Raquel Almeida Correia (Maputo)
O vice-ministro moçambicano da Indústria e Comércio de Moçambique garante que a crise, em especial a da dívida, será resolvida com a venda antecipada das receitas do gás.
Enquanto os técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) negociavam no Ministério da Economia e Finanças os contornos da auditoria à dívida pública não declarada, Ragendra de Sousa garantia que Moçambique entra nesta negociação de “igual para igual” e pronto a fazer frente ao “excesso de tesoura” que a instituição liderada por Christine Lagarde queira trazer para cima da mesa. A visita do fundo terminou na quinta-feira, tendo já sido acordados os termos da auditoria e lançadas as bases do programa de apoio. “Fomos os meninos dos olhos azuis e, de noite para o dia, passámos a ter vergonha”, admite o vice-ministro da Indústria e Comércio, cuja nomeação, há pouco mais de três meses, causou perplexidade por ser visto como um crítico das opções tomadas pelo actual Governo. Mas o economista, doutorado pela Cornell University, diz que a culpa da crise que o país atravessa é partilhada, sobretudo, com os bancos que aceitaram emprestar o dinheiro que ficou por registar, manchando a credibilidade do país junto dos parceiros internacionais – o que levou à suspensão dos apoios dos doadores. “Será que quem está no Credit Suisse é analfabeto?”, questiona. Um dos caminhos que defende é a venda antecipada das receitas do gás, já que a concretização destes mega projectos tem sido sucessivamente adiada, e diz que é preciso arriscar em sectores cujo potencial está por explorar, como o comércio rural, e mudar o enfoque na captação de investimento estrangeiro. A entrada da Sonae (dona do PÚBLICO) no mercado moçambicano, por exemplo, é “muito bem-vinda”.
Completa hoje [23 de Setembro] três meses no cargo. Por que decidiu aceitar o convite num momento tão difícil para o país?
É uma obrigação de cidadania. Na minha carreira, parto de funcionário público. Quando me foi feito o convite achei por bem aceitar, voltar à função pública, trazer para a governação tudo o que aprendi e que seja útil ao país, de forma mais activa. Embora haja algo que nunca perdi, a minha capacidade analítica.
Era considerado uma das vozes mais críticas do Governo. Entende as reacções à sua nomeação?
Bom, estamos a entrar numa área filosófica. A academia não critica, avalia a situação. Pega nos factos, põe as hipóteses e tira conclusões. Na linguagem científica, quem lê percebe que não é crítica no sentido popular. A minha postura sempre foi guiada pelos princípios teóricos e pelos conhecimentos empíricos de Moçambique ou de qualquer outro sítio. Claro que o público em geral divide sempre no crítico ou no não crítico, mas essa avaliação chega a mim e não me perturba.
A crise que o país atravessa é o maior desafio que enfrenta no seu mandato?
Absolutamente. Já tinha a plena consciência de que estávamos a enfrentar uma crise, temporária, mas com uma característica muito especial. Propalámos durante anos o nosso grande ritmo de crescimento, mas nunca foi dito ao cidadão comum qual era a fonte do crescimento. E, como economista, nunca me iludi que a fonte de crescimento foi o investimento externo. O que é preciso é explicar ao homem comum que este crescimento não vai chegar tão rapidamente ao bolso porque está a ser efectuado num sector que dá pouco emprego. Mesmo dando emprego, sendo indústrias de capital intensivo, os mil milhões vão para as máquinas, não vão para salários. Tivemos este choque. A nossa crise é estrutural, agravada – repito agravada – pela [crise da] dívida. Por que é que eu ponho a questão desta forma? Pelos montantes que já conhecemos da dívida não declarada e pelos cálculos que fiz, paga-se com a venda antecipada de gás só de um ano. Se vendermos o gás antecipadamente, se o fizermos num ano ou dois, a receita é de longe superior à dívida.
"Se vendermos o gás antecipadamente, se o fizermos num ano ou dois, a receita é de longe superior à dívida."
Para si, o problema da dívida pública é só mais uma agravante numa crise mais profunda e ampla?
