Distintas autoridades aqui presentes,
Caros compatriotas moçambicanos,
Distintos convidados
Amigas e amigos,
Minhas senhoras e meus senhores,
Começo por agradecer o amável convite que me fizeram para participar neste Fórum sobre Justiça Económica.
Permitam-me cumprimentar com carinho a Casa de Moçambique em Portugal pela oportunidade de debater um tema tão decisivo para o presente e o futuro dos nossos povos.
Os Chefes de Estado e de Governo de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, reuniram-se aqui nesta mesma e bela cidade de Lisboa, no dia 17 de Julho de 1996, e assinaram a Declaração Constitutiva da nossa CPLP.
Lê-se nesse documento que decidiram reiterar em «ocasião de tão alto significado para o futuro colectivo dos seus Países, o compromisso de reforçar os laços de solidariedade e de cooperação que os unem, conjugando iniciativas para a promoção do desenvolvimento económico e social dos seus Povos.»
Quer me parecer que o alcance do tema desafia-nos a avaliar o impacto da justiça económica no esforço de desenvolvimento dos nossos países.
Seguramente vivemos estágios de desenvolvimento muito diversos, e os critérios para medir o peso da justiça nas desigualdades que desigualmente nos atingem são distintos.
Mas antes de entrar na realidade concreta do meu país, deixem-me exprimir a minha tristeza por tudo o que não conseguimos realizar, em matéria de convergência social, nestes últimos 20 anos.
Não quer isto dizer que desvalorize os passos que foram dados, nomeadamente no quadro da CPLP, para uma cooperação reforçada.
Mas os resultados práticos são claramente insuficientes.
Se me é permitido exprimir um desígnio para os próximos 20 anos, ele será que os nossos esforços colectivos sejam mais claramente orientados para uma convergência que nos aproxime, não só nas belas palavras, mas em actos concretos e abrangentes.
Actos que mitiguem as enormes disparidades que facilmente identificamos no plano pelos direitos sociais nos nossos diferentes países.
Isso só será conseguido se os nossos esforços forem mais focados nas pessoas e na dimensão social dos problemas e menos desperdiçados em projectos de diplomacia económica que apenas agravam desigualdades e favorecem situações de autoritarismo e cleptocracia, que infelizmente ainda são dominantes em muitos países.
Falarmos a mesma língua é o que nos aproxima.
Se a língua é um factor de proximidade cultural que pode ajudar-nos a superar a distância geográfica, não devemos subestimar as dificuldades levantadas da globalização, cuja logística sofisticada favorece os mais fortes e deixa ainda mais dependentes os mais fracos.
No concerto das nações, entre ameaças e oportunidades dos processos de globalização das economias e dos mercados, os benefícios foram repartidos como no velho tempo colonial: para uns ficaram as oportunidades e para os outros cumpriram-se as ameaças...
Para este estado de coisas concorrem múltiplos factores, que inibem a consolidação e o bom funcionamento de verdadeiros Estados de Direito em muitos países descolonizados.
Entre esses factores, muito pesam os mecanismos de perpetuação do poder nas mãos de elites dirigentes que para além de serem Governo, também distribuem entre si e suas famílias os lugares-chave da Administração Pública, da Justiça e das empresas, públicas, privadas, nacionais ou multinacionais.
Mesmo quando se dão passos aparentemente firmes em direcção ao primado da Democracia e da Lei no funcionamento das nossas sociedades, as grandes oportunidades de progresso prometidas aos países pobres vêem-se submergidas pela desigualdade de meios de controlo do poder.
Entre esses meios estão as áreas estratégicas da economia e também o sistema de justiça.
Ponderemos nas oportunidades que se apresentam ao empreendedorismo nos nossos países.
Precisamos de muito mais do que a espontaneidade da língua para potenciar uma aproximação efectiva das economias, das empresas e dos negócios que lhes dão vida.
Precisamos de uniformidade de critérios.
Não podemos aceitar que sejam toleradas, no contexto dos negócios nos países pobres, práticas de proteccionismo e até corrupção intoleráveis e socialmente censuradas nos países ricos.
A pobreza é uma situação a ser superada; não é uma condenação perpétua ou uma inevitabilidade.
E não sairemos de situações de pobreza extrema sem a defesa de princípios e valores que são universais.
Porque falamos de justiça económica, deixem-me que vos recorde que o objectivo do desenvolvimento económico não é apenas criar mais riqueza, mas sim promover uma mais equilibrada distribuição da riqueza.
Falando de Moçambique, o resultado prático destes 20 anos de cooperação económica no quadro da CPLP pode ser visto como positivo se olharmos apenas para estatísticas de investimento e trocas comerciais.
