Estou a cumprir uma daquelas viagens de trabalho ofegante, no norte do país. Manhã, muito cedo, é reservada para uma pequena aeróbica ou aero hit no quarto ou ainda, uma caminhada de trinta minutos arredores do hotel. O telefone não deixa de tocar, ora mensagens ora chamadas que entram, algumas das quais obrigam uma pausa da gímnica.
As 08:00h inicia o lavouro que não tem hora de término, mesmo após o regresso ao hotel um conjunto de calhamaços deve ser analisado e digitalizado até tarde. As metas devem ser cumpridas. Não há horas extras, mas o apetite pela profissão é superior que o bagaço. É preciso trabalhar muito, duro e com gosto; o sucesso virá por si só.
E ao fim de semana, como é de se esperar, é reservado não só para o descanso como também para visitar familiares, amigos, locais turísticos e porque não dançar um pouco numa das discotecas que está a bater na praça. Então escolhi, servindo-me da lógica, visitar o meu irmãozinho Nkwamba. Ele vive naquelas bandas do bairro de expansão, e esse fim-de-semana está de folga no trabalho. Peguei a viatura 4x4 e fui. Pelo caminho avistei buracos na estrada, areal, pântanos e viaturas enterradas. Nem precisei accionar a tracção a quatro rodas, afinal aquelas situações ainda estavam muito aquém das capacidades do BT-50.
Cheguei após várias voltas, manobras, sms e chamadas, para localizar o Nkwamba, que estava numa sessão de cabangada. Num quintal e por baixo da mangueira estão sentadas ou de pé pessoas de todas as idades: as mães com crianças ao colo, adolescentes, jovens, homens, mulheres e idosos. Os baldes, troncos de árvores, caixas de cerveja, esteiras e bidões servem de assento. Motorizadas estacionadas e outras sendo exibidas pelos seus donos com acelerações e pequenos ralis. As pessoas sentadas em pequenos grupos que lembram as mesas redondas. Na verdade são as tradicionais mesas dos restaurantes.
Juntei-me ao grupo do Nkwamba no qual fui convidado a sentar-me na cadeira de plástico. A medida que me sentava, as pessoas dos outros grupos concentravam os seus olhares em mim, denunciando assim que se aperceberam da presença de um estranho naquele local. Agi naturalmente, ouvindo a música que aí tocava com volume exageradamente alto. Músicos e cantores locais eram predilectos. Consegui reter os seguintes nomes de músicos: Chimbunga, 11 balas e Dama Ija. As conversas, em tom alto devido ao barrulho, eram sobre assuntos actuais; o mais predominante era sobre EMATUM. Só ouvi e não contribuí, até porque alguém alertou-me que devia evitar comentar assuntos desta natureza porque “o país não está bom”.
Voltando ao que interessa para hoje. Perguntaram-me o que eu queria beber, mesmo sabendo que não haviam alternativas. Respondi que podia fazer companhia. Serviram-me a cabanga numa caneca de plástico. Cabanga é uma bebida de fabrico tradicional feita a partir do farelo de milho. Bebi um pouco, mas estava muito amarga e confessei ao meu irmãozinho que não conseguiria acabar. Nesse momento o Nkwamba alertou-me que existem vários sabores de cabanga: do mais doce ao mais amargo. Então solicitei o mais doce. Bebi com gosto os 500ml.
As conversas nos vários grupos da cabangada estava muito animada. Havia interacção entre os vários grupos. Para o efeito qualquer um dos elementos de um grupo poderia tomar iniciativa de interagir com o outro grupo, independentemente da distância que os separava, bastava elevar o tom da voz para ser ouvido. Outros dançavam esporadicamente com passos que lembram uma árvore abanando devido ao vento; com a descoordenação e falta de sustentação, os aplausos e assobios vinham de todos os lados. Era a cabanga relaxando as mentes diminuindo a lógica para quem assistia minimamente lúcido. A música local, a marrabenta, o pandza, e muitas variantes nacionais tinham o seu eco naquele local. Sim senhor, alí havia a verdadeira unidade nacional. Consumir a música moçambicana sem nenhuma descriminação regional ou tribal. Senti-me verdadeiro moçambicano, e as lágrimas não resistiram a tanta emoção, e questionei-me: porque irmãos matam outros irmãos? Não tive resposta.
A cabanga era servida em baldes de aproximadamente 5 litros e os consumidores retiravam do balde com recurso a uma caneca para os seus copos. “Kunogwa mwenu!” (é saborosa) ouvia-se num dos grupos o elogio pela qualidade da cabanga. Outros estavam já num estado pastoso que só ingeriam a cabanga inconscientemente sem noção do seu estado de embriaguez.
Notei que aquele lugar era um ponto de encontro entre amigos e familiares. Eram chamadas por aqui, sms por alí, as pessoas marcando encontro para a cabangada naquele local. Era também um local onde as crianças e adolescentes aprendiam a cabangada, e esqueciam os seus direitos e deveres. Aliás os direitos da criança estavam sendo violados a partir da exposição a que estão submetidas naquele local. Lembro-me ter visto um miúdo dos seus quase 12 anos “dando uma corneta” clandestinamente de um copo de cabanga. A sua mãe nem viu porque estava animada naquele papo que se desenvolvia no seu grupo, agravada pelo seu estado de memória relaxada!
As pessoas não paravam de chegar ao local a medida que ia escurecendo. Era chegada a hora de regressar ao hotel. Não queria tomar mais, embora tivesse vontade de um pouco mais de cabanga, porque os 500ml tomados foram suficientes para o início de uma fase sem lógica de um indivíduo. Oxalá se todos pudessem medir e reconhecer os seus limites na cabangada!
Joseph Katame ([email protected])
Link: https://kanotacoes.blogspot.com/2016/06/um-fim-de-semana-de-cabangada.html