava a socializar e tinha amigos. Em Lisboa, isto não aconteceria. E foi onde conheci a minha mulher, portanto foi uma boa decisão. Os três primeiros anos foram lá, o quarto ano era clínico e o hospital de Coimbra era o velho mosteiro, que não tinha condições. Comecei a ver os meus colegas no São João, no Porto, e em Santa Maria, em Lisboa, e fiquei com uma inveja terrível. Tinha de escolher um destes para fazer o 5.º e o 6.º anos, como namorava em Coimbra escolhi o Porto para ir ao fim de semana. Lisboa era o dobro do caminho e do preço. Quando acabei o 6.º ano, a minha mulher já se tinha formado, íamos casar, mas ela arranjou emprego em Lisboa. Portanto, vim fazer o último ano e o estágio à capital. Comecei em Coimbra, onde a conheci, ela andava em Direito, fui para o Porto para não ficar longe, vim para Lisboa para acabar e ficar ao pé dela. Como vê, os homens seguem as mulheres, ao contrário do que se diz.
Mas depois deixou de ser assim. Ela aceitou sempre as mudanças?
Aceitou. A minha mulher tem muito bom feitio, aceitou sempre bem estas voltas, algumas com separação. A primeira vez que fui para os Estados Unidos fui sozinho, ia só fazer nove meses de mestrado e fiquei quatro anos para o doutoramento, a família foi ter comigo, foi uma das condições. Para Granada fui sozinho, vinha aos fins-de-semana. Para a Dinamarca fomos todos.
A família foi sempre importante.
Foi para os meus pais e para mim. Mais uma vez, eram os valores da emigração: a família, o futuro dos filhos, a cultura e depois a língua. Em minha casa tivemos de aprender grego, falo sem grandes complicações, mas nunca estudei. Quando estava em Coimbra, a minha mãe escrevia-me em grego. Eu via-me atrapalhado para ler as cartas, mas devagarinho e letra por letra lá as ia compondo. Se se perde a língua perde-se os laços, diziam-nos. As minhas irmãs casaram-se todas com descendentes de gregos, eu tive mais liberdade. Vim para Coimbra e casei com uma portuguesa.
Foi difícil convencer a família?
Não foi fácil. Os meus pais queriam que eu casasse com uma grega e eu tive de chamar à conspiração a minha irmã mais nova. O meu pai desde que saiu da África do Sul nunca mais viajou. Era muito conservador, não gostava de grandes mudanças. A minha mãe era o contrário, e aproveitou o facto de eu me ir formar em Portugal para convencer o meu pai a viajar. Então combinaram ir a Londres, o meu pai era doido por Inglaterra, passar pela Grécia, que nenhum deles conhecia, irem ao Cairo, onde ela tinha nascido, e depois virem à minha formatura, ao Porto. E combinei com a minha irmã marcar um quarto num hotel para eles e outro para a minha namorada, que fui buscar a Coimbra, e que não fazia ideia de que eles estavam cá. A minha mulher, inocentemente, aceitou, se calhar se soubesse resistia. Uma bela tarde apareço no hotel com ela e disse-lhes: "Pai e mãe, esta é a Maria Fernanda." Eles ficaram os três calados. Fomos almoçar e jantar os cinco durante dois dias. Depois foi a festa de formatura e na minha república, Os Lysos, no Porto foram recebidos como "pais de todos", era esse o espírito, e ficaram emocionados com toda a sensibilidade, o que me ajudou na minha conspiração. Mas o plano deles era passar mais dois dias num hotel em Lisboa antes de apanharem o avião para Moçambique. E eu voltei a marcar um quarto para a minha namorada no mesmo hotel deles, viemos para Lisboa e um dia à noite apanhei o meu pai sozinho e disse-lhe: "Olhe, pai, não sei se reparou, mas namoro com a Maria Fernanda e nós pensávamos casar para o ano, quando ela acabar o estágio e tiver emprego." O meu pai não disse nada, mas ele também era acanhado em questões pessoais, quem tratava disso na família era a minha mãe. Durante aqueles dias não houve mais nada, na véspera da partida fomos ao cinema ao Monumental ver o filme Dr. Jivago, e depois do filme ceámos no restaurante que havia ali por baixo. No fim da ceia a minha mãe abre a carteira e tira uma caixinha com um anel de noivado, ainda fico emocionado quando falo nisso, e deu-mo para eu pôr no dedo da Maria Fernanda. Um gesto muito bonito. E nunca disseram nada, nem sim, nem não, nem talvez. Casámos um ano depois, em Dezembro de 1966. Vai fazer 50 anos e 55 de namoro.
