Canal de Opinião por Adelino Timóteo
A sorte de Moçambique decidir-se-á nas negociações em curso, que porão fim ao candente conflito que tem estado a recrudescer, para influenciar o curso do diálogo. Por outras palavras, a intransigência do Governo e da Renamo no recurso às armas, até à celebração de um novo acordo, explica, para já, que as vantagens que se não conseguirem no campo militar poderão ser obtidas na mesa negocial.
A Renamo tem mostrado uma postura de que deve continuar a jogar a última cartada na sua exigência de governar as seis províncias onde conquistou maior número de votos nas fraudulentas eleições de 2014.
O cavalo de batalha, para a Renamo é: ou a Frelimo cede, ou alastrará a guerrilha na área que reclama a sua legitimidade de governação.
Desde os ataques ocorridos em 2009, à sede da Renamo, em Nampula, aos actos de perseguição a Afonso Dhlakama, até encurralá-lo na Gorongosa, o que levou ao reacender do conflito armado no país, culminando depois com a assinatura do Acordo de Cessação das Hostilidades Militares, que previa por parte da “Perdiz” a entrega de armas ao Governo, a Frelimo vinha jogando para acabar com o seu visceral adversário.
Todavia, esse mostrou-se preparado para o que desse e viesse.
Depois de a Frelimo ter jogado o seu último “Ás de trunfo”, desarmando à força a guarda de Dhlakama, muito à maneira “sheriffiana” e de “cowboys”, em Outubro de 2015, na verdade, o que se acreditava era que daí seguir-se-ia uma nova luta. Em África, é básico a leitura dos sinais. O silêncio de cerca de três meses seguido pelo líder da Renamo era sintomático de que preparava algo, na clandestinidade.
A guerra que mergulha o país num colapso e deixa Maputo num ataque de nervos, pelo alastrar da guerrilha.
É bom que se recorde que, antes das eleições de 2013, Joaquim Chipande afirmara que a sobrevivência da ala militar da Renamo teria os seus dias contados após os processos eleitorais. Chipande, como eu já previra num artigo pré-eleitoral, é o presidente de facto de Moçambique.
A Nyusi se lhe é cada vez notório um papel de presidente de direito.
Nisto, se tem notado que só se tem posto em prática as posições do primeiro, que demonstra praticamente que tem o controlo sobre a defesa e o destino do país. Chipande alertara, em 2013, que os passos posteriores ao desarmamento da Renamo, iniciado por Guebuza, seriam o retorno de Moçambique ao monopartidarismo.
Eis o busílis da questão. A sobrevivência ao canibalismo político, pois a Renamo tem feito a leitura premonitória: a entrega das armas sem negociação de posições-chave no âmbito das forças de defesa e segurança é o fim da democracia neste país.
Parece ser o que está em causa nestas negociações, que se poderão prolongar e tornarem-se mais complexas do que as de Roma, de 1992, porque agora, em ambos os bandos, joga-se o tudo ou o nada.
A Frelimo habituada à hegemonia, como partido dominante, na esteira de legítimo e único representante do povo moçambicano, como se outorgava em 1974, depois de Roma, lançou uma purga e fez-se com o controlo do exército e dos meios de comunicação, regredindo o processo democrático.
A Frelimo faz de cavalo de batalha a ideia matiz do conceito nação, valorada por uma mesma bandeira e símbolos nacionais, como símbolos sagrados, que não podem ser mexidos.
Por baixo deste simbolismo, o conceito de nacionalismo e nação, no seio dos seus mentores, sofreu uma erosão, de modo que sobressaem interesses económicos, por cima da ideologia, sendo em parte o que subjaz o interesse da sua elite por esta guerra, que apague a oposição e os deixe governar a seu bel-prazer.
A ideia de províncias autárquicas mina os interesses económicos da nomenklatura da Frelimo, enriquecida com a corrupção, e que, cultivando a ganância, tem aprimorado
a necessidade da corrida aos recursos naturais, para garantir o futuro melhor aos seus descendentes.
