Por Alves Gomes
A exposição organizada pela Fundação Mário Soares (FMS), em homenagem ao Presidente Samora Machel, em Lisboa, aberta no passado dia 24 de Novembro, com fotos de Kok Nam, tem centrado as atenções dos seus visitantes numa imagem de que o homenageado não faz parte.
Captada no dia seguinte à morte de Samora Machel, em Mbuzini, na África do Sul, é uma foto gravada por Kok Nam e impressa na revista Tempo, poucos dias após a tragédia.
O que tem chocado os visitantes à exposição “A Palavra e o Gesto” sobre o primeiro Chefe de Estado moçambicano, é o conteúdo revelador e indesmentível da imagem.
Por fundo, ela mostra parte dos escombros da aeronave em que Samora Machel e seus colaboradores pereceram no dia 19 de Outubro de 1986, aparecendo à sua frente um conjunto de polícias sul-africanos (uns com luvas, outros sem elas), entre os quais um com ar desafiador, outro com atitude insolente relativamente ao fotógrafo.
Mas o âmago da foto é uma personagem insólita: um jovem branco e aloirado, com ar de operacional militar, mal dormido, vestido com calças de ganga, carregando nas mãos umas cartucheiras de caçadeira, e uma T-Shirt com os dizeres, em inglês, “aqui termina o terrorismo” !
Nada mais elucidativo poderia Kok Nam ter fotografado, algumas horas após Samora Machel ter perdido a vida na aeronave que o transportava!
O que estava aquela personagem, vestida à civil e com umas cartucheiras na mão, fazendo no meio dos escombros de uma aeronave presidencial?
Esta tem sido a pergunta dos organizadores e dos muitos visitantes que têm ido à FMS, em Lisboa, para apreciar a homenagem a Samora Machel, com fotos de Kok Nam, trinta anos depois de Mbuzini.
Alfredo Caldeira, administrador/ curador da FMS, preocupou-se em investigar sobre a proveniência daquela T-shirt que, para além de ter inscrita a frase sobre o fim ao “terrorismo”, tem o desenho de um soldado de arma na mão chutando uma caveira.
Facilmente se “descobriu” que se trata de uma camiseta produzida por soldados rodesianos nos últimos tempos da guerra pela manutenção dos “mil anos da supremacia branca” na Rodésia de Ian Smith. Uma guerra que contou com a forte colaboração das forças armadas sul-africanas.
A 20 de Outubro de 1986, um jovem loiro, civil, levando nas mãos umas cartucheiras, envergando a T-shirt rodesiana “anti-terrorista”, passeava-se, com semblante de quem estava há muitas horas activo e com olheiras de cansaço, no meio dos destroços da aeronave presidencial moçambicana.
Fazendo o quê ?
Quem é este homem e a quem servia?
O que estava ele a fazer àquela hora e naquele local ?
Por que ele escolheu envergar aquela T-shirt naquela ocasião?
Esta é a pergunta para a qual a foto de Kok Nam não tem, até aos dia hoje, resposta !
As investigações em volta das causas do acidente aéreo, que vitimou o Presidente Samora, nunca prestaram atenção a este documento.
Ele é de obrigatória investigação, para os Ministérios Públicos moçambicano e sul-africano que, nos dias de hoje, prosseguem as investigações sobre a tragédia de Mbuzini.
A foto prova, sem sombras de dúvida que:os procedimentos de investigação ao acidente aéreo, conforme recomendação do Anexo XIII da ICAO (International Civil Aviation Organization), sobre acidentes aéreos, não foram observados.
Contrariamente ao que seria de esperar e como a imagem o prova, não há nenhum sinal da presença da Autoridade Aeronáutica sul-africana, nem de organização investigativa ao acidente nas horas que se sucederam ao mesmo.
A zona deveria ter sido fechada, para de seguida ser devidamente mapeada pelos investigadores do acidente aéreo, com indicações sobre a localização dos corpos, equipamentos da aeronave, pertences dos seus ocupantes, etc.
Fica claro que isso não aconteceu, o que contraria toda a informação então prestada pelos governantes sul-africanos de que tudo estava sendo feito de acordo com os procedimentos internacionalmente exigidos.
Nada mais falso conforme a foto prova.
Verifica-se que, mesmo os policiais sul-africanos, não têm a postura organizada de estarem à procura de indícios do acidente, ou de restos mortais, mas sim de encontrar documentação – no momento em que registou a foto, Kok Nam já havia fotografado a urna contendo os restos mortais do Presidente Samora.
Outra prova irrefutável da inobservância das regras da ICAO é que Kok Nam encontrou e retirou do local do acidente a câmera fotográfica do seu colega de trabalho e fotógrafo pessoal de Samora Machel, Daniel Maquinasse. Ninguém o impediu de cometer uma grave infracção às recomendações da ICAO sobre a investigação de acidentes aéreos.
Toda a investigação que se seguiu ao acidente centrou-se essencialmente na informação das “caixas negras” da aeronave.
Nem a Comissão de Inquérito moçambicana (proprietária da aeronave), nem a Comissão Soviética (produtora da aeronave), nem a Comissão Sul-Africana (do local do acidente), alguma vez prestaram atenção, ou demonstraram estar preocupadas de forma séria e profissional com o local do acidente.
O Relatório Final do Acidente, segundo recomendação do Anexo XIII da ICAO, deveria descrever que tipo de bagagem estava bordo da aeronave, se haveria armas (coisa justificável numa aeronave presidencial) e outro tipo de carga.
Nada disso foi referido por nenhuma das comissões de inquérito, incluindo o relatório da Comissão liderada pelo Juiz Margot da África do Sul, nem o relatório rubricado pelas partes sul-africana, moçambicana e soviética.
Por isso, se deve colocar a questão sobre onde o homem da T-shirt encontrou as cartucheiras ?
Encontrou-as entre os escombros ?
Trouxe-as de casa depois de vestir a T-shirt a condizer com o momento ?
Ou retirou-as de um armeiro de um quartel de operacionais militares sul-africanos ?
Esta personagem estava só, ou fazia parte de um grupo presente no local do acidente ?
A foto prova que o que se passou a seguir ao acidente foi um verdadeiro pandemónio.
Do lado moçambicano terá havido apenas a preocupação em recolher os restos mortais de Samora Machel e os dos seus acompanhantes. Do lado sul-africano seguiu-se a vasculha pela documentação e do lado soviético uma visita ao local, quando a cena do acidente já havia sido profundamente violada.
De forma profissional Kok Nam deixou este registo, esta prova, que é de obrigatória investigação, mas que ninguém jamais se preocupou em investigar.
Embora tenha então sido publicada na revista Tempo, a imagem jamais foi requisitada, ou objecto de interesse por quem o deveria obrigatoriamente fazer. Nenhuma das partes interessadas, moçambicana, sul-africana e russa o fez até hoje.
A importância de investigar as provas contidas na foto é relevante e actual.
As causas de muitos acidentes aéreos têm por vezes sido desvendadas com a interpretação de provas consideradas de pouco interesse, mas que do seu nada provam e corroboram linhas de investigação que carecem do ajuste de pequenas, por vezes ignoradas, peças do “puzzle”.
SAVANA – 09.12.2016