E o seu casamento é assim "uma lua-de-namorados", uma expressão que utilizou em tempos para definir os anos de 1960?.
Eu e a minha mulher somos muito diferentes, ela é terra, uma pessoa com os pés no chão, muito valente, persistente, muito low profile mas muito forte, mais do que eu. Filhas e netos reconhecem que o centro da família é ela. Eu tenho devaneios filosóficos, agora vou fazer isto, aquilo e mais isto, ela não os tem. Completamo-nos muito bem. Tivemos um namoro longo, cinco anos, não tínhamos condições para nos casarmos e naquele tempo não havia fase intermédia, ou se era casado ou não. É uma relação que funcionou muito bem. Quando as minhas filhas me perguntavam o que achava dos namorados eu dizia-lhes sempre: "Procurem saber se é vosso amigo." O que liga as pessoas, além do afecto entre um homem e uma mulher, é o respeito que têm um pelo outro e a amizade. Eu não me vejo a fazer mal à minha mulher. Só a ideia de que a poderia magoar é insuportável. Nós não somos capazes de magoar pessoas de quem gostamos. Este é o teste às relações.
E quando é que percebeu que queria ser médico?
Isso foi quase um capricho. A minha mãe, que era uma entusiasta de que eu fizesse um curso, achou que devia ser Farmácia. O meu pai não se pronunciava. Mas o meu melhor amigo começou a dizer-me: "É pá, Farmácia? Já agora vamos fazer Medicina, que é melhor." Foi das mais levianas decisões que se pode imaginar. Havia uma coisa que talvez tivesse que ver com a emigração, queria uma arte que me permitisse exercer em qualquer lugar. Foi este critério pragmático de fazer uma coisa técnica em qualquer parte do mundo, sem estar condicionado. Se correr mal, vamos para outra parte do mundo. Era o estar pronto para fazer a mala, não estar preso, mas só nessa perspectiva.
Hoje ainda é assim?
A prática médica continua a ser uma profissão muito independente. É uma arte que se pode fazer no meio do mato, nos Himalaias, numa grande cidade. Isso dá-me a sensação de liberdade, e essa sensação nunca a perdi, só se acentuou. Deixou de ser a principal razão, mas nunca a perdi, e teve o seu peso na fase seguinte. Acabei o curso e fui fazer medicina rural em Moçambique, parte dessa atracção era o estar sozinho e fazer a minha arte.
Foi por isso que regressou logo?
Sim. Acabei o curso e inscrevi-me no quadro comum do médico do trabalho, que se destinava aos médicos que queriam ir para as colónias, mas na condição de me colocarem em Moçambique. Não fui logo para o mato, passei um ano duro, muito interessante, no Hospital da Beira, a fazer treino cirúrgico, traumatologia e obstetrícia. Tive um treino intensivo com a Dr.ª Maria Manuela Feytor Pinto, irmã do padre Feytor Pinto, com quem aprendi a fazer obstetrícia. Depois tive um mestre em cirurgia que era espectacular, daquelas pessoas de quem se fica amigo para o resto da vida. O Dr. Arez da Silva, cirurgião formado nos Hospitais Civis de Lisboa, uma pessoa absolutamente notável profissionalmente e de princípios, ali não havia mais ou menos, que é uma coisa que me irrita na cultura do Sul. A ambiguidade é para a arte, na vida real tem de haver regras e rigor e o Dr. Arez da Silva representava isso. Quando fui trabalhar com ele disse-me: "Olha, eu vejo os meus doentes todos os dias, domingos, feriados, chova ou troveje. Comigo só trabalham as pessoas que fazem como eu." Foi um mestre magnífico.
