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Por: Noé Nhantumbo
Há todo um conjunto de assuntos e questões que mesmo tendo a ver com a União Africana ou com a sua antecessora, OUA raramente se tocam ou mencionam.
Referimo-nos precisamente a questão do comando do que efectivamente se passa e acontece em África.
Não há país ou quadrante mundial que não tenha sido sujeito a conflitos e lutas por esta ou aquela razão. A independência política, o acesso a recursos essenciais para a vida, a defesa de portos e de terras, o acesso a água ou a qualquer outro recurso julgado em determinado momento como vital levaram, a que comunidades humanas, dirigidas por governos se digladiassem.
África, último continente sujeito à colonização, prenhe de recursos, foi durante muitos anos palco de conflitos entre potências colonizadoras que determinaram o seu actual formato de fronteiras.
Etnias foram separadas, montanhas e rios foram utilizados como elementos de fronteira, marcando espaços geográficos dos países que agora existem.
Uma leitura da história recente de África é esclarecedora quanto ao que foi determinando o rumo dos acontecimentos.
Após haver um consenso mais ou menos alargado sobre a irrelevância da Organização da Unidade Africana, os chefes de estado mais uma vez se reuniram e decidiram extinguir a OUA e no seu lugar criar a União Africana.
Se há defensores de que nada mudou quanto a substância da nova organização e da extinta, há que admitir que pelo menos do ponto de vista formal alguma coisa mudou.
Os líderes africanos ou chefes de estado e de governo entenderam fazer uma cópia mais ou menos fiel do formato orgânico da União Europeia. Desse ponto de vista as coisas saíram facilitadas. Mas só foi copiada a forma e não a essência. Enquanto a União Europeia foi produto de concertação demorada, referendos, articulação e finalmente votação, em África toda uma miríade de regimes e formas de governação foram aceites e admitidas. Desde a fundação ou criação não houve debate algum significativo quanto à importância de critérios de adesão e muito menos decisão alguma impedindo a adesão e o gozo dos direitos de membro para países que não cumprissem um mínimo pré-acordado de critérios ou requisitos.
Perante a situação real que se vive só se pode dizer que já existe um ponto de partida para acções futuras.
Países africanos colonizados por potências diferentes são culturalmente diferentes e factos concretos como a pertença a Commonwealth, Francofonia ou CPLP (lusofonia) traduzem-se em diferenças acentuadas de percepção e de acção.
Os países que se tornaram independentes através de processos de luta militar contra a potência colonizadora tendem a ser e a posicionarem-se de modo completamente diferente aos países africanos que acederam à independência sem luta armada.
As doutrinas do marxismo-leninismo acompanhantes dos dirigentes africanos que passaram por Moscovo ou que sofreram a influência directa dos conceitos socialistas produziram alianças mais ou menos perenes entre os integrantes dos movimentos de libertação africanos.
Quando se procura entender porque a democracia floresce nuns países e não noutros, um olhar atento a génese dos partidos que governam pode explicar muita coisa.
Onde começou por reinar um marxismo-leninismo pintado de cores ditatoriais tipicamente africanas, no sentido de copiarem em parte a postura dos chefes tribais inquestionáveis, verificam-se situações de arbitrariedades, ditaduras, repressão das manifestações democráticas e ouça vontade de ver materializadas as recomendações democráticas.
Embora não seja a maioria estes países constituem uma massa crítica na política continental africana.
África do Sul, Angola, Etiópia, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé, Zimbabwe, Namíbia, Argélia, Líbia, República do Congo, Burkina Faso, Guiné-Conacry e outros constituem fortes pontos de manifestação de tendências de governação leninistas, autocráticas, de democracias frágeis e incipientes.
Os outros países africanos no geral são países em que reina uma situação de autocracia e de engrandecimento dos chefes similar à África pré-colonial. Só mudou o tempo e a forma de manifestação do poder mas os chefes pouco mudaram.
Durante o período de luta pela independência e todo o período pós-independência, os países antes colonizadores, sempre estiveram atentos a todos os sinais emitidos por suas antigas possessões.
Na busca de oportunidades de continuar a aceder aos recursos antes explorados e que efectivamente trouxeram grandeza e pujança económica a muitas capitais europeias, houve preocupação e rapidez de não perder de vista qualquer oportunidade. Um conhecimento profundo das pedras no terreno e do meio geográfico e económico possibilitaram a continuação de uma relação económica antiga.
