Há 100 anos, as tropas alemãs atravessaram o rio Rovuma, no norte de Moçambique, e invadiram território português. A batalha de Negomano foi trágica para as tropas nacionais, mal preparadas, e marcou o início de uma incursão de vários meses que lançou o pânico um pouco por todo o território, de Quelimane a Lourenço Marques
Há uma fotografia antiga de um homem sentado numa cadeira tosca algures no coração de África ao final da tarde. Tem um bigode escuro, o chapéu pousado no joelho esquerdo e olha em frente, como se olhasse para lugar nenhum. Nem sempre era assim. Na maior parte dos dias, costumava sentar-se naquele mesmo banco, mas estava atarefado a ler relatórios e outros documentos e com pouco tempo para poses. A fotografia é especial por eternizar esse instante diferente e ao mesmo tempo igual a todos os outros — e talvez por isso tenha sido enviada para Lisboa e publicada em jornais e revistas nas semanas seguintes. Ali estava Teixeira Pinto, o herói da Guiné, a descansar junto a uma palhota em Negomano, no norte de Moçambique, a última fronteira do império, como se o mundo nunca mais fosse mudar. Só que mudou. E bastante depressa.
No dia seguinte ao pacato momento captado pela máquina fotográfica de um alferes chamado Costa Pereira, a 25 de novembro de 1917, as tropas portuguesas sofreram um dos mais violentos ataques dos quatro anos de combates no teatro de operações africano da I Guerra Mundial. Uma força vinda da então colónia alemã atravessou o rio Rovuma, invadiu o território de Portugal e lançou-se numa marcha imparável por várias regiões do território — espalhando o medo de Quelimane à Beira e até na então Lourenço Marques. Foi à hora do almoço, ainda a comida fumegava nas panelas, e os homens, quase mil, andavam por ali a fazer tempo. Quando tudo acabou, a base que concentrava o grosso das tropas portuguesas em Moçambique, sem abrigos e com trincheiras improvisadas, estava reduzida a nada.
O balanço oficial confirma a morte de cinco oficiais, 14 soldados europeus e 208 indígenas. Refere também a existência de 70 feridos graves e mais de 550 prisioneiros portugueses, entre os quais 31 oficiais. Mas nada diz sobre os sargentos Carvalhas e Pratas, que desapareceram mato adentro. Pratas caminhou durante quilómetros e, segundo o cabo indígena que o encontrou, enlouqueceu. Tinha as unhas feridas de cavar o chão e os lábios roxos encostados à areia. O sargento Carvalhas nunca mais apareceu. Um século depois da batalha, há ainda dois grandes mistérios, talvez os maiores de todos, por resolver: um envolve uma bala, que terá sido responsável pela morte de Teixeira Pinto; o outro é um som, o do toque da corneta que anunciou a rendição das tropas portuguesas.
Negomano é uma página trágica do esforço militar de Portugal em Moçambique, mas não é a única. Aliás, os mais de quatro anos de combates ao longo do Rovuma — os confrontos entre portugueses e alemães começaram logo em 1914, dois anos antes da declaração oficial de guerra entre os dois países, em março de 1916 — foram tudo menos brilhantes. A preocupação inicial do novo poder republicano, confrontado com o eclodir de um conflito em larga escala na Europa, foi a de garantir a integridade dos territórios ultramarinos: as forças militares da Alemanha representavam um perigo real em Angola, mas principalmente em Moçambique. No entanto, os objetivos mudaram rapidamente, ao ritmo dos governos que se sucediam em Lisboa. A importância da defesa deu lugar à necessidade imperiosa de um ataque. Passadas as escaramuças nos postos à beira do grande rio que servia de fronteira, pequenos confrontos que marcaram os dois primeiros anos, os portugueses começaram a preparar a invasão da colónia alemã no norte.
Quando se lançaram à conquista de Nevala, uma fortificação em território alemão, no final de 1916, os portugueses tinham a seu favor a conquista de Quionga, meses antes. Na verdade, o que os jornais em Lisboa descreveram como uma ofensiva impiedosa — “Para as afrontas que da imperial nação de bandidos recebemos soou finalmente a hora do desagravo. Há uma justiça imanente que se manifesta, tardiamente embora, perante a qual têm de curvar-se os altivos exércitos do Kaiser e são inúteis as suas tremendas máquinas de guerra”, escrevia “A Capital”, na primeira página, a 11 de abril — não passou de uma marcha penosa em direção a uma deserta Quionga, pequeno território ocupado na foz do Rovuma. Não houve um tiro, um vislumbre do inimigo. “Um pequeno cãozito fora a única resistência”, recordou, em livro de memórias publicado anos mais tarde, o capitão Júlio Rodrigues da Silva.
