EDITORIAL
Para quem acompanhou com atenção a leitura da sentença do “Caso Meca”, em que é réu Abdurremane Lino de Almeida, ex-ministro da Justiça e Assuntos Constitucionais, e deixando de lado o debate sobre a moldura penal, que é um outro debate, que aqui não se convoca, terá obviamente ficado impressionado com o lado didáctico da sentença.
Como se sabe, o ex-ministro Abdurremane Lino de Almeida foi primeiramente acusado de uso indevido de fundos do Estado, ao efectuar pagamentos de despesas com fundos do erário público, a favor de indivíduos que são estranhos ao Estado, em concurso com o abuso de funções.
Na sua sentença, o juiz João Guilherme apelidou de “grave” a sugestão de desculpabilização apresentada pelo ex-ministro, segundo a qual a viagem tinha tido a autorização do Presidente da República e da ministra na Presidência para Assuntos da Casa Civil. Ninguém duvida, é cristalino, que o ex-ministro tenha tido, de facto, a autorização de Filipe Nyusi. Ninguém duvida de que Margarida Talapa, a chefe da bancada parlamentar da Frelimo na Assembleia da República tenha, de facto, indicado os tais dirigentes religiosos que o tribunal considerou como “pessoas estranhas ao Estado”. Ninguém duvida dos condicionalismos que tornaram a viagem “normal” e consentânea com as práticas de gestão que vigoram na nossa Administração. O ministro pode ter a sua razão. Mas, do lado da lei, infelizmente não está.
E é esse o alcance supremo da sentença lida pelo juiz João Guilherme.
Na verdade, o tribunal não coloca em causa as declarações do ministro. Ataca é um degradante mau hábito que se institucionalizou na nossa Administração, chamado “ordens superiores”. Tais “ordens superiores” substituíram hoje qualquer dispositivo legal, o que concorreu para a pessoalização do Estado. Por exemplo: como é que é Margarida Talapa que autoriza quem deve e não deve viajar com o ministro? Onde cabe
Margarida Talapa, como chefe da bancada da Frelimo, na equação de uma viagem ministerial?
Ao condenar o ex-ministro, a mensagem didáctica que a decisão judicial traz é que não há nenhuma “ordem superior” que se sobreponha à lei, venha ela de onde e de quem vier. Não existe, no nosso ordenamento jurídico, um instituto de nome “ordens superiores”, que substituam o cumprimento do que está estabelecido na lei. A mensagem é muito clara e consentânea com a nossa Constituição: a actuação dos agentes do Estado funda-se no primado da lei, e ponto final.
É claro que se pode envolver esta decisão judicial numa pacotilha política de exibição de serviço “para inglês ver”, como se costuma dizer, a aproveitar o mau momento que a imagem do Governo atravessa, muito por culpa da inércia da Justiça em perseguir os cartéis instalados do crime organizado contra o Estado. É verdade. Pode-se, com alguma razão, aludir a que seja um serviço conveniente, a aproveitar a presença do Fundo Monetário Internacional, numa altura em que se exige acção concreta contra a corrupção. Tal raciocínio tem o seu valor e não é de ignorar.
Mas é preciso que esse óbvio, bem fácil de tramitar, não ofusque um juiz que tem sido exemplo pela integridade e com sentenças que emitem sinais encorajadores de que, afinal, a magistratura não é só feita dos tais criminosos a que Benvinda Levy, a conselheira jurídica da Presidência da República, fez referência num passado ainda muito fresco.
Foi o mesmo juiz João Guilherme que se recusou a fazer parte de uma caravana de esfaqueamento da Justiça, quando o regime instrumentalizou o Ministério Público para processar e condenar o economista Carlos Nuno Castel-Branco por ter criticado a governação de Armando Guebuza. No mesmo pacote, queriam que fossem responsabilizados os jornais “Canal de Moçambique” e “Mediafax”, pelo delito de publicação de opinião. Valeu o alto sentido de Estado e de legalidade do juiz João Guilherme, para que o tribunal não fosse junto para a sarjeta. Em sentença, defendeu didacticamente a liberdade de expressão como pilar do Estado do Direito democrático e do escrutínio dos poderes pelos cidadãos, ao concluir que tudo quanto Carlos Nuno Castel-Branco disse, fê-lo no escopo do direito à opinião e à indignação.
E vem mesmo a calhar esta segunda sentença, porque o “Caso Castel-Branco” não passou, nada mais, nada menos, do que de um expediente de “ordens superiores” que a inditosa Procuradoria-Geral da República estava a tramitar.
São essas mesmas ordens superiores ilegais que hoje fizeram com que o juiz João Guilherme condenasse o ex-ministro da Justiça.
Não deixa de ser sintomático que, num país com um Estado que aspira ser de Direito democrático, a aplicabilidade da lei seja refém de interesses superiores, de resto um cancro que temos criado e tem contribuído para a revogação dos pressupostos do Estado de Direito.
Hoje, estamos como estamos e com a credibilidade, como Estado, na rua da amargura, porque, por “ordens superiores”, a Procuradoria-Geral da República eximiu-se do seu papel e vai fazendo números ridículos com os gatunos à mão de semear. É muito provável que a solicitação de fiscalização sucessiva da constitucionalidade do acto que legalizou as dívidas também seja ignorado pelo Conselho Constitucional por “ordens superiores”, e nos saia da rifa um Conselho Constitucional a debater os méritos burocráticos do pedido. Gostaríamos de estar enganados, mas quem viver, verá.
De todas as formas, o que pretendemos aqui anotar é o notável percurso do juiz João Guilherme.
Se ontem criticámos uma magistratura judicial podre, a mesma que trata de filmes em processos judiciais, a mesma que falsifica sentenças e intimida oficiais de Justiça que a denunciam, é de todo justo que se anote, aqui e agora, a folha de serviço de Estado que tem sido assinada pelo juiz João Guilherme. Uma honrosa excepção, a todos os níveis na magistratura judicial. Pode-se ser julgado por este juiz e ir dormir à vontade, sem receios de que, durante a noite, o mesmo irá falsificar a sentença ou irá, num jantar regado de acepipes, concertar como prejudicar a outra parte. E também se poderá ficar à vontade de que, por “ordens superiores”, a Justiça não irá debitar injustiça aos que têm o azar de ter nascido em berço errado.
Se criticamos a podridão, é porque nos têm faltado exemplos do contrário. E ei-lo aqui, uma excepção.
É possível desviarmos a rota que vai de Estado falido para Estado falhado. E há gente com qualidade neste país. O nosso erro é que permitimos que os bandalhos coordenem a orquestra.
O nosso maior receio é o de que o Dr. João Guilherme acabe em Muecate ou em Malingapasi ou numa outra localidade qualquer, a julgar roubos de cabritos ou de codornizes, por representar uma séria ameaça à banda podre.
(Canalmoz / Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 24.07.2017