Canal de Opinião por Adelino Timóteo
Camarada Ketumile Matsire, não gostei nada do ajuste de contas que foi a morte. Tu, camarada, mediador de vários conflitos no continente africano, que foste quem suportou as negociações de paz em Moçambique entre o Governo e a Renamo, que culminaram, em 1992, com o fim de 16 anos de guerra civil, pouco ou quase nada mereceste da retribuição deste povo, alguma atenção e referência dos antigos beligerantes, naquele ênfase que seria de esperar, aquando da tua morte. Apesar de tudo, creio que sejas a pessoa ideal para servir de mensageiro do povo moçambicano ao Camarada Samora Machel, a quem espero que vás dizer que pouco aprendemos das consequências daquela hecatombe e voltámos a guerrear-nos.
Camarada Matsire, é verdade que encontrarás lã no assento etéreo o Camarada Machel, circunspecto e na expectativa sobre as informações idóneas e fidedignas deste país. Por isso, não hesites em falar-lhe que há um antigo homólogo seu apupado por "Amuhive" (ladrão). Perdão, passa-se que sempre que o antigo Presidente se desloca aos locais pubIícos tratam-no por " Amuhive" . Um dia, uns circunstantes viram-no à entrada do Restaurante Maçaneta e chamaram-lhe "Amuhive", Diz a Samora Machel que enquanto a justiça tarda a punir o "ladrão" agora chamado "Amuhive", aquele que se cria Clarividente e Visionário (é triste para aquele que sonhou ser lembrado como amigo do povo), se veja reduzido a um epíteto algo banal. Aquele que tanto apregoou sobre a auto-estima, Camarada Matsire, há dias viu-se obrigado a voltar-se à porta do mercado da baixa, porque quando os populares o viram chamaram-lhe "Amuhive". Há dias, quando o dito cujo apareceu no telejornal uma criança irrompeu sala adentro, cunhando-o "Amuhive", Um antigo poeta despromovido a ladrão. Um antigo presidente despromovido a "Amuhive".
Como pode-se ser tão vulgar! Camarada Matsire, nos bairros residenciais, "Amuhive" tem uma carga semântica muito forte. Quando alguém é assim tratado, as pessoas deixam os seus afazeres e acercam-se do meliante, para o justiçarem. No caso concreto, o "Amuhive" nacional, por em mais ocasiões se viu aflito, e não fosse a protecção de que goza das forças policiais de protecção de altas individualidades do Estado (perdoe-se, onde está individualidades, leia-se ladrões - é normal no nosso seio os ladrões deslocarem-se escoltados por aparato de segurança estatal) o meliante acabava sendo quase linchado pela multidão enfurecida.
Camarada Matsire, pena que a morte não te deu espaço para cá vires no processo de resolução do caso das dívidas ocultas, porque as circunstancias que a rodeiam em nada difere de um genocídio contra o povo moçambicano empobrecido. Um genocídio, sim, porque o roubo do "Amuhíve" é uma arma de um poderoso que causa o morticínio aos seus compatriotas, num caso em que nem a PGR nem os seus pares, nenhuma instituição democrática tem a independência suficiente para agir, para o prender, porque os seus tentáculos capturaram-nos.
De toda a forma. Camarada Matsire, diz ao Camarada Machel que, tal como ele previu, nasceu um "Amuhive". Nasceram capitalistas negros no país, graças à fome do povo. Nasceram burgueses que acumularam primitivamente o capital, através da defraudação do Estado e da banca estrangeira. Não sei se o Camarada Machel se conformará, mas diz-lhe que o "Amuhive* já não é mais aquele libertador nem herói, porque com a sua acção entregou o país ao colonialismo do FMI e do Banco Mundial. Diz ao Camarada Machel que o "Amuhive" já não lê relatórios, já não é mais aquele moçambicano preocupado em se informar, e disso se pode subsumir que se pouco se interessa em se informar há nele a consciência do tamanho dano, da acção dolosa e ilícita contra o povo. Diz ao Camarada Machel que antigamente o "Amuhive" era acalorada e efusivamente saudado pelo povo, que agora questiona como pode estar aparentemente sereno a falar de moral e da gesta libertadora, quando no fundo o nutre a consciência de que o seu acto de ladroagem levou o país a bater no fundo do poço.
Antigamente o "Amuhive" era reverenciado com um inclinar de cabeça ou uma vénia que acompanhava o curvar do corpo, mas hoje, se alguma reverência lhe fazem, é chamar-Ihe "Amuhive". Lá na Mafalala já ninguém se entusiasma com o filho mais querido do povo, com o Clarividente, pois à hora do pequeno-almoço o vazio nutritivo desperta a memória de quem os levou a uma miséria terrível, de quem os depredou até à última migalha, privou-os do seu mais elementar direito: o pão.
Camarada Matsire, sei como será constrangedor para o Camarada Samora Machel saber que aquele com que ele se juntara na dor para esmagar a opressão é quem hoje oprime o povo.
Tempo houve em que os libertadores tinham a dignidade e honra devidas aos seus esforços abnegados na libertação, mas desceram tão baixo que hoje se tornaram tão vulgares e são vistos apenas como "Amuhives" do povo.
Diz ao Camarada Machel que o povo está a espera que ele regresse, para prender o "Amuhive".(Adelino Timóteo)
CANALMOZ – 29.06.2017