Voltando à década de 1960, viveu os movimentos estudantis?
Chegávamos de Moçambique absolutamente inocentes. Havia pessoas cujas famílias tinham um grau de instrução e de consciência política grande, mas a minha família era apolítica no sentido emigrante do termo. Mas dois anos em Coimbra e ficava-se altamente politizado. Falávamos de política à mesa, íamos a reuniões, assembleias-gerais, fugíamos à polícia... Era quase tudo da oposição. O principal factor de consciencialização política era o absurdo da falta de liberdade para se exprimir a opinião. É claro que tudo isto acelerou à volta da greve estudantil de 1962, que surge por não se poder festejar o dia do estudante e que foi um enorme factor de politização da minha geração.
Até ao 25 de Abril... estava nos EUA, mas disse que foi "o champanhe que soltou a rolha"?
Exactamente. Mas foi um champanhe que não durou muito tempo, foi como a espuma do champanhe.
Com o champanhe há a libertação de energia, a euforia e umas mudanças, mas depois o país real, aquilo que nós somos como país, o nosso grau de desenvolvimento, o nosso nível de educação, o nosso grau cívico faz com que a partir de certa altura haja uma regressão. Isso era inevitável, porque o país era extremamente atrasado.
Mas a consciência para a saúde veio dessa liberdade.
A área da saúde tem que ver com a liberdade, não só a liberdade no sentido de liberdade de expressão, mas liberdade no sentido social do termo, o ter acesso a cuidados de saúde ou à educação é uma consequência da outra. Começamos naturalmente com o que é mais simples e mais intuitivo, a opressão da opinião, mas depois caminhamos também para um processo que é natural com a concepção de que há outras liberdades, como o ter educação ou o ter acesso à saúde, que são valores indiscutíveis.
Tantos anos ao serviço do sector público e nunca foi ministro ou secretário de Estado, porquê?
Não tenho competências para esses cargos. Precisamos de bons políticos e os bons políticos são as pessoas que têm uma rede política. Não é no sentido de troca de favores, mas no sentido de conhecerem bem a sociedade com que se pode interagir para resolver dificuldades e a quem podem pedir conselhos e ajuda. Para se ser um bom político é preciso investir num determinado estilo de vida, no qual não me revejo. E é perigosíssimo ocupar cargos políticos sem se ser político.
Está reformado, continua a participar em projectos para o SNS. Fizemos o percurso certo ou pagamos o preço de muitos erros?
Não sou muito determinista, não sei se podíamos fazer melhor. Os líderes podiam ser melhores, mas os líderes são um espelho da massa. Não existe um país atrasado com líderes iluminados. Essa tendência habitual de se separar os eleitos dos líderes e a sua qualidade do resto do conjunto da população é uma ideia que não resiste à mais pequena análise crítica. Queixamo-nos de que as nossas instituições são pesadas, não são competentes, não têm grande cultura de mérito, mas as instituições são um reflexo do país. O país é assim, as pessoas portam--se assim. E, se virmos bem, o SNS tem sido melhor do que o resto do país, de uma forma geral.
O SNS tem cumprido o seu papel?
Sem dúvida, mas vamos com calma. Acho que ultimamente temos ultrapassado momentos perigosos, não é verdade que seja assim hoje e que seja assim num futuro mais próximo. Temos de ser críticos, ou seja, foi um primeiro passo para a democracia portuguesa, ainda hoje é uma instituição que se situa acima das outras em termos do país, e não pode ser de um país diferente, porque é deste país assim, mas há factores nos últimos anos e presentemente que o põem em alto risco. A Europa que temos, esta Europa em degradação e que é contra os Serviços Nacionais de Saúde. A lógica da sociedade financeira como primeiro valor, sem cuidar de associá-la ao bem-estar das pessoas, tem como resultado imediato uma perda de qualidade dos serviços públicos muito grande, por via dos cortes financeiros, mas também por via de perda do seu capital humano. Ou seja, a política de austeridade alimentada pelo essencial da Europa e muitas vezes bem inserida pelos nossos governos é contra os serviços públicos e contra o SNS. Quanto a isto não podemos ter meias-palavras, é absolutamente verdade e os efeitos são claros. Se não conseguirmos uma forma de minorar esta influência europeia e os seus agentes internos não vamos ter muito tempo SNS.