O choque aparece antes. Quando as matérias-primas perderam valor, a economia começou a ressentir-se. Se olhar para a taxa de câmbio, começa a derrapar muito antes do problema da Ematum [uma das empresas que contraiu dívida não declarada]. A redução das reservas internacionais começa antes. É aí que, do ponto de vista institucional, aparece o FMI. Mas quando se dá o escândalo da dívida uma economia como a nossa, que é muito dependente, ressente-se. É nesse sentido que digo que aceitei o desafio, especialmente na área da indústria e do comércio, porque para mim são o pilar desta economia. Mas quero recordar o grande Adam Smith, que diz que a essência da produção é a venda. A venda faz-se pelo comércio e a industrialização não é mais do que agregar valor ou melhorar a conservação, se estivermos a falar de produtos agrícolas.
O problema das finanças públicas de Moçambique é mais vasto do que o escândalo da dívida não declarada. A dívida do Estado está a disparar há uma década. E isso não se resolve com a venda antecipada das receitas do gás.
Quando falo da venda antecipada, estou a mostrar-lhe que a tal dívida oculta não é tão substancial. Mas a dívida em geral, absolutamente. Estou a introduzir um tema que é um quebra-cabeças dos economistas e dos sociólogos, que é o agency problem [conflito de interesses entre duas partes].Vai reparar que o agravamento da dívida acontece no segundo mandato e o Governo já não o poderia resolver. No nosso caso, o problema foi agravado pela fraqueza institucional. Temos um Parlamento com capacidade de escrutinar o Orçamento do Estado ao nível que temos… Somos o que somos, havemos de ser melhores. O princípio democrático ainda está na sua infância. Há grupos da sociedade civil que querem contribuir na função de monitorização e é muito bem-vinda essa atitude. Não é negada. Às vezes cria fricção, o que é normal. Mas o fundamental é que se aceite o contraditório.
O país estará mesmo preparado politicamente para que exista esse contraditório, esse escrutínio?
Se me perguntar do ponto de vista técnico e administrativo, não. No que diz respeito a economistas e analistas em quantidade e qualidade ainda estamos longe do ideal, mas vontade política posso garantir que existe. Já que disse que eu era um grande crítico, veja que estou no Governo. A vontade está expressa. Falou de mim, eu falo do meu colega do lado, que é governador do Banco de Moçambique [e ex-funcionário do FMI], um tecnocrata perfeito, um moçambicano com um saber macroeconómico que não depende de ninguém. Eu tenho dito que não preciso que o FMI me venha dar aulas. Eu estudei na mesma escola. E agora na mesa vai-se provar isso, quando vierem com excesso de tesoura. Vai ser uma discussão de igual para igual, iremos ver quem está com mais garra política. Mais para a direita, talvez mais para o centro, mas haveremos de encontrar um equilíbrio.
Defende a expectativa que se depositou nos projectos do gás ou o país fez mal em não apostar noutras áreas, como a industrialização que referiu?
Há essa teoria de que os recursos dão desastre, mas porque não deu na Noruega, na Itália ou na Inglaterra? Será que só dá connosco cá em baixo? E vou dizer-lhe, com todos os meus dentes, não. Vá ao nosso vizinho Botswana, têm diamantes, não deu miséria. Essa maneira de ver é análise de café. Nós temos de fazer as duas coisas. O que é preciso entender é que temos défice de empresários. Está a falar com um doutorado, que estudou na Cornell University, mas é filho de um pedreiro. Eu não tenho herança para poder dar como hipoteca para começar por isso a banca comercial não me serve. Temos de encontrar outros mecanismos porque o meu saber é desvalorizado. Pelo facto de estarmos onde estamos, precisamos de ter opções muito particulares. Não estou a inventar nenhuma roda.
Sem essa base de empresários, como vai o país recuperar?
O que temos feito é abrir a economia ao investimento estrangeiro, transformar a nossa terra na terra onde se sinta bem quem quer trabalhar para produzir a sua própria riqueza. Nós não somos contra a transferência de lucros, quem trabalha precisa de ser remunerado. O que nos falta talvez, e já estamos a tomar algumas medidas, é alterar o nosso enfoque na promoção do investimento. Eu quero que tirem os diamantes, quero que tirem o gás. O gás está cá para os próximos 100 anos. Quanto mais retardar a sua exploração, estou a sacrificar a próxima geração. Não quero que o meu neto fique à espera do gás. Quero que, com os fundos do gás, tenha competências intelectuais para ficar na sua terra, ou em qualquer parte do planeta, a trabalhar para a sua terra. Os grandes projectos estão estabilizados e agora vamo-nos preocupar com a industrialização. Mas não me posso esquecer que um dos grandes desafios que temos é ligar o campo à cidade e isso não pode ser de forma extractiva. A forma de comercialização que se instalou do país, depois da imperialização, é as grandes companhias irem ao campo, comprarem o excedente do camponês e saírem de lá. Concordamos com este modelo, mas temos a convicção de que é incompleto. Temos de fazer tudo ao nosso alcance para repor o comércio rural.