Incapacidade. As tropas portuguesas enviadas para a frente africana chegavam mal preparadas, sem disciplina, e eram colocadas em bases sem quaisquer condições. Muitos soldados entravam em combate sem terem disparado um único tiro
Imagem cedida pela Hemeroteca Municipal de Lisboa
Em Nevala sucedeu algo parecido, mas só depois de uma primeira tentativa trágica de atravessar o Rovuma, que acabou com os portugueses a servirem de alvo para o tiro dos alemães emboscados na margem norte. Pressionados por Lisboa, onde os ministros se mostravam cada vez mais impacientes, os comandos em Moçambique ensaiam nova tentativa e, sem oposição, entram em território alemão e daí rumam ao abandonado forte de Nevala. A conquista, mais uma vez sem oposição, escondia todas as fragilidades de uma força mal preparada, com deficiente conhecimento do terreno e incapaz de garantir uma linha de abastecimento eficaz. O resultado foi trágico. Nos quatro anos de combates em Moçambique, morreram 2007 soldados portugueses, três vezes mais soldados africanos e um número de carregadores (recrutados à força para as colunas) que é impossível calcular. Em França, para onde seguiram mais de 55 mil soldados e oficiais portugueses, morreram 1935 militares.
O sonho de Nevala durou uma semana, o tempo exato que os alemães demoraram a regressar. Chegaram no dia 22 de outubro de 1916. E com um reforço de peso: um dos dez enormes canhões (que permitiam atingir alvos a quase 13 quilómetros) retirados do cruzador “Konisberg”, destruído a 11 de julho de 1915 pelos navios britânicos “Mersey” e “Severn”, no delta do rio Rufiji, a cerca de 200 quilómetros de Dar-es-Salam. Mais de cem carregadores puxaram as peças de artilharia com cordas, atravessando montes e vales, e uma delas, a do destacamento Rothe (batizado com o nome do capitão, um antigo chefe dos correios), estava agora com Nevala à vista. Eram 524 contra 1500 portugueses entrincheirados num forte. “É suficiente para tomar a ofensiva”, concluíram os alemães. O cerco durou mais de um mês, até à noite de 28 de novembro de 1916. A sede, a fome e o medo vencem sempre, e, a coberta da escuridão, os portugueses, mais de mil, fogem em fila indiana. Também isso dura pouco, e a retirada transforma-se numa debandada que dá lugar a uma tragédia. Até hoje, ninguém sabe quantos homens desapareceram. Os que chegaram estavam acabados.
De certo modo, Nevala é um ponto de viragem. O ímpeto invasor de Portugal desapareceu e levou com ele a capacidade de uma defesa eficaz. As tropas continuavam a seguir de Lisboa. Milhares de homens embarcados em navios sem condições a rumar a uma terra distante e que nunca esteve preparada para os receber. Escasseava tudo: comida, medicamentos, disciplina. O médico Américo Pires de Lima (“Na Costa d’África — Memórias de Um Médico Expedicionário a Moçambique”) lembra o caso do batalhão de Infantaria 31, que chegou a Mocimboa da Praia no final de maio de 1917. “A morte era nossa companheira de todos os instantes: sentava-se connosco à mesa e, de noite, não nos abandonava a cabeceira. Tive assim o triste privilégio de assistir ao espetáculo terrífico duma pestilência medieval”, escreveu o médico português, que almoçava todos os dias com o diretor da Cruz Vermelha, Aurélio Barreto, numa barraca que ficava a meio caminho entre a casa mortuária e o cemitério. Três meses depois, sem nunca terem saído da base, os homens aptos do 31 eram pouco mais de uma centena. Tinham chegado 1034. Todos os outros estavam doentes ou mortos.
Pouco mudou nos meses seguintes e, em novembro de 1917, o estado de espírito das tropas era, no mínimo, moribundo. Além disso, os ingleses pareciam ter perdido a paciência com os portugueses. O comando britânico pouco ou nada revelava dos seus planos e, quando o fazia, era apenas para desencorajar qualquer veleidade ofensiva — insistindo para que os portugueses permanecessem junto ao Rovuma, defendendo as posições, enquanto eles próprios se encarregavam de empurrar os alemães para sul. O plano parecia estar a funcionar. O general Paul Emil von Lettow-Vorbeck, o brilhante estratego que comandou as tropas alemãs em África e só se rendeu depois de assinado o Armistício na Europa (estava a andar de bicicleta quando recebeu um telegrama), sentia o garrote a apertar. A 21 de novembro, sem alimentos nem medicamentos, decide que é impossível permanecer na colónia alemã e opta por lançar-se em direção ao território português. Reduziu o efetivo, disposto a aguentar o mais possível em movimento, com ataques cirúrgicos que lhe permitissem capturar comida e armamento.