A tendência é para acabar...
Se não conseguirmos uma Europa diferente, os riscos são muito grandes. Não estou a falar só de Portugal, estou a falar de serviços públicos de uma forma geral. As políticas públicas para funcionarem a favor das pessoas têm de ter três aspectos que se equilibram, financeiro, económico e bem-estar social, quando estes deixam de estar em harmonia e passam a uma hierarquia: primeiro o financeiro, depois a economia e só depois o bem-estar, deixa de ter futuro com fins de qualidade. Este é um factor muito importante. O segundo factor é a reforma do Estado, que tarda em se fazer e sem ela também não há futuro para o SNS.
O que é a reforma do Estado?
Um Estado gerido em função do seu desempenho e dos seus resultados e não de outras coisas que até são ofensivas intelectualmente. O nosso sistema político ainda não entendeu, não ganhou força suficiente para entender que Educação, Segurança Social e Saúde não progridem sem uma reforma do Estado. Podem experimentar avanços e recuos, mas não progridem.
Porquê?
A reforma dos cuidados de saúde primários foi a primeira e única reforma do Estado na Saúde, porquê? Porque se deu autonomia às pessoas, dissemos: vamos acreditar nelas e permitir que escolham o seu mediador, vamos contratualizar o seu desempenho e tentar pagar de acordo com o desempenho. Mas esta reforma do Estado tem enorme oposição, começando no Tribunal de Contas e acabando nas Finanças. Não segue as regras da administração pública tradicional. Toda a gente recebe o mesmo da mesma forma, independentemente do que faz. O mundo não funciona assim. Uma nova administração moderna tem de estar associada aos resultados do desempenho e isso pode ser neutro a nível de orçamento. Isso implica uma coisa culturalmente muito importante, que é a licença para discriminar.
Licença para discriminar?
Vou dar-lhe um exemplo: estive nos EUA durante quatro anos. Fiz mestrado e doutoramento com uma pessoa excepcional, o director da Escola Nacional de Saúde Pública, em Houston, no Texas. Foi ele que me propôs o doutoramento. Disse-me: "Trabalhas connosco como investigador assistente, pago-te uma parte do ordenado e a outra é o doutoramento. Eu aceitei. A Universidade do Texas é uma instituição pública, a minha categoria dizia que eu podia receber entre 8 e 18, quanto é que eu recebia? O que ele dissesse, e o que ele dissesse só eu sabia e ele, e mais ninguém perguntava, se alguém o fizesse era altamente anético, não ético, porque era ele que decidia. Isto numa escola pública nos anos de 1970. Quando estava a acabar a minha tese, perguntou-me: "Como estás de dinheiro?" "E eu respondi: "Estou bem." E ele: "Mas já acabaste a tese." Pega no telefone e disse a quem estava do outro lado: "Fulano tal passa a tempo completo." Eu fiquei espantado, quem era o tipo que por telefone aumentava o ordenado a alguém em 25%? Ele reparou e disse-me: "Estás espantado?, Se eu me enganar muitas vezes perco o emprego. Tenho licença para discriminar, mas está associada ao desempenho, se eu não publicar ou se os resultados falharem vou-me embora. É esse passo que ainda nos falta. Pode haver uma regra, mas tem de haver licença para discriminar positivamente.
Senão o que acontece?