Mas ninguém pode dizer que não nos envergonham a todos, tanto cidadãos moçambicanos como os outros cidadãos da CPLP, os indicadores que continuam a colocar Moçambique como um dos países mais pobres do mundo.
Múltiplos factores contribuem para esta situação dramática e não estará na ineficácia da cooperação internacional toda a responsabilidade deste desastre social.
No entanto, também não devemos ignorar o facto de que, após décadas de cooperação e de biliões de euros entregues aos sucessivos governos da Frelimo, em Moçambique, o que vemos é um desenvolvimento cada vez mais assimétrico.
No meu país, apesar dos esforços de construção de uma democracia pluripartidária no quadro de um estado de Direito, a economia está concentrada nas mãos de uma elite, e não é fácil aos que não são parte dessa elite, ou nasceram fora dela, aceder às oportunidades de negócios.
Esta situação foi criada por factores recorrentes de natureza política, que me permito destacar aqui, para que ninguém os esqueça ou subvalorize:
Primeiro, um factor histórico, cujas consequências ainda sofremos hoje: um processo de descolonização sem critério democrático, que entregou a uma única força partidária todo o poder político e militar, abrindo caminho a décadas de ditadura brutal de um regime totalitário de partido único.
Segundo, e com 20 anos de vigência: o recorrente incumprimento por parte da Frelimo dos acordos com a Renamo, quer do Acordo de Roma de 1992, quer do Acordo de Cessação de Hostilidades Militares de 2014.
O terceiro factor é a gritante desigualdade de meios de projecção entre o partido no poder e os partidos da oposição.
Basta viajar uns dias por Moçambique para constatar como a Frelimo é omnipresente e omnipotente.
Enquanto partido único, apropriou-se de edifícios e meios do estado para as suas acções de intimidação e propaganda.
Já em contexto democrático, manteve a posse indevida desses meios e desses bens para a sua projecção política e a eles recorrendo, sempre que necessário, para a luta desigual com os restantes partidos políticos.
Como claramente colocou as coisas o presidente Afonso Dhlakama na última campanha eleitoral, Moçambique não tem um regime de partido único, mas tem um Estado de partido único.
Acrescento eu: Moçambique tem uma economia de partido único, porque é impossível a quem não seja da Frelimo ter acesso às áreas de negócio mais interessantes do país.
Tudo está partidarizado e a Frelimo está infiltrada em tudo, desde os bancos até as instituições do Estado onde mantém células partidárias.
Os próprios bancos estrangeiros vêem as suas actividades condicionadas, têm de dar lugar nos seus quadros a membros do partido no poder que decidem que projectos financiar sem condicionalismos de apresentação de garantias e a quem dificultar o financiamento.
Muitas empresas e Estados que investem e cooperam em Moçambique são cúmplices neste processo.
Daí valer a pena perguntar: Porque é que a alternância dos partidos no Governo, que é regra em todas as democracias do mundo, é uma impossibilidade em Moçambique?
A grave crise político militar que o meu país atravessa é a consequência inelutável deste estado de coisas.
Em clara violação do direito à vida consagrado constitucionalmente, académicos independentes que ousaram pronunciar-se contra o actual governo em Moçambique são perseguidos, intimidados, baleados e assassinados.
Vários atentados muito cobardes contra a vida do Presidente Afonso Dhlakama foram frustrados, mas com perda de vidas entre os que o rodeavam.
Eu própria recebo ameaças e ainda recentemente fui alvo de um atentado em Quelimane, meu círculo eleitoral.
As violações dos princípios mais elementares de um Estado de Direito são feitas com o objectivo evidente de silenciar todos os críticos quer sejam políticos, jornalistas, líderes de opinião e assim implantar a cultura do medo e limitar a acção política da oposição e dos intelectuais críticos do regime.
Mas, graças a Deus, o Presidente Afonso Dhlakama tem enfrentado estes ataques com a maior coragem e não tem vacilado na sua determinação de lutar por uma verdadeira democracia em Moçambique o que encoraja a todos os moçambicanos a acreditar em dias melhores para Moçambique.
Para falar do sentido de justiça económica que os sucessivos governos em Moçambique têm chamo a colação dois exemplos:
Primeiro: as dívidas ocultas, ilegais e inconstitucionais avaliadas em 2.3 bilhões de dólares americanos contraídas sem a aprovação do Parlamento como manda a Constituição de Moçambique. Acham normal que um Governo, na calada da noite, endivide todo um povo e ainda assim continuem os seus membros impunes? Por exemplo, 850 milhões de dólares americanos foram investidos na compra de barcos supostamente para a pesca do Atum, barcos esses que desde a sua chegada a Moçambique continuam atracados e nem um kg de atum pescaram, e o Parlamento seja usado para legalizar essas dívidas ilegais é inconstitucionais?
