Finalmente, a “Kroll Associates” fez a entrega do relatório da auditoria independente ao empréstimo de mais de dois biliões de dólares norte-americanos concedido às empresas EMATUM, “ProIndicus” e MAM, no processo da chamada “dívida oculta” que, ao mesmo tempo, é ilegal.
Para quem leu com rigor e levou a sério o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, dirigida por Eneas Comiche, publicado no ano passado, o actual relatório da “Kroll” apenas acrescenta a componente técnica da investigação, pois a questão do dolo de prejudicar o Estado e conseguir a maior quantidade de dinheiro possível já estava clara no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, e até os autores da fraude assumiram os seus actos com uma angelical naturalidade, de quem tem garantias de que nada lhe sucederá.
E da componente técnica que o relatório da “Kroll” apresenta, extrai-se basicamente o seguinte: a sobrefacturação exagerada dos bens e serviços, a falta de cooperação dos bancos comerciais nacionais, a recusa expressa por parte do SISE e do Ministério das Finanças em fornecer documentos cruciais aos auditores, alegadamente em nome da “segurança do Estado”.
A “Kroll” diz, no seu relatório, que não foi capaz de explicar um conjunto de fenómenos ou situações apenas porque os que tinham o dever de fornecer esses documentos acharam-se com poderes suficientes para a assim proceder. Dito de outra forma: informação relevante que não consta no relatório é porque houve obstrução por partes interessadas na não divulgação de tal informação, por interesses meramente pessoais e de proteccção de grupos.
Mas, seja como for, se este país fosse sério, o certo é que apenas com o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito era possível desencadear procedimentos criminais contra todos os envolvidos. O relatório concluiu que houve violação grave da legislação aplicável em Moçambique, incluindo até da própria Constituição da República e, mais do que isso, os autores expressaram a ausência de arrependimento e o seu orgulho pelo golpe que deram. Só isso era bastante para que a Procuradoria-Geral da República começasse um processo sério de responsabilização. Mas não.
E o relatório da “Kroll” vai na mesma direcção, mas trazendo números desagregados que expressam a dimensão do escândalo e a forma como o mesmo foi arquitectado.
Por exemplo, nas sobrefacturações, a diferença em relação ao preço real dos bens e serviços adquiridos é superior a 700 milhões de dólares.
Essa é só uma parte do problema, pois há 500 milhões de meticais que ninguém sabe explicar aonde foram parar. Se assumirmos que o total da dívida é de 2 biliões, então é nítido que mais de 1,2 bilião de dólares do total do dinheiro foi parar aos bolsos das pessoas que estiveram envolvidas nisto. Por exemplo, como é possível que se tenha comprado um helicóptero de 700 mil dólares por sete milhões de dólares? E há, no relatório, exemplos similares em grande quantidade. Bens que deviam custar quatro milhões de dólares foram sobrefacturados em 40 milhões de dólares. Temos de ter em mente que isso é apenas o que foi contabilizado. Há bens sobre os quais não foi possível fazer a verificação, ou porque não existem, ou porque ninguém sabe onde estão.
De qualquer modo, a pergunta que fizemos aquando da publicação do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito mantêm-se. Há um crime e há indiciados confessos. Por que razão a Procuradoria-Geral da República, até hoje, nunca agiu contra as entidades envolvidas neste crime contra o país e contra os moçambicanos?
Por que razão o Conselho Constitucional, até hoje, nunca se pronunciou sobre a inscrição de dívidas ilegais e criminosas na Conta Geral do Estado, provado que está que esse dinheiro nunca beneficiou o país?
Mas há uma questão que, quanto a nós, é fundamental, quando se lê o relatório da “Kroll”. Essa questão é sobre o papel da Procuradoria-Geral da República. É difícil perceber o papel da Procuradoria-Geral da República nesta auditoria. Segundo os termos de referência, a Procuradoria-Geral da República iria dirigir a investigação, um vez que é detentora do arcaboiço da legalidade e da acção penal, e a “Kroll” iria trabalhar na questão técnica.