Senão nunca cresceremos. O nosso movimento sindical tem de crescer também nisso e tem de fazer parte desse crescimento, não pode ser um factor de nivelar por baixo ao exigir que todos têm de ser iguais. Todos somos diferentes, devemos ser vistos de uma forma diferente, remunerados de forma diferente, mas em condições em que essa licença para discriminar dê bons resultados, que sejam públicos, visíveis e transparentes. Esse é o caminho.
Nessa perspectiva as carreiras médicas fazem sentido?
Fazem, são outra coisa. São um veículo de qualificação, mas não discriminam. Eu posso ser um excelente médico mas não ser um bom gestor ou um bom líder. Essa separação entre qualificação na carreira, que é técnica e fundamental na qualidade das pessoas, deve ser distinta da discriminação que é utilizada para a qualificação de lugares. Faço a minha agregação na universidade, que permite ser professor catedrático, mas só devo ser professor catedrático se a universidade reconhecer que eu posso ser bom líder. Se não o reconhecer não me pode pôr lá, isso não deve acontecer pura e simplesmente. Não é uma expectativa legítima que aqueles que têm agregação venham a ser professores catedráticos. Não é obrigatório. Um professor catedrático tem de ser uma pessoa que é reconhecida como sendo capaz de conduzir um departamento e um grupo de pessoas, há académicos que são agregados e que são péssimos condutores de pessoas e de departamentos, não tinham de ser professores catedráticos. Para o país avançar não pode haver um sistema de concursos administrativos.
Também devem acabar?
Mais uma vez os EUA. Numa reunião de docentes para escolher pessoas: 15 docentes à volta da mesa e três currículos. Têm de chegar a um consenso. No meio da discussão, o chefe, em cultura académica é assim, diz, não querem ver este currículo? E passa. Estavam a ver currículos de pessoas em nutrição e ele colocava em cima da mesa o de uma pessoa de ciências sociais. Ficou tudo a olhar para ele. E ele disse: "Esta pessoa ficou entre os 20 melhores antropólogos sociais dos EUA, antropólogos da saúde, esses nutricionistas nenhum deles está entre os primeiros 50 dos EUA. Aqui não interessa o que a gente ensina, o que interessa é a qualidade das pessoas." Agora pegue nesta lógica e compare-a com o tipo de concursos que nós temos para os cargos académicos. Não pode ser. Este meu director da escola dizia."O que vale aqui é a minha opinião e a minha reputação, que conquistei por mérito." E esta é a cultura necessária para se funcionar.
O SNS tem sido vítima dos sucessivos governos?
Acho que há um equívoco que o tem prejudicado muito, o chamado teatro político. Toda a gente em Portugal diz, politicamente, que está com o SNS, mas não é verdade, e essa ambiguidade é terrível. Era melhor que o sistema político dissesse que não devemos ter SNS e que o devemos politizar. E nós temos tido alternâncias entre líderes políticos que são genuinamente a favor do SNS e que querem transformá-lo e melhorá-lo e outros que têm um discurso como se fossem pelo SNS e não o são, isso é altamente corrosivo. Tem havido períodos de regressão e de avanço, mas a questão volta a estar na reforma do Estado. Há sempre a acusação de que o SNS funciona pior do que o privado, o que em certas circunstâncias é verdade e em outras não, mas porque não se reforma o Estado? Nos exemplos que temos e em que se conseguiu fazer com que o Estado evoluísse, ele consegue fazer o que deve, os sectores público e privado têm lógicas diferentes. Pode haver uma lógica excelente de gestão pública, mas tem de permitir um Estado com uma gestão pública decente. O que tem prejudicado o progresso do SNS e o progresso do país é a incapacidade que temos de fazer a reforma do Estado.
"Têm feito uma sangria no Serviço Nacional de Saúde"
Então o problema do SNS não é como servir melhor o utente, mas como mudar a gestão incompetente?