Nas zonas onde a Frelimo detém apoio quase nulo, o partido é visto como instrumento de opressão, pois os seus dirigentes e filhos abocanham todos os recursos.
Figuras influentes do regime de Maputo são actualmente quem beneficia de recursos naturais do subsolo em que dorme a maioria da população excluída e depauperada.
Há, no seio desta nomenklatura, de criadores da nação, a crença de que a sua sobrevivência tanto individual como colectiva, ancora na ideia de aniquilar Dhlakama, da mesma forma que o fizeram ao Uria Simango.
A sociedade moçambicana está a sofrer dinâmicas que transcendem o fim idealizado por aquele conjunto. Estamos perante o advento do liberalismo económico e de consumismo, que galvanizaram socialmente formas de pensamento e sentimentos individuais, muito em consonância com os valores da globalização. O que contrasta com a ideia do establishment, do núcleo duro do partido Frelimo, que sub subjectivamente, cultua o individualismo (ganhar dinheiro e preservar/ascender o bem-estar), enquanto prega o sermão do colectivismo (entenda-se a Frelimo como uma porca que dá de mamar aos seus filhos e os tem debaixo da sua alçada).
O nepotismo, a prepotência e a corrupção, de tal forma endémicas, contestados pela maioria dos moçambicanos, que estão fora desse sistema, não encontram equilíbrio dentro da intransigência da Frelimo, pois grande franja da população vê-se cada vez mais como enteada da nação.
A criação do bando de matadores, introduzido e infiltrado na sociedade como agente de equilíbrio do partido Frelimo, sem nunca lhes conhecermos o rosto, representa numa contundente resposta contra o nascimento de um pensamento de nação heterogénea, contraponto da ideia de outras identidades culturais asfixiadas pelo centralismo e um violento domínio sulista desde a luta armada e que se situa nos antípodas da colonização. É uma prática reproduzida do sistema fascista.
Em suma: há três caminhos para desanuviar o conflito e chegar-se a um meio-termo. Primeiro: um consenso entre as duas partes sobre uma autarcização inspirada no modelo sul-africano. Esta parece ser a solução mais consagrada e acertada, para acomodar as diferentes sensibilidades sócio-culturais, respeitando as idiossincrasias e heterogeneidade dos usos e costumes de cada “província autárquica”, o que não pode ser tomado como regionalização, na esteira monista defendida pelo regime. Este pensamento é também muito crucial para se evitar a desagregação do país. Segundo: umas negociações onde as vantagens grupais sejam postas do lado, e que reforcem a convivência democrática e a recuperação da confiança entre os beligerantes, serão de todo válidas para a família moçambicana.
Terceiro: um exército unificado seria a condição sine qua non do processo de paz e reconciliação nacional, o que inspiraria confiança nos que se sentem excluídos das forças de defesa e segurança. A experiência mostra que ficando a Frelimo sozinha na casa das armas, continuará a ditar as regras do jogo e a influenciar posições e decisões nos processos eleitorais, usando a habitual regra de prender oposicionistas nos dias das eleições e libertando-as quando estas tiverem terminando, sem processos-crimes. Outro tipo de pressão, não menos atroz, é exercida sobre a comissão eleitoral.
Negociar uma inclusão efectiva é o sinal que a Renamo tem estado a dar à Frelimo, que a parece desdenhar, assobiando para o lado, ao mesmo tempo que alimenta o desvario de um assalto final ao esconderijo de Dhlakama, disparando “foguetes” para a serra da Gorongosa, com resultado de soma zero.
O realismo político mostra-nos que a parte oponente não está disposta a sair da negociação com uma mão de nada e a outra de coisa nenhuma, por isso explora a velha táctica de guerrilha, cortando as vias de comunicação para dificultar a logística das forças de segurança e deixá-las atoladas no terreno.
Ancora na sua irredutibilidade e na pressão armada, a continuação da política por outros meios, o que alguns chamam chantagem à sua sobrevivência. (Adelino Timóteo)
CANALMOZ – 17.08.2016