Ou tudo não passa de artifício para manutenção do poder?
Verdade que no mundo da política nada se dá de bandeja. Verdade também que por vezes impera muita coisa que nem dá para cheirar porque o cheiro é insuportável.
As clivagens que se vêm verificando ou sendo noticiadas no seio da Frelimo são o corolário de um processo que terá começado logo após o desaparecimento de Samora
Machel, senão bem antes.
Afinal, houve ladainhas semelhantes quando Lázaro Kavandame foi descartado acusado de explorador do povo. Agora, quem é de facto o explorador do povo moçambicano?
Porque não havia sustentabilidade ideológica nem fundamentos ideológicos para manter um regime político desgastado pelo tempo e pelos insucessos de produzir resultados tangíveis, no âmbito das escolhas políticas efectuadas, vozes surgiram que já vinham se metamorfoseando, declarar a sua libertação das amarras decorrentes da dependência em relação à defunta ex-URSS.
Explicar o que aconteceu não é tão linear como se possa escrever.
Que houve dissidência ideológica formal, se tivermos em conta o que rezavam os estatutos da Frelimo, é verdade. Que alguns dos puristas reclamam que se salve o partido
Frelimo e que ele seja reconvertido ao que era nos dias de ontem, quando imperava o absolutismo político e o poder pertencia à cúpula dirigente do partido, não admira.
Afinal estes “ilustres” comentaristas e analistas, escorraçados pelos seus ex-camaradas do semanário “Domingo” e dos órgãos decisores do partido, pertenciam ao que se pode denominar de “casta dominante”.
Agora que se assiste a um “forcing” para resolver uma questão sobejamente conhecida e decorrente de um processo eleitoral cheio de irregularidades muitas perguntas não se calam.
Terá sido presunção de que os outros estavam distraídos com a segurança de vitória eleitoral ao ponto de não se preocuparem com os excessivos poderes do PR inscritos na CRM hoje questionados?
Terá sido um golpe contra a democracia aceite para não prolongar as discussões do AGP em negociação?
Mas parece que as partes tinham conselheiros de peso e, se houve aceitação de tal CRM, isso tinha razões eminentemente políticas. Cada uma das partes acreditava que aquele figurino constitucional a beneficiaria no futuro, como se tem visto.
Alavanca pelo poder político-administrativo e financeiro que possuía, a Frelimo não tardou em iniciar manobras de cerco e de tomada das instituições eleitorais. O judiciário já estava tranquilamente nas suas mãos.
O resto, de 1994 até aos dias de hoje, é a história repetida que conhecemos.
Fraude seguida de fraude, mas que alguns “politólogos” denominam de “irregularidades”.
Olhar serenamente para o passado e descascá-lo como convém para conhecê-lo melhor, não só é importante para que as discussões eminentes da CRM sejam feitas com fundamentos sólidos que levem a alterações fundamentais da mesma, mas para que o cancro que mina Moçambique seja removido com êxito.
A massa crítica que se dizia faltar para discussões substantivas foi produzida ao longo dos anos. Estudos comparativos de algumas Constituições de países funcionais e democraticamente activos existem para consulta. Consultores externos existem que podem dar o seu contributo para limar arestas e ajudar a encontrar um figurino constitucional catalisador da concórdia política e da funcionalidade e normalização da vida política em Moçambique.
Se tomarmos como lição o que se passa na esfera económica e financeira do país, o estado do tesouro nacional, a crise financeira, a inflação galopante, a diminuição do poder aquisitivo da população carenciada, temos de evitar algo que tem sido feito repetidamente: “não ouvir compatriotas que até sabem mais do que certos governantes sobre certos ‘dossiers’”.
Este recomeço do país que a paz próxima vai trazer exige e requer seriedade governativa acima da mera distribuição de pastas ministeriais.
Há que criar condições para que próximos pleitos eleitorais sejam momentos definidores da democracia em Moçambique.
Posto isto, e se estamos de acordo que a actual CRM tem sido um artifício ou empecilho da democracia, deve-se assumir a sua alteração como prioridade.
Política e governação, resolver os problemas nacionais quando vontade para tal existe supera arranjos partidários e para benefício do “status”.
As novas exigências políticas e a sua combinação com a conjuntura regional e internacional fizeram crescer as expectativas dos cidadãos.
Por mais que haja quem se recuse a entrar para acordos que viabilizem a actividade política e a acção governativa, isso não travará um processo inexorável.
Aqueles que dizem que não se pode mexer na CRM de qualquer maneira ou como exercício para acomodação de pretensões políticas deste ou daquele são os que jamais quiseram a mudança nem o progresso.
Está e estava tudo muito bem enquanto eles se beneficiavam das mordomias e regalias que acompanham a ocupação de cargos públicos ou governamentais.
Outros, como aspirantes desses cargos e benesses, propagam ideias de legalistas de alto calibre quando na verdade nada disso são.
Corrigir erros histórico-políticos é obrigação de políticos presentes e este existem em Moçambique.
Parar com a guerra fratricida é possível com realismo e com abnegação numa luta com muitas “nuances” mas que deve ser abraçada e conhecer um fim.
Os cidadãos moçambicanos abriram os olhos e exigem muito mais do que discursos estereotipados sobre “unidade nacional”.
A guerra que se trava hoje tem algo de comum com aquela que durou dezasseis anos: embora ninguém o diga, assemelha-se à da RCD, em que se luta pelos recursos do solo e subsolo.
A distribuição injusta do que é público traz desavenças e crises.
Depois de décadas independentes, há coisas que já não podem ser aceites, e uma delas é que uma classe especial de moçambicanos se outorgue o direito de usufruir exclusivamente do que Moçambique tem.
Diagnósticos efectuados e encontrada a origem da doença, importa ver os médicos administrando a terapia apropriada, sem mais delongas e cartas escondidas debaixo da mesa como foi no passado.
Driblar, fintar, enganar tem efeitos temporais reduzidos porque, depois, as feridas se reabrem, e tudo volta à estaca zero.
Moçambique só será Moçambique se for compartilhado pelos seus. (Noé Nhantumbo)
CANALMOZ – 22.08.2016