Exactamente. Uma gestão adequada é uma gestão que premeia o desempenho. As críticas ao SNS têm que ver com a sua gestão e com as insuficiências que resultam dessa gestão. A principal riqueza do SNS é o seu capital humano, as pessoas que lá trabalham. Nós temos assistido nos últimos anos a saídas críticas do SNS quer para o estrangeiro quer para o sector privado com a completa inércia do próprio SNS. É tirarem-lhe o sangue, têm feito uma sangria no SNS. Quando nós deixamos perder o capital humano crítico, estamos a tirar o sangue a esse corpo e não há reacção. Tem sido assim nos últimos anos. Ou seja, qualquer empresa que seja intensiva em trabalho e que dependa do seu capital humano agarra-se com unhas e dentes aos seus recursos mais valiosos, não os deixa partir sem uma palavra, e eu sinto que as pessoas que trabalham no SNS não sentem uma palavra de apreço. Fiquem aqui, nós precisamos de vocês, são importantes para nós, vamos encontrar uma forma de resolver a situação.
Essa palavra é possível no SNS?
Claro que é possível. As pessoas vão atrás de uma melhor remuneração mas também vão atrás de um projecto que valha a pena, de condições de trabalho, vão atrás de um ambiente que permita crescer. O SNS é viável se as pessoas sentirem que isso lhes é oferecido activamente, que estão lá e que são peças fundamentais. Nós não queremos que se vão embora, queremos que fiquem, vamos negociar condições melhores. O capital humano deve ser ferozmente defendido, e as pessoas devem sentir isso.
Há formas para se fazer isso?
Há mil formas de o fazer. Através de uma avaliação decente, que discrimine os que fazem dos que não fazem, uma remuneração baseada no desempenho que discrimina os que fazem dos que não fazem, um serviço que à manifestação de desagrado procure compensar e evitar que a pessoa saia. Hoje, as pessoas saem, batem com a porta e não acontece nada. Quando a pessoa sai e bate com a porta nós, sistema, devíamos sentir-nos lesados, feridos, não demos condições, não conseguimos segurar aquela pessoa que era boa profissionalmente, não pode ser a indiferença.
Pode dar um exemplo?
Estive na Organização Mundial de Saúde durante oito anos, o meu chefe era o director de departamento. Ele avaliava-me todos os anos, e sabe como o fazia? Era assim: "Tu avaliaste esta pessoa mal, mas eu tenho boa impressão dela, porque é que avaliaste mal? Este avaliaste bem, eu acho que ele é fraquito, porque achas que é bom?" A mensagem que passava era a de que tu vales o que valem as tuas avaliações, eu quero que tu avalies bem e eu avalio-te em função disso. Era uma acção amigável, mas passava por uma orientação que era séria.
Isto não é possível no SNS?
Não temos ainda licença para discriminar.
O que impede essa licença, o modelo da função pública?
Não, a qualidade das lideranças principalmente. Continuamos a não cuidar da qualidade das lideranças. Vem de há anos, de uma forma geral e com excepções importantes, mas não nomeamos as melhores pessoas para os melhores lugares.
Fala de hospitais...
De toda a função pública. Temos de ter muito mais gente a fazer o que fazia o meu chefe, a ser rigoroso, e o mundo muda logo. A escolher rigorosamente, a avaliar positivamente, com vontade de ajudar a melhorar e a dar conta dessa avaliação. Há que pensar bem no que se faz. Mas isso hoje não é possível com o actual modelo da função pública.
Mas é possível um modelo assim?
Claro. Não se pode ser tão complacente em relação às más escolhas, somos todos excessivamente complacentes. "Quando são os meus amigos parece-me bem, quando são os amigos dos outros não tanto." Não pode ser assim.
O que defende, demissões?
Quantas vezes a comunicação social procura justificar e analisar a bondade das nomeações no SNS quando há nomeações absolutamente escandalosas de pessoas que não têm nenhuma competência para lá estar. E no entanto não há nenhum protesto. A licença para discriminar depende da sensibilidade social, aquilo é batota, é a tolerância à batota. As pessoas com responsabilidade têm de dizer que assim não vale. Se o país tem poucos recursos, dificuldades económicas, administrações nem sempre competentes, então temos de escolher os melhores e temos de ser sensíveis à escolha. Não pode haver condescendência e a condescendência é enorme.