Como se conseguirá fazer essa transição?
Promovendo a instalação de comércio rural. O Estado não tem dinheiro, mas pode criar o melhor ambiente possível. As lojas já lá estão, apenas estão danificadas. Então vamos pedir ao empresário que reabilite e o custo pode ser descontado no imposto, por dois ou três anos. Mas vai-me levantar o problema da segurança, que os próprios empresários levantam. E eu pergunto: se eu acredito no cidadão ao qual chamo polícia e lhe dou uma arma, por que não acredito num agente económico? O que é preciso é treiná-lo. É uma questão de coragem. O comerciante precisa de se defender, vamos equipá-lo. Nos Estados Unidos, com toda aquela pujança, há mais tiroteios. O segundo desafio que temos é que o país perde até 27% da produção logo no pós-colheita, por falta de armazenamento ou deficiências no transporte. Se perdemos tomate, não posso esperar para produzir tomate numa aldeia porque não tem escala [para compensar as perdas]. Mas ensinar as comunidades locais como se faz massa de tomate vai-nos ajudar a não perder a produção.
Recuperando o tema do investimento estrangeiro, como pode um país tão dependente do que vem de fora resistir perante os números que mostram que os investidores estão a fugir, por causa da crise e do conflito armado?
A perturbação política existe, mas não é da dimensão que um europeu entende. Quando um europeu diz que a Frelimo e a Renamo não se entendem e que estão aos tiros, devem estar a pensar que os tiros são de manhã à noite. São tiros esporádicos. São preocupantes, mas não têm a intensidade do Afeganistão.
Mas têm impedido a circulação em algumas zonas do país.
Não, não impedem a circulação. Dificultam a circulação, aumentam o risco, aumentam o seguro. Não nego que contribui [para reduzir o investimento estrangeiro], mas em Nova Iorque rebentaram duas bombas e será que o Macy’s fechou? Eu não quero evitar responder à sua pergunta, quero é responder da forma mais profunda. Faço um comparativo para que se perceba.
Apesar da actual situação, a Sonae anunciou a entrada em Moçambique com a compra de dois supermercados. Como vê este investimento?
É um investimento muito bem-vindo. Nós precisamos dele e vamos acarinhá-lo na medida das circunstâncias. Temos de ver os benefícios que poderemos dar porque se retirar impostos nas actividades agrícolas, numa sociedade piramidal com uma base larga, como vou manter os subsídios? Posso fazê-lo temporariamente em momentos de crise, mas a economia não aguenta. Os mega projectos vão-nos dar um conforto financeiro e fiscal, mas esse conforto não pode ser dirigido para subsídios, mas sim para a produção. Um subsídio sem horizonte temporal não ajuda ninguém, o agricultor não cresce, a produção cresce de forma insustentável. Já ouviu dizer que o Banco Mundial é o mau da fita, que não deixa subsidiar? Não é verdade. O Banco Mundial subsidiou sementes, agro-químicos no Malawi, que é uma caixa de fósforos. Subsidiou na Zâmbia, que hoje exporta tudo. Temos de saber negociar com o Banco Mundial, mostrar e provar que não queremos dinheiro para consumirmos mais. Não, nós queremos dinheiro para produzir mais e mudar as nossas práticas de produção.
Essas negociações não estarão neste momento feridas por causa do tema da dívida escondida?
Está claro que precisamos de um acordo com o FMI para que todos os demais agentes internacionais e o mercado de capitais possam olhar para Moçambique de forma diferente. Isto não é segredo para nós. Precisamos de melhorar os níveis de confiança. Fomos os meninos dos olhos azuis nos últimos 30 anos e, da noite para o dia, passámos a ter vergonha de nós próprios. Nós não somos assim, estruturalmente o moçambicano é orgulhoso.
Sente que os decisores políticos de Moçambique estão a ser vistos como os únicos culpados, apesar de os bancos e de os parceiros internacionais não serem alheios à crise, nomeadamente à da dívida escondida?
Era por aí que queria ir. Leiam o Basileia III [regras impostas à banca fruto da crise mundial no pós-Lehman Brothers]. Agora que eu sei, todas estas dívidas foram de project finance, uma estrutura muito exigente em que o banco financiador é que gere as receitas da empresa financiada. Será que quem está no Credit Suisse é analfabeto?