Sem barulho mas mantendo um controlo firme do teatro operacional, muitas companhias e corporações internacionais com sede na Europa foram insidiosamente traçando e “propondo as decisões” que políticos europeus e africanos acabaram seguindo.
Sem muito esforço é possível ver que os governantes africanos estão “felizes e satisfeitos” copiando um pouco o que seus “mentores” fazem.
Onde seria de esperar que face as diferenças de concepção e de implementação política não houve união africana alguma, os governos foram rápidos, sob influência dos petrodolares do defunto Coronel de Tripoli, a aceitar a criar uma União Africana que ao fim do dia mais não era do que o “brinquedo” do mesmo.
Os países africanos como Egipto, Marrocos, Tunísia, África do Sul jamais prestaram ou deram muita importância a União Africana.
Os países como o Mali e outros que tinham a suas quotas de membros pagas por Tripoli prestavam-se a uma vassalagem visível sob pena de perderem financiamentos.
A União Africana fez avançar muitas joint-ventures de inspiração e capital líbio. Alguns ministros dos países recipientes de fundos, se tornaram sócios minoritários de capital líbio visando a exploração de recursos de solo ou subsolo. Isso era visto cooperação Sul-Sul mas na verdade do ponto de vista político tornou-se num processo de consolidação de ditaduras e de outras formas de governo antidemocrático.
Poucos anos após a criação da União Africana e pela defesa velada que a oligarquia de Tripoli exercia de ditaduras perenes do continente. Muitas iniciativas de mudança constitucional de modo a favorecer mandatos presidências ilimitados tiveram um forte apoio de Tripoli e seu Coronel.
Países mergulhados em crises políticas como o Zimbabwe viram-se resgatados financeiramente a troco de terra e de outro tipo de concessão a favor de Tripoli.
Com o abandono tácito dos países da África do Norte, a União Africana tornou-se em mar Líbio sob a batuta de um coronel megalómano, temperamental e com sonhos imperiais. “Rei dos reis” como alguns reis menores e régulos lhe chamavam, amordaçou o continente e a sua organização.
A moeda única, os Estados Unidos de África e outros sonhos rápido se tornaram marca registada de um Kadafi que não resistiu a ofensiva popular rebelde com apoio das chancelarias ocidentais.
A criação da União Africana foi uma experiência interessante e dela podem continuar a colher-se alguns frutos.
É possível utilizar e levar a “bom porto” alguns planos e projectos inscritos na UA.
Tendo uma Comissão Africana ágil, com uma direcção comprometida pelo renascimento africano, influente e com acesso rápido aos governos, construtora de consensos, alguns pontos da agenda da União Africana, sobretudo do ponto de vista económico, podem concretizar-se e servir de alavanca para o fortalecimento dos elos políticos.
As chancelarias ocidentais, Londres, Paris, Washington, Lisboa, por essa ordem tem muitos interesses em África e sabem como gerir o dossier de forma que lhes seja favorável.
Se ao Egipto os EUA sem pestanejar entregam quase dois biliões de dólares por ano já para muito menos em outros países do mesmo continente introduzem fórmulas de linkage político. Egipto tem de ser pago pela paz com Israel, pelos acordos de Camp David.
De maneira corrente e insistente se procura atribuir as fraquezas africanas generalizadas a algo que tem a ver com sua génese ou com a génese de seus governos e da sua organização continental. Um olhar atento deixa ver outras coisas complexas, esclarecedoras sobre tudo o que os governantes não querem que os governados saibam ou tenham o mínimo conhecimento.
A insipiência funcional, a pobreza programática e a repetição de erros do passado concorrem de maneira coordenada para os falhanços da União Africana e dos países que a compõem.
Há pessoas colhendo benefícios contínuos de todos os passos mal dados pelos governos de África. Entidades e organismos atentos ao que se passa em África garantem de maneira frontal e também encoberta que os mandantes de ontem continuem os mandantes de hoje. Toda a fragilidade e ausência de coesão programática e operacional, demonstrados pela UA, são em benefício directo dos parceiros com que os países africanos “cooperam”.