Neste aspecto não melhorámos?
Muito pouco. Tudo isto está associado à reforma do Estado. Quando somos levados a olhar para o desempenho das pessoas e a premiá-las, não precisa de haver uma fórmula ou uma tabela, basta a cadeia de valores: se nomeio bem o director-geral, ele terá a preocupação de nomear bem dentro da sua área de competência. Se eu nomear mal, ele irá nomear da mesma forma que foi nomeado. Isto cria um ruído de incompetência que não permite que a cadeia de boas ideias avance porque não tem executores. E nisso nós avançámos muito pouco.
Este governo está a fazer alguma coisa para mudar a situação?
Ainda é cedo, mas espero que sim. Ainda não mexeu muito porque a preocupação neste ano tem sido a de evitar grandes alterações na máquina do Estado que paralisem aquilo que é necessário fazer imediatamente. Mas a minha expectativa é de que as alterações se façam o mais rapidamente possível. Se isso não acontecer, quando falar comigo da próxima vez digo-lhe.
Foi crítico da política do governo anterior, chegou a dizer que a Saúde não suportava mais cortes
O SNS não acaba de repente. Vai-se esvaindo e o processo de esvaziamento hoje em dia já é substancial. Na avaliação feita em relação ao ano passado pelo Dr. André Biscaia, no âmbito da associação de medicina familiar quanto aos cuidados de saúde primários, a principal crítica foi a carência súbita de equipamento. Os cortes excessivos durante seis anos descapitalizaram muito. Outro aspecto é a saída de profissionais competentes, o que está a acontecer de forma sustentada e suficientemente longa para pôr em causa seriamente o SNS se não houver uma reacção.
Mais há vontade para estancar essa sangria? Os jovens médicos têm razões para querer ficar em Portugal?
Já se deram passos importantes. O primeiro é colocá-los rapidamente e para isso teve de se ultrapassar obstáculos. Então saem especialistas, o sector privado e organizações estrangeiras vêm cá buscá-los e o ministério achava bem estar meses sem os colocar? A lógica desta velha administração pública é: batam à porta e venham por favor. Não é: venham porque são necessários. Lá vem o exemplo de Houston. Um dia apanhei o meu chefe a ligar para Itália e perguntei-lhe o que estava a fazer. Ele disse-me que estava a ligar para Itália. Queria apanhar uma antropóloga social, a melhor doutorada que tinha passado na Universidade de Berkeley, e que andava a fazer trabalho de campo em Itália. Queria contratá-la. Um homem que era doutorado, laureado, um dos melhores epidemiologistas dos EUA passava noites a ligar para Itália a tentar contratar um talento para a sua instituição, isto é que é gestão pública. Aqui o nosso comportamento é: bata à porta, peça por favor e talvez seja admitido. E não há reforma nenhuma que resolva isto que não seja o progresso e a revolução. Os EUA avançam porque são uma meritocracia, nós não somos e enquanto não formos não conseguimos. A pessoa que conheci no país e que não era assim era o professor Arnaldo Sampaio (director-geral da Saúde antes e depois do 25 de Abril). Lembro-me de ele me perguntar: "Olha lá, o Luís parece jeitoso vamos ver se conseguimos que ele fique aqui." Andava atrás das pessoas. O Dr. Francisco George (director-geral da Saúde), também pergunta frequentemente pela qualidades das pessoas. E nós precisamos de pessoas que lutem pela qualidade daqueles que trabalham no SNS. Lutem por elas, convençam-nas, persuadam-nas, convidem-nas, namorem-nas e que não tomem a atitude do "batam à porta e peçam por favor".
O que o irrita na administração pública?
