Adelino Timóteo considera que Dona Luíza empresta a imagem de resistência contra a ocupação colonial
Há uma semana, Adelino Timóteo lançou o seu mais recente romance no Porto, em Portugal. Intitulado Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz, o livro transporta o leitor para um passado distante, mas que deveria se impor como um marco na história do país.
Na cerimónia de lançamento do livro naquele espaço europeu, como é habitual, o autor partilhou algumas palavras com o público presente. A seguir, porque julgamos importante quanto necessário, transcrevemos o seu discurso na íntegra, pois, assim, percebem-se as inquietudes do romancista, e, consequentemente, disso revitaliza-se a rica história (quase que ignorada) de um povo.
Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz, um dos nomes que mais encantou, mais comoveu os portugueses, aquando da ocupação efectiva em Moçambique, é desta figura que se tornou empecilho à colonização. Figura tutelar do século XIX, apesar de politicamente discreta, entre uma infinidade de nomes, de listas, relacionadas com o protonacionalismo, está o nome Dona Luíza. É um marco. No mapa cultural e de identidade do país emergente há uma paisagem multicolor que me permitiu compreender o presente. Combinando a astúcia com a bravura, o dualismo com a argúcia, Dona Luíza Michaela da Cruz não é só uma personagem digna de romance, mas de exaltação. Durante mais de duas décadas, a história dos prazos da Zambézia me inquietou, me comoveu. Durante muitos anos colocou-se-me as figuras dos senhores muzungus, dos cafres e escravos.
Esse livro talvez seja o ajuste de contas com esse passado encantador que me tem seduzido. Esse passado de inconformismo, que me leva muitas vezes a questionar, se por um lado os prazos tinham exércitos privados, em números de longe bastante confortáveis para infringir uma derrota humilhante aos ocupantes, como terá sido possível a submissão do vale do Zambeze pelos portugueses? O dualismo de Dona Luíza ilumina-nos a esse dilema, pois o conceito de nação por aquelas alturas desenvolveu-se no seio dos autóctones, daí as inúmeras revoltas que tiveram lugar na época e conhecerão o balázio em Báruè. Nisto, Dona Luíza configura-se como uma senhora de armas, uma mulher que tentará subverter a lógica concebida sobre as terras dotais dos prazos, para encarnar a sua maneira de ser e pensar, desdenhando os cânones impostos e as regras estatuídas. Este protótipo de beleza, ignorada pelo Moçambique actual, emerge com o seu dom varonil, representando uma maneira de estar muito sui generis, para a altura. Uma atitude inquietante e adiantada ao tempo.
O nome Dona Luíza é certamente a que empresta a imagem de resistência contra a ocupação. O nome de Dona Luíza é quem me suscita a imagem dos negros de tanga, na calma dos seus manipansos, no dizer de Eça de Queirós. Da cauda felpuda da magia, dos braceletes de latão, dos diademas e de ouro, que adornavam as damas da corte, como ela. É a imagem de uma burguesia contestatária, dissidente ao poder de então. É também a imagem de um poder que se qualificava em função de números de súbditos escravos. O nome Dona Luíza é também o de uma figura versada aos amores e desamores, pela forma cruel como tratava os seus desafectos. É a esfinge de quem se via na crista da onda, tão altiva, ao ponto de desdenhar o governador-geral, ao ponto de praticar a justiça sumária dentro das suas terras. É uma mulher que puniu severamente seus afectos reinóis, jogando-os na laguna infestada de crocodilos.
Pelos tempos em que discorre a sua odisseia, sendo mulher, o autor de Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz resgata-a, do seu sagrado sono. Dá-lhe vida, como aos seus diversos contubérnios. Desde Goengue, passando por Tete, Quelimane e Morrumbala, que configuravam o território da Zambézia de então, numa narrativa quase biográfica, condimentada com a ficção, somos levados a transpor em seu mundo, pleno de vitalidade, ao lado de outras donas da época, de que o narrador Livingstone nos irá recordar. Livingstone fixa-se em imagens fotográficas que a descrevem não só como o protótipo de beleza, mas como uma figura rica em vivências, que mapeia todo o Zambeze e leva-o até à Ilha de Moçambique.
Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz é também um livro onde atesta a rota cartográfica desde o antigo império até à Zambézia, por aquelas alturas em que ao comum dos homens portugueses, Moçambique era a sinédoque de riqueza, por isso, com o advento dos recursos minerais, tornar-se tão actual como digna de ser revisitada, pois em tudo que se lhe atravessa há a gula e o infortúnio que precipita a corrida para a teatralidade das matanças. Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz é acima de tudo, contra todos os revés e vicissitudes, um livro de amor. Um livro de amor de homens e mulheres que marcaram uma etapa indelével, intocável, um rastilho ao nosso modo de ser “nas calmas dos nossos manipansos”, sem remordimentos, sem ressentimentos, não obstante os senhores do então terem propiciado a escravatura que levou muito dos seus coetâneos para o Brasil, as Antilhas, Américas. Nas calmas dos nossos manipansos porque adversamente choráramos os nossos senhores, tão duais no seu moçambicanismo como na forma com que perpetuam a violência social, económica e política.
Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz é um livro de mestiçagem que povoa a Zambézia de então. Essa Zambézia desconhecida de bons cozinheiros à moda portuguesa e ao paladar ocidental que enchem os nossos lares, pelo vasto país. Dos zambezianos de trato fino, de apelidos retintamente europeizados, que teimamos em desconhecer. Os oito maridos de Dona Luíza Michaela da Cruz é um livro de vassalos que se apropriam do português, fazendo-a sua língua”.
O PAÍS – 14.04.2017