Por isso é que, não existindo um único culpado e não tendo sido declaradas, há quem defenda que estas dívidas não devem ser pagas. Qual é a posição do Governo?
Devemos renegociar para termos e condições que a nossa economia suporte porque somos um Estado soberano, não somos um Estado falido. O que a governação anterior fez, a nova governação tem de assumir. Só que tem de assumir com outra postura. É verdade que os doadores estavam cá, o próprio FMI estava cá, a Dr.ª Christine Lagarde veio a Moçambique fazer o African Rising e agora sabemos que nessa altura o empréstimo da Ematum tinha já sido assinado. Eles sabem mais do que nós. Agora sei um pouco mais pelo cargo que ocupo. Defendo que o país tem de honrar os seus compromissos, mas não temos que honrar o valor facial.
Que tipo de renegociação procuram?
É preciso ver a capacidade que temos para pagar e o tempo. Se eu chegar ao credor e disser que não tenho condições para pagar, ou se renegoceia ou entra-se em default. Mas aí eu respondo que o default também é teu porque não fizeste due dilligence. Os financiadores do Credit Suisse e do soviético [VTB Group] o que vão dizer? Estamos todos no mesmo barco, com margens muito pequenas. Temos de cumprir, mas eles também precisam de Moçambique para não dizerem aos accionistas que não foram profissionais. O que o Presidente da República foi dizer a Washington [encontros ocorridos em Setembro com FMI e Banco Mundial] foi que estamos abertos a uma auditoria internacional. Mas vamos aproveitar – a crise dá para isso – e fortalecer as nossas instituições. O FMI que diga o que quer, mas que seja feito dentro da Procuradoria-Geral da República (PGR). É uma forma de capacitar esta instituição.
A dúvida que se impõe é se uma auditoria feita dentro da PGR terá a independência que é exigida pelo FMI.
Continua a ser externo, como o FMI pretendia. Qual é a diferença entre fazer no Hotel Polana ou nos escritórios da PGR? Os técnicos são os mesmos, os termos de referência da auditoria serão de comum acordo. Se for desta forma, os moçambicanos na volta vão aprender. Fazendo no Polana ninguém aprende, fazendo em Londres vamos receber 500 páginas em papel, o resto fica lá. Parece-me justo e sensato. O Presidente não disse que a auditoria irá ser feita sob o comando da PGR, o que ele pediu é que façam dentro das instituições. A equipa que o FMI enviou não trabalha no Hotel Polana, trabalha no Ministério da Economia e Finanças.
Que acordo já existe sobre os termos de referência?
Não vamos inventar a roda. Serão os termos de referência internacionalmente aceites de como é que se olha para uma dívida pública. Não se esqueça que os economistas, tal como os médicos, têm obrigações deontológicas. Não posso mexer num número só para melhorar [as contas]. Não posso, não devo. Tanto eu, como um analista do banco. Só para perceber: venderam-nos os barcos e não temos marinheiros. O homem do banco não deveria ter perguntado se havia marinheiros? Era o mínimo.
Entende, por isso, o choque que provoca na sociedade ver que os barcos que compraram com a dívida não declarada continuam parados?
Absolutamente. Por isso é que aceitámos que a Assembleia da República fizesse a comissão de inquérito. A própria PGR já se pronunciou, concluindo que tem características de atropelo à lei. Todo o mundo é inocente até…mas isto são valores que no nosso dia-a-dia não são fáceis de cumprir.
"Fomos os meninos dos olhos azuis nos últimos 30 anos e, da noite para o dia, passámos a ter vergonha."
Seguindo esta ideia dos atropelos à lei, que consequências poderá ter uma auditoria deste tipo para os decisores políticos envolvidos?
Temos dois momentos. O primeiro é saber o quê, qual o envolvimento e se possível quem. E o segundo é a decisão que institucionalmente compete aos tribunais. Está a ver a vantagem de ter lá dentro, na PGR, a auditoria? Se houver matéria criminal, é só accionar lá dentro e a função da PGR é passar à segunda fase. Os sinais de transparência e abertura estão aí. Talvez estejamos a divergir na velocidade, alguns quereriam que já estivesse resolvido. Mas aí já não sou a pessoa indicada para me pronunciar, terá de ser a PGR, a Assembleia da República. Se a comissão já está operacional, não sei. Claro que a velocidade está a prejudicar a economia. Restabelecida a confiança talvez não estivéssemos a este nível. Mas uma coisa boa aconteceu em todo este marasmo: percebemos que podemos viver sem doadores. Ainda não morremos e já vai fazer um ano.
