Por Aline Frazão
Viajar dentro do continente é, provavelmente, o que me ensina mais sobre nós hoje em dia. Maputo é, em muitos sentidos, a antítese de Luanda. Não sei se é o Índico, a poesia rasgada de Eduardo White, o som hipnótico das timbilas ou a música por trás dos neologismos de Mia Couto. O céu é o mesmo mas o tempo aqui é outro. Não sei se é a proximidade com o pólo sul que cria um campo magnético capaz de fazer girar mais devagar os ponteiros deste relógio, ou se é mesmo um talento especial para o sossego. Sei que para uma luandense, chegar aqui pela primeira vez é encontrar o delicioso sabor da diferença.
Maputo tem luz, Luanda tem gerador. Maputo tem água nas torneiras, Luanda tem tanque e electrobomba. Maputo é uma cidade limpa, Luanda não se pode gabar disso. À hora de ponta, o trânsito daqui é o “até está a andar bem” para nós. Maputo é horizontal, Luanda é vertical. Maputo respira, Luanda transpira.
Hoje, terça-feira, é feriado em Moçambique. Celebra-se uma paz que, contraditoriamente, ainda não chegou. Apesar de falarem baixo, apesar da serenidade nos rostos e da amabilidade no trato, não se trata de um povo passivo ou resignado. Ainda ontem houve uma greve dos chapas, os candongueiros daqui, para exigir um ajuste do preço do transporte de acordo com a subida dos combustíveis. Moçambicano não se deixa. Quando me disseram que há mais de uma década que Moçambique tem eleições autárquicas levei as mãos à cabeça em sinal de vergonha. “Como é que nós, em Angola não temos? Será assim tão difícil? Não podemos aprender com os exemplos aqui ao lado?”
Falando em proximidade, no restaurante onde jantei ontem ouvi tocar pelo menos duas vezes o Carlos Burity. Angola, aqui, passa na rádio. Lamentei, em silêncio, que não aconteça o inverso. A música de Moçambique é uma grande desconhecida para nós. E não é falta de talento. De Sukuma a Azagaia, passando por Isabel Novela e Moreira Xonguiça, há para todos os gostos.
Precisamos construir nossas pontes. Visitar-nos mais.
Maputo é um daqueles lugares do bom silêncio. Traço fino que vi no rosto de cidades como o Lubango. A precisão, o verde escuro, a temperatura. Até o vento da frente fria, que alonga a linha do “inverno” (nós diríamos cacimbo), nos arrefece com imprevisível doçura. Acho que é coisa de sul mesmo. Ou coisa de alguém com os sentidos tão viciados pelo caos da cidade, que tem o Sul como metáfora de Sossego. O Índico como um apontamento para a Lembrança.
No outro dia ouvi alguém dizer que “cada um tem a cidade que merece” mas não sei se estou de acordo. Se cada um estiver na cidade a que pertence… Como diria o extraordinário poeta Eduardo White, “não é justo um pássaro onde ele não pode voar.”
Luanda da tensão e dos problemas, dos lamentos e da extensão do riso, Luanda do martelo e dos motores, das sirenes e do “agarra gatuno”, Luanda da poeira, das bichas e das mil besteiras, Luanda da ostentação e do desejo, do ar-condicionado e das sofisticadas fechaduras, da poesia urbana e do gelado de múcua, capital mundial do contorcionismo burocrático, cidade da minha vida, diz-me, quando foi que começamos a ser assim?
In http://www.redeangola.info/opiniao/maputo-tem-sul/
NOTA:
De um dos comentários no site: “O exemplo serve para ambos os lados: - um ancião vindo dos anos 70 e tendo passado pelas " descolonizações " rectificou uma insatisfação da sua neta afirmando: - " Pois é, Angola e Moçambique antes de 75 eram países em África, agora são mais uns países africanos ! " .