Mas, segundo o relatório da “Kroll”, há informação relevante que não foi facultada aos auditores, quer pelo Ministério das Finanças, quer pelos bancos comerciais envolvidos assim como pelo Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE). Ora, como é possível, numa investigação tão séria quanto esta, que haja indivíduos que se recusem a colaborar com a Justiça e que nada lhes aconteça? Sendo esses documentos de capital importância para o esclarecimento deste escândalo, como é que a Procuradoria-Geral da República permite que haja gente a sobrepor-se aos supremos interesses do Estado.
Só para se ter uma ideia do que estamos aqui a dizer, atente-se nos seguintes trechos do relatório: “Os accionistas fizeram transferências para as Empresas de Moçambique num total de 70 milhões USD, para pagamento de juros e despesas operacionais.
A origem dos fundos dos accionistas não foi ainda completamente determinada já que é necessária autorização judicial para aceder às contas bancárias dos accionistas”. Como é que a Procuradoria-Geral da República não criou condições para que houvesse mandado judicial para essa diligência?
Como é que isso é possível?
A seguir, mais um exemplo: “A Kroll solicitou repetidamente ao Indivíduo A [António Carlos do Rosário] que fornecesse as informações em falta que permitiriam uma compreensão mais completa dos gastos: a resposta recebida foi que as informações solicitadas eram ‘confidenciais’ e não estavam disponíveis”.
A questão mantém-se.
Como é que isso é possível? António Carlos do Rosário está acima da lei? Quem lhe conferiu tamanhos poderes, acima do próprio Estado, que ele tanto afirma defender? E a Procuradoria-Geral da República ficou todo este tempo a assistir a essa subalternização do Estado?
Há mais: “O Ministério das Finanças não conseguiu confirmar à Kroll qualquer detalhe sobre equipamento de segurança marítima que foi efectivamente incluído na alocação dos 500 milhões USD, nem se a transferência de responsabilidade foi realmente concluída.
(…) O documento detalha pagamentos no total de 31,4 milhões USD a doze entidades, incluindo 17,3 milhões USD ao consórcio BNI e Ernst & Young (o “Consórcio”)”.
A “Kroll” não recebeu nenhuma evidência para mostrar que os valores foram distribuídos pelo consórcio BNI e Ernst & Young (o “Consórcio”) às doze partes, conforme indicado no documento.
A pergunta mantém-se: qual era o papel da Procuradoria-Geral da República nesta investigação? Como é que, estando a Procuradoria-Geral da República dentro desta investigação e investida de todos os poderes, há pessoas que se recusaram a facultar informações.
Se isto não cabe num processo de obstrução à Justiça, então a Procuradoria-Geral da República deve vir a público explicar o que andava a fazer durante todo este tempo, porque cabia à Procuradoria-Geral da República usar a força do Estado para obrigar esta gente toda a colaborar com a Justiça. A “Kroll” não pode emitir mandados de justiça. Esse papel é dos nossos órgãos. Se esta gente toda ignorou os auditores, que, supostamente, eram chefiados pela Procuradoria-Geral da República, então esta mesma gente não vê com seriedade a Procuradoria-Geral da República.
Há mais: todos os implicados e arrolados neste relatório com a designação alfabética têm grande potencial de, a partir dos seus postos e das influências de que gozam na máquina do Estado, continuarem a obstruir o trabalho subsequente da Procuradoria-Geral da República. A questão é: por que é que, até agora, não há mandados de prisão preventiva, no mínimo?
Aliás, essa medida de coacção já devia ter sido tomada aquando da publicação do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito.
Ou estará a Procuradoria-Geral da República a sugerir que estes senhores estão acima da própria Procuradoria-Geral da República? Das duas uma, ou a Procuradoria-Geral da República não está a levar o seu trabalho com seriedade, ou esta gente recebeu garantias reais da própria Procuradoria-Geral da República de que nada lhes vai acontecer. Porque, nestas circunstâncias, ainda está por nascer o cientista político que vai dar nome ao tipo de Estado que é o nosso. De Direito, definitivamente não é. (Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 30.06.2017