Canal de Opinião por Adelino Timóteo
Quando acordo, sinto a ressaca a perseguir-me, como um cão sem trela. Não é por acaso, tenho necessidade de me satisfazer com uma nova dose dessa dopamina, de palavras. Uma das minhas profissões tem a ver com a frequência aos alfarrabistas. Sempre que saio de casa, mesmo que tenha um destino certo, perco-me nos alfarrabistas, onde me snifo até que basta.
Nunca sei o exactamente que horas são quando me dou ao tipo de artifício que exerço ao tempo em que tropeço entre livros, com elevada paixão, definitivamente entorpecido pela calma e paciência, da cabeça aos pés. No meu ofício de adestrado, os livros são povoados de ossículos divinatórios dos xamãs, do encantamento que torna a leitura gratificante, e rica a existência. Tanto que seria estimulante que a minha vida durasse mil anos, só a ver se debito os livros que tenho por referência, à espera, em vagarosas e prolongadas doses.
Tenho uma obsessão com os horários. Gosto de chegar cedo, seja lá para que for. E sendo verdade que a minha existência é alimentada dessa paixão, quando tenho um compromisso marcado, vou saindo de casa mais cedo. Duas a três horas prévias, para compensar a prevista demora. E é sempre para a baixa da cidade que vago. A Baixa do Chiado. A Baixa do Rossio.
Tenho sempre reservado os meus encontros, para a Baixa de Lisboa.
Esses encontros são só um pretexto, porque garantem previamente que possa matar a ressaca em que ardo, antes de trabalhar por algumas horas nos alfarrabistas, a limpar o pó aos livros ou a inalar o pó a essa droga em que me viciei faz muito tempo. Na Beira, ocupo-me dessa profissão no jornal onde trabalhei, com uma máscara de pó subtraída aos enfermeiros. Por certo, o exercício de frequentador de alfarrabistas não difere em nada do de um drogado, porque às vezes se me deparam livros velhos, que reúnem aquela dose cavalar, de alucinar.
São livros chamuscados pelo tempo, empoados de tão frágeis, empoados de tão que não há quem lhes toque a alma e o coração há muitos anos. Livros que parecem não importar, mas interessam, por sensíveis que são. Esses são os que muito me seduzem. Amarelecidos.
Que respeitam a grafia antiga.
Põem-me a vertigem, a ver o mundo à roda, alguns escribas geniais, pelo dom com que me transpõem pelo espaço sideral e pelo tempo. Maravilhoso expediente ancorar-me na lua. Pousar-me numa estrela da divina irrealidade.
Quando vou aos alfarrabistas preparo-me como quem vai ter com uma namorada. Preparo-me como quem vai dedicar a tarde inteira numa viagem às carícias.
Engalano-me todo. Perfumo-me. Com rigor, a ver se um maravilhoso livro me atropela e me faz companhia, pelo resto do dia. Pois, aprecio as doses de livros, cuja companhia fazem-me prolongar a felicidade, a cumplicidade. Sejam velhos ou novos, sejam com varizes ou reumatismo, seja com sardas ou engessados, o que conta é como o teor do seu alucinógeno pode marear-me, delirar-me. Há uma áurea mágica que se me liga a eles. Insofismavelmente, para mim, os livros não têm idade. Livros há velhos, que quanto mais correm pelo tempo, mais novos são. Livros há novos, que nasceram velhos, com aquela calva de se lhe tirar o chapéu. Livros velhos há que são modernos, como clássicos. Livros clássicos há que me são contemporâneos. Livros belos por fora, maus por dentro, e vice-versa, tanto faz se reúnem o afrodisíaco que se nos liga, que me permite mapear os amores que não amei, as terras que não viajei.
Livros sedutores pelos olhos da cara, misteriosos pelo curso, fundos pela garganta, que me fazem lembrar as mulheres que não amei.
Penso muito. Tenho pensado que os alfarrabistas são melhores vendedores
de antigamentes. Todos os antigamentes desaguam nos alfarrabistas.
Admiro os alfarrabistas, porque eles sabem geometricamente da história, da magia e do feitiço de todos os livros que me seduzem, me encantam. Aquela fala mansa, em surdina. Voz maviosa e doce, seculares. Têm a noção real de quanto custam e não se encantam com a minha conversa fiada, de rebaixas nos preços. E quando os livros são caros, cinquenta a cem euros, que é o salário de um moçambicano básico, faço um trato com eles, tal que me permitem que os leia aos poucos, a meias-doses, garantindo a minha assiduidade a esses espaços com um regresso que a muitos parece incómodo, pelo cheiro a mofo, mas ao mesmo tempo passível de uma carnalidade sem igual, para o meu caso que desdenho coleccionar a “Playboy”.
A minha profissão de visitador de alfarrabistas é incompatível com a de viajante, porque tenho tido o mesmo procedimento viajando em castelhano. Recordo-me de como atulhei a mala de livros e no aeroporto de Bilbao me alertaram do excesso de bagagem. Coisa indiscreta, ao meio da fila, no primeiro mundo, reclamar o meu direito de profissional visitante de alfarrabistas e requerer inquietado à funcionária da aerolínea que fechasse os olhos àquele tipo de atropelo ao limite, olhando o meu caso particular de cidadão comum de um país na cauda do terceiro mundo, legível a desintoxicação numa clínica especial. Não foi sem senão que beneficiei de certa condescendência, agachei-me, a vazar a mala e a descobrir-me, que afinal mais tenho feitio para aquisições em livros, do que propriamente em matéria de consumismo comum.
Depois, aquele chegar ao Aeroporto Internacional da Beira ou de Maputo, a mesma azáfama dos funcionários aduaneiros, sempre circunspectos e a indagarem-me se tenho algo a declarar.
Livros velhos, umas relíquias do exterior é toda a riqueza que garimpei para a casa, respondo-lhes, após o que eles me acenam as mãos, abrindo a passagem. Não poucas vezes, os zelosos aduaneiros suspeitaram-me. Sujeitaram-me ao “scanner”, talvez acreditando que contrabandeio com drogas, algo de desconfiar. Posta a suspeita à prova, a reiterada acusação de que trafico com aquelas relíquias, mais a doceria, bolachas e chocolates, para os sobrinhos, pois evito assim o ajuste de contas com estes.
A Polícia que me ponha algemas nos pulsos.
Assim, eu, drogado em alfarrabistas, confesso-me.
Eu, entranhado drogado em poesianina,,confesso-me: tenho o sangue limpo, mas há nisto algo que me deixa com os fios desligados. Um curto-circuito que me queima a alma por dentro.
Preciso mudar constantemente de alfarrabista. De cérebro. Ou de droga. Talvez de musa. (Adelino Timóteo)
CANALMOZ – 17.04.2017