Que implicações pode ter a auditoria, tendo em conta que alguns dos decisores envolvidos na contratação destes empréstimos ainda têm ligações ao Governo e ao partido no poder?
Quando me põe a pergunta desta maneira, eu percebo. É tentar envolver o actual Presidente em tudo isto, porque era ministro da Defesa. O que eu vou fazer, para pensarmos juntos, é imaginar que a senhora tem um guarda no seu prédio e lhe diz que precisa de botas e guarda-chuvas para o seu trabalho. Qual é a resposta que está à espera? Está a cumprir a sua função. Sobre o facto de o Presidente ter sido ministro da Defesa, não se esqueça que temos 3500 quilómetros de costa e agora multiplique por 200 quilómetros de soberania marítima. Está literalmente desprotegido. Se o meu chefe me diz que preciso de meios para guardar a costa, de que resposta está à espera? Essa forma de entrar me parece não muito justa. Isto tem de ser tratado de outra maneira. Não pode ser tratado de forma arruaceira.
Falou do tema dos doadores e disse que o país mostrou que consegue viver sem eles. Mas por quanto tempo?
É sempre discutível. Eu sou da geração do repolho, mas claro que é diferente hoje. A nossa burguesia já não iria querer deixar o whisky. O total dos doadores representa 500 milhões de dólares, mas o volume de investimentos que vem é suficiente e, se fomos criteriosos, cortamos no investimento num valor igual à doação externa. Pego nas receitas e passo para o consumo, faço um aperto ao Estado para tirar as célebres gorduras e ponho a economia a trabalhar a um outro nível de eficiência.
Está a dizer-me que acredita que podem viver daqui para a frente sem o apoio dos doadores?
Cortámos o orçamento, vamos fazer a ginástica possível para trazer a inflação a níveis aceitáveis e, se formos capazes de viver assim, por quê estar a receber doações para relaxar? Eu sou contra. Doação temos de receber mas para um uso mais eficiente, mais criterioso. E não receber doação por doação só para ter mais um escritório e mais computadores, ficando zero do lado da produção. Com franqueza, teremos de ser unidos para, passando a crise, fazermos uma avaliação muito rigorosa do que queremos da ajuda externa. Passando a crise, vamos voltar ao mercado de capitais, vamos ter abertura aos créditos bonificados. É sobre estas duas possibilidades que deveremos passar a acertar o nosso orçamento. O que vier a mais vamos ver. Sei que as doações têm um papel tremendo na saúde, na compra de medicamentos.
Na educação também…
Eu não sou naive. Estou é a dizer que vou aceitar apoio aos medicamentos, mas não sei se estarei muito aberto para seminários de economia verde, se isso me consumir dois milhões de dólares. Estarei sim disponível para ensinar como se faz o tomate e a batata.
Quanto estima que a situação estabilize?
Vai depender. Esta missão do FMI vem definir os termos de referência e o programa de apoio. Para se fazer um programa de apoio, há uma série de exigências orçamentais para garantir a sustentabilidade, as coisas que vêm o manual. Passando este teste, e se algo [um acordo] for assinado em Novembro, a minha previsão é que no primeiro trimestre do próximo ano a economia esteja a funcionar numa base já mais estável, mas com apertos.
Sobre o programa do FMI, onde deve ir e onde não pode ir?
O FMI não tem muitos sítios para ir. A função é suportar o país nas contas externas e a monitorização.
Fazendo as suas exigências pelo caminho…
Como eu lhe disse, eu sei tanto quanto um homem do FMI. As contas desequilibradas não levam a lado nenhum. A diferença na academia e na vida profissional é a forma como se chega lá. E não há duas escolas, o que muda é a variável que se escolhe. Pode-se chegar lá mexendo na variável investimento ou na variável despesa do Estado. Ou na combinação das duas. Se aplicar medidas que provoquem um levantamento público e que me obriguem a pôr o exército na rua, aumento os gastos na defesa, a reparar as estradas. Não há varinhas mágicas. Veja que eu estou muito atento à economia portuguesa.
"O que a governação anterior fez, a nova governação tem de assumir."
"Venderam-nos os barcos e não temos marinheiros. O homem do banco não deveria ter perguntado se havia marinheiros?"
O PÚBLICO(Lisboa) – 30.09.2016