A sentença do Tribunal Judicial de Kampfumo, em que – após comprovado o arrepiante caso de corrupção e abuso de funções por parte de Jeremias Tchamo, ex-administrador financeiro da empresa pública Linhas Aéreas de Moçambique, e por parte de Joaquim Tchamo, também funcionário da LAM e irmão de Jeremias, – o juiz decidiu mandar para casa os dois como heróis, revela um pouco até que ponto o poder do Estado foi vulgarizado. Foi tão vulgarizado que os tribunais passaram a apreciar actos criminais contra o próprio Estado emitindo sentenças com valor equiparado a certificados de mérito reconhecendo e exaltando o engenho dos prevaricadores.
Ficou provado no tribunal que, usando o cargo de administrador financeiro, o senhor Jeremias Tchamo assinou vários contratos de prestação de serviços à empresa Linhas Aéreas de Moçambique, contratos esses com empresas do seu próprio irmão, também funcionário da LAM, com esquemas de subfacturações à mistura, lesando o Estado em milhões de meticais. Dois irmãos uniram-se para sugar o Estado, fazendo-se valer das suas posições no mesmo Estado.
Reunidas que foram todas as provas, o tribunal decidiu condenar a dois anos de pena suspensa apenas Jeremias Tchamo, o ex-administrador, o qual vai para casa e, na pior das hipóteses, poderá pagar multas. Ao seu irmão Joaquim Tchamo nada acontece, e tudo acaba por aí, na leveza de um sistema montado exactamente para não combater a corrupção.
A questão que se coloca é: qual é a pedagogia que a sentença do Tribunal Judicial de Kampfumo transmite?
Que mensagem transmitiu o Tribunal à sociedade? Todas as possíveis. Mas a principal é a de que esta Justiça actua, assim como está, como parte legal da cruzada do avacalhamento do Estado. Não cabe na cabeça de ninguém que, num processo, tudo acabe em palmadinhas nas costas, com a Justiça a prestar-se a um serviço absolutamente degradante.
Uma coisa é ter corruptos a conceberem esquemas para prejudicarem o Estado e, em última instância, prejudicarem todo o povo, outra coisa é ter uma Justiça a fazer claque a esses mesmos corruptos e a presenteá-los com molduras penais ridículas, e, em última instância, a incentivar o roubo.
O que o Tribunal Judicial de Kampfumo fez foi emitir um certificado de estupidez colectiva para todos os cidadãos moçambicanos que acreditavam que podiam contar com a Justiça para a moralização do Estado. No caso em apreço, é a Justiça que decidiu encontrar nos corruptos um parceiro de dança.
Não é por acaso que estamos, hoje, onde estamos por causa dessa mesma corrupção. Moçambique é, hoje, um país sem credibilidade, por causa da corrupção, mas, mais do que isso, é por causa da complacência de um sistema de Justiça que incentiva a corrupção.
Temos um relatório de uma comissão parlamentar que investigou um escândalo de proporções bíblicas como o das dívidas ocultas, em que os visados reconheceram que violaram a lei e até se dão ao luxo de afirmarem, à luz do dia, que o “fariam de novo”. Outros assumiram que a intenção era mesmo violar a lei. O que é que a Justiça fez? Absolutamente nada.
Esses mesmos cidadãos, tal como o ex-administrador da LAM, estão aí a passear impunemente, como verdadeiros heróis da conduta bandoleira.
A Justiça trata de lhes garantir as insígnias de cidadãos “desejáveis ao sistema”.
Atingimos um nível tão degradante que os cidadãos começam a ter vergonha de serem honestos, perante um sistema que exalta a gatunagem.
Estamos assim numa espiral de violência psicológica e simbólica de uma Justiça implacável com os fracos e fraca com os que são considerados fortes. E se é a Justiça a colaborar para a degradação da ética e dos bons valores, é consequente que os cidadãos fiquem tentados a adoptar de forma generalizada uma postura a condizer com as regras do momento.
A corrupção vai somando e seguindo, fazendo escola nos escalões inferiores. A nível médio e de escalão mais abaixo, vai-se institucionalizando uma prática de extorsão de “refresco”, que conquista mais almas a cada dia que passa, muito por conta dessa heroicidade que implicitamente se atribui aos corruptos. Já é quase impossível ir a uma repartição pública tratar qualquer assunto e ter um final feliz, sem deixar dinheiro do tal famoso “refresco”. O cidadão que, de forma inocente, pensar que o funcionário do Estado lhe vai prestar um serviço como Estado, está redundantemente enganado. O Estado foi substituído por cliques privadas ou singulares, que actuam em nome próprio. Em cada repartição pública, cada funcionário criou a sua própria empresa, onde vai cobrando “refrescos” para atender a cada solicitação. É impossível ter um Bilhete de Identidade sem pagar “refresco”. É impossível ter uma Carta de Condução sem pagar “refresco”. Até para visitar os nossos próprios doentes no hospital, temos de entrar em esquemas de “refrescos”. É uma prática degradante, que se vai alastrando, criando atraso na progressão deste país. Mas, cada funcionário que actua extorquindo “refresco”, não o faz porque tenha sido ele quem inventou essa postura. É um exemplo que vem de cima e que desce, com a sua virulenta repercussão, para todos os escalões inferiores.
Esta é a era da institucionalização dos chulos montados no Estado. (Canalmoz / Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 27.01.2017