Porquê não se faz luz sobre este caso? Não há responsáveis? Não há beneficiários? Para onde vão os milhões e milhões desviados do orçamento do Estado?
Segundo: o distrito como base de desenvolvimento, passa a receber financiamento dos vulgo sete milhões de meticais para projectos económicos.
Este dinheiro foi distribuído aos dirigentes locais do partido no poder (Frelimo), para potenciar as suas estruturas de base. Canalizando receitas dos impostos dos moçambicanos directamente para o empoderamento económico dos membros do partido que controla o Estado foram cometidas arbitrariedades que evidenciam grosseiras injustiças económicas.
Avaliando a iniciativa que a Frelimo diga que distrito deixou de ser ou ter pobre(s)? Que distrito está desenvolvido e tem água canalizada, electrificação que beneficia 100% da sua população?Nenhum! O projecto foi um fracasso total. E a maioria dos mutuários nem devolvem o dinheiro ao Estado porque sabem que o critério principal observado para ser potencial beneficiário era a militância na Frelimo.
Julgo que temos que mudar o cenário em que vivemos e isso passa por:
i) Termos um Provedor dos Cidadãos da CPLP
ii) Termos uma acção concertada dentro da CPLP contra as violações recorrentes dos Direitos Humanos ou um Observatório dos Direitos Humanos no espaço da lusofonia.
Estas poderiam ser instituições muito úteis para a afirmação dos princípios da Democracia e do Estado de Direito nas nossas diversas realidades nacionais.
No plano dos crimes económicos, todos sabemos como as plataformas transnacionais têm sido usadas para mascarar ou dar cobertura a negócios ilegais, propiciados pela corrupção, terreno ideal para a lavagem de dinheiro e a fuga ao fisco.
Por isso mesmo, precisamos, de forma aberta e transparente, também a nível da CPLP de
iii) Sistemas transnacionais de partilha de informação e controlo da circulação de capitais.
E é imperioso:
iv) Criar mecanismos que permitam investigar e acusar eficazmente todos aqueles que cometem crimes económicos no nosso espaço de cooperação.
No que à justiça económica diz respeito, Moçambique enfrenta dois desafios centrais:
Primeiro a Injustiça fiscal: o sistema tributário moçambicano favorece o grande capital, os grandes investidores, que estão concentrados no complexo mineral-energético (alumínio, gás natural, areias pesadas, carvão mineral, electricidade) em prejuízo das pequenas e médias empresas, que são o principal motor da economia nacional e o maior empregador a seguir ao Estado.
Assim, para termos justiça económica em Moçambique, devemos promover a justiça fiscal, através de alterações no quadro tributário.
O segundo desafio prende-se com a superação da desigualdade de oportunidades económicas, tema que já abordei nesta intervenção mas que nunca é demais salientar.
Como se sabe, por razões históricas e ideológicas, o poder económico em Moçambique confunde-se e coincide com o poder político: quase todos os empresários são políticos, e quase todos os políticos do sistema têm interesses directos ou indirectos em empresas.
Este facto é o reflexo da concentração das oportunidades económicas (negócios, financiamento, empregos mais bem pagos) nas mãos de pessoas ligadas ao partido no poder, a Frelimo.
Isto significa que para termos justiça económica precisamos de garantir que haja igualdade de acesso às oportunidades que se vão apresentando no plano dos diversos sectores da economia.
Em conclusão, só podemos ter justiça económica se tivermos justiça fiscal acompanhada por oportunidades económicas iguais.
Para terminar, apelo a todos para que ponderem nas palavras que o Papa Francisco dirigiu em Janeiro aos poderosos reunidos na cimeira de Davos, numa mensagem com a qual totalmente me identifico, quando diz que é necessário «um sentido de responsabilidade renovado, profundo e alargado por parte de todos», para «servir mais eficazmente o bem comum e tornar os bens deste mundo mais acessíveis para todos».
Estamos aqui para debater a justiça económica e o papa lembra-nos a urgência de uma equidade baseada na «distribuição mais equitativa das riquezas, a criação de oportunidades de emprego e uma promoção integral dos pobres que ultrapasse a mera assistência.»
O Papa Francisco faz um forte apelo às nossas consciências e com ele vos deixo: «Façam de modo que a humanidade seja servida pela riqueza e não governada por ela.»
Muito obrigada.
Maria Ivone Soares
(Chefe da Bancada Parlamentar da RENAMO)
[email protected]
Lisboa, 28 de Setembro de 2016.