Os políticos e as circunstâncias, os incompetentes que utilizam as ligações políticas para conseguirem lugares que não merecem de todo, a falta de rigor, de pontualidade e a falta de cortesia. O que distingue os países avançados é o rigor dos compromissos, cada um de nós cumpre com o que se comprometeu. Se houver um problema liga-se e avisa-se que se está atrasado, é rigor, disciplina e cortesia. Agora secar sem dar uma palavra é descortês, falta de rigor e não deve ser assim. São estas pequenas coisas que fazem o mundo, não são as leis nem os discursos. Na Dinamarca, chegar atrasado cinco minutos a uma reunião é inimaginável. Eles iam-se embora.
Esteve oito anos na Dinamarca, na Organização Mundial de Saúde, e dois na Andaluzia, como director da Escola de Saúde Pública, o que o fez regressar ao país?
A estada na Dinamarca foi muito reconfortante profissionalmente e financeiramente, ganhava-se muito mais do que aqui, mas em termos afectivos muito desértica. Nos países do Norte as pessoas são muito disciplinadas, trabalhadoras, rigorosas, mas o mundo em que se movem é absolutamente cinzento. Aquilo que nós temos de extraordinário, a convivialidade, lá não há. E senti falta disso. Por outro lado, sempre achei que estes cargos devem ser limitados, eu poderia ficar mais cinco anos, mas decidi sair. Se as pessoas ficam muito tempo fora, quando se volta é-se estrangeiro, e eu gostava de voltar ainda no activo. A outra razão foi familiar: tenho três filhas, a primeira passou um ano connosco, a segunda dois e a terceira quatro. Quando saíram todas, a minha mulher disse que era altura de reconstruir o clã. De qualquer forma, saí um ano antes do previsto. Durante umas férias de Natal, a Dr.ª Maria de Belém soube que estava cá e fez-me uma proposta tentadora, a direcção da Administração Regional de Saúde de Lisboa. Achei que estava na altura de voltar. Tinha 55 anos, aprendido muito e estava interessado em assumir este desafio. Já não voltei. Tive de falar com o meu director da OMS e nos primeiros tempos ir à Dinamarca uma vez por mês.
Voltou para reformar os cuidados primários, era um sonho antigo?
É um sonho de muitos de nós, mas pareceu-me que os países do Sul, cujas reformas tinha estado a estudar na OMS, poderiam beneficiar da criação de unidades de saúde com maior autonomia. Criámos 15 grupos de médicos e desafiámo-los a constituírem essas unidades. Demos-lhes instalações, equipámo-las, escolheram o pessoal, mas para haver hierarquia era preciso um contrato, quem contratualiza? Foi então que criámos uma agência de contratualização. E sem esta agência a criação destas unidades de saúde não teria sido possível. Os profissionais desunharam-se para cumprir o compromisso: não deixar nenhum doente de fora. Trabalhavam muito mais do que noutros centros de saúde e ganhavam o mesmo. Não podia ser. Tivemos de trabalhar num regime remuneratório diferente e fazer com que o governo o aprovasse. E foi o pior... Houve uma grande resistência por parte das Finanças e da administração pública a esta alteração. Teve de haver uma intervenção política forte para que o projecto fosse aprovado. Mas conseguiu-se. Estas unidades de saúde foram a primeira reforma do Estado na Saúde, mas só foi possível porque a ministra na altura era a Dr.ª Maria de Belém, uma pessoa aberta para estas mudanças.
Dizem que é um visionário na Saúde, tem uma visão para o país?
Temos de ter uma visão mobilizadora sobre o que queremos para o futuro comum. E isso é importante. Envelhecemos melhor pensando no futuro em vez de nos fixarmos no passado, mas não podemos ser excessivamente deterministas em relação ao futuro. Contribuímos para a nossa visão do futuro transmitindo aos filhos, aos netos, aos alunos e colaboradores os valores e as competências necessárias para que naveguem no mundo que vão encontrar. Mas acredito que se conseguirmos combinar o que temos de caloroso, afectivo, convivial, original e criativo, que é muito bom e se expressa de várias formas, com um maior rigor, cortesia, sentido de compromisso, poderemos ser um país melhor.
DN(Lisboa) – 22.08.2016