Se tomarmos como exemplo a África Austral, região africana privilegiada por ser detentora de um potencial de solo e subsolo únicos no mundo, poderíamos esperar que após todos estes anos de independência, já estivesse exibindo uma realidade correspondente as suas potencialidades e ao que a sua economia no global produz. RDC, Angola, África do Sul, Moçambique, Namíbia e Botswana, sem excluir o Zimbabwe, Zâmbia e Tanzânia possuem riquezas de subsolo como ouro, cobalto, urânio, carvão, diamantes, platina, gás, petróleo, pedras preciosas em quantidades excepcionais.
Todo este manancial está sendo explorado e comercializado nos mercados mundiais. Só que os benefícios que ficam nos diferentes países e que são efectivamente investidos na melhoria da vida dos cidadãos dos diferentes países deixa muito a desejar. Quem visita Bruxelas fica pasmado como quem não possui diamantes mas só os industrializa e comercializa tenha uma cidade tão eficiente e um nível de vida tão alto para os seus habitantes.
Está claro que os políticos belgas e suas contrapartes de Lisboa, Paris, Londres estão profundamente interessados pelo que se passa no continente africano. Afinal a garantia da manutenção do seu alto nível de vida, do seu status no concerto das nações depende essencialmente da contínua recepção de recursos naturais africanos em condições de preço excepcionais.
Ter a União Africana desdentada, fraccionada deve constituir uma base de actuação das chancelarias ocidentais e não porque estas sejam manipuladoras em si. Quem está no mundo da política e se apresenta como governo tem de assumir as consequências que tal prerrogativa lhe dá. Pelo que a União Africana produz ou julgando pelos resultados que anualmente se reflectem na vida dos africanos só se pode tirar uma conclusão: as sucessivas cimeiras são um desgaste para a economia exangue do continente. Não faz qualquer sentido ter chefes de estado e de governo se reunindoreunindo anualmente, com a pretensão de produzir soluções para melhorar a vida dos africanos quando afinal mais não fazem do que esbanjar o pouco que existe.
A soma de golpes de estado e de violência política ou com inspiração política invalidam qualquer teses de que África possui uma organização continental viável, respeitada e com credibilidade. Cada vez que há um golpe de estado os governos dos países hesitam em condenar ou apoiar tal golpe porque muitas vezes a sua própria génese é um golpe de estado.
Se hoje a liderança congolesa de Brazaville tem assento na União Africana isso não quer dizer que não se esteja lidando com um golpista. Mugabe está no poder em Harare mas na essência ele golpeou, não respeitou a vontade popular expressa nas urnas. Contundo seus pares da África Austral, excepto Zâmbia e Botswana correram em seu apoio. Desde Tripoli até a Cidade do Cabo que presidentes fizeram vista grossa e acabaram embarcando na validação de uma situação polícia caracterizada por violência inconstitucional.
Se mesmo agora a França se apresenta preocupada e liderando esforços ao nível da ONU para que os golpistas do Mali sejam removidos do poder é preciso relacionar isso com uma estratégia de longo prazo que nunca foi descartada pelas potências antes colonizadoras. Tendo em conta a progressão dos fundamentalistas islâmicos, da Alqaeda do Magrebe, do descontrolo das armas antes nas mãos do regime de Kadaafi e sua exportação para o sul da Líbia, decerto que em Washington e Paris levantam-se questões sobre essa porta aberta para o avanço do terrorismo internacional.
Ao nível da ONU ou da União Africana vão levantar- se vozes e encontros serão organizados visando debater o assunto. Da parte da UA é de esperar as mesmas opiniões de sempre e a mesma fraqueza.
Em tempo de mais um aniversário importa que o continente e sua organização continental se ergam e se afirme como a alternativa válida para fazer avançar a causa que a todos faz diferença.
O tempo é de combate cerrado pela dignidade dos africanos. O tempo é de valorização dos nossos recursos e de recusa firme de arranjos neocolonialistas que alguns quadrantes continuam querendo impor.
Só a união consequente de governos e povos pode fazer florir a esperança…■
(Artigo primeramente publicado na edição nº 2356, de 25 de maio de 2012, portanto a cinco anos atrás, cuja abordagem não foge da realidade actual em África)
O AUTARCA – 26.05.2017