Nas suas memórias, Von Lettow-Vorbeck recorda que, na manhã de 25 de novembro, ainda hesitou uns momentos antes de ordenar o ataque à base de Negomano. Podia sempre evitar as tropas portuguesas e passar ao lado do combate. Decidiu ao contrário, e os portugueses, muitos dos quais nunca tinham disparado um único tiro, perceberam isso à hora de almoço. Os alemães, europeus e askaris, camuflados com plantas secas, estavam por todo o lado, escondidos entre os capins e as árvores, metralhando sem descanso os homens indefesos no fundo de um vale. Ernesto Moreira dos Santos era um deles, e o seu livro de memórias, “Cobiça de Moçambique, Combate de Negomano”, publicado em 1961, é um dos relatos mais impressionantes do primeiro grande combate da invasão alemã.
É lá que se lê que Teixeira Pinto corria de um lado para o outro, à procura do melhor local para ver os alemães. Sobe a uma pedra, e um sargento, Príncipe, grita para que o comandante procure abrigo. “O fogo aqui é muito intenso”, diz o sargento. “Se é muito intenso, é dar fogo por descargas. Secções... fog...” Moreira dos Santos garante que Teixeira Pinto não chegou a acabar a frase, atingido com dois tiros. Príncipe salta para cima do oficial, ferido num braço, e arrasta-o para um local seguro, antes de regressar para a linha da frente. No fim do combate, Teixeira Pinto foi encontrado no mesmo local, com um ferimento de bala no lado esquerdo da cabeça. Um outro alferes, Manuel Simões Alberto, defende que o oficial se suicidou. “Já ferido, embora levemente, e trazido para junto do posto de socorros, até onde foi amparado pelo sargento Príncipe, que ele dias antes quis punir, o major Teixeira Pinto justiçou-se por suas mãos. Negue-se. Podemos admitir que se pretenda negar. Mas podemos provar que a verdade é esta”, escreveu Simões Alberto, anos depois, nas suas memórias, “Condenados, a Grande Guerra Vivida às Portas do Degredo”, de 1933.
É na dúvida sobre a morte de Teixeira Pinto que reside o segundo grande mistério do combate de Negomano. A troca de tiros dura mais de duas horas, com os alemães a revelarem uma eficácia com que os portugueses não podiam sequer sonhar. Por entre os muitos que abandonam as posições e fogem como podem, outros saltam para a frente das balas. Cardoso Mirão, que escreveu um dos mais ricos livros sobre as campanhas de Moçambique (“Kinani? Quem Vive?”, publicado apenas em 2001), descreve o heroísmo do alferes Levindo Vaz, que, ao ver o inimigo a rastejar na sua direção, começa a correr para os alemães de pistola na mão, enquanto ordena que se armem as baionetas. Foi derrubado por uma rajada de metralhadora e levado para o posto da Cruz Vermelha, onde alguém lhe deu morfina. “Adormeceu sorrindo, e assim morreu, sonhando”, escreve Mirão. Não faltam nomes nem histórias. O alferes Lucas foi morto com um tiro na cabeça. Um outro alferes, Perdião, quis matar-se, mas Moreira dos Santos conseguiu impedi-lo. O tenente Ponces de Carvalho morreu junto à metralhadora, lamentando-se que lhe tinham roubado a carteira. Não há comando, não há tática. Apenas instinto de sobrevivência, uma guerra de cada um por si. E então chega o som da corneta portuguesa. Cessar fogo. Nunca se soube quem deu a ordem — o comandante, major Teixeira Pinto, já estava morto.
Estavam assim quando os askaris, as tropas indígenas alemãs, invadem a base, aos gritos e empunhando baionetas, à procura do saque. Os portugueses fogem. Os que podem. Os outros, Mirão descreve-os assim: “E enquanto o doutor Nery da Costa cuidava, carinhosamente, à sombra de uma árvore, de um oficial nosso levemente ferido com um raspão na cabeça, a alguns metros de distância, o sargento Rocha, da 27ª, estendido por terra, gritava enrouquecido: ‘Socorro! Acudam-me! Não me deixem morrer assim!’ — a jorrar sangue por todos os poros, o corpo todo feito num crivo, oito vezes atravessado por outras tantas balas, dispersas ao acaso, pelo peito, pelos braços, pelas pernas, e estas dolorosamente apertadas sobre o solo, estiraçado como um sapo, com um tiro entre os testículos.” O relatório oficial é inverosímil face aos relatos e, ao certo, é impossível saber quantos homens morreram naquela dia. Mais fácil é contabilizar o material apreendido pelos alemães. Nas contas deles, foram mais de 250 mil cartuchos e 800 espingardas. Depois havia ainda as centenas de prisioneiros. Muitos foram libertados nos dias seguintes, depois de prometerem nunca mais pegar em armas. Muitos outros ficaram para trás.
Os alemães prosseguiram para sul. O equipamento capturado em Negomano deu nova força aos homens de Von Lettow-Vorbeck, que dividiu as suas forças em quatro colunas, assegurando contudo que mantinha sempre as comunicações entre todas elas. Na prática, eram quatro frentes de fogo, quatro focos de instabilidade em território português. As notícias corriam depressa, e o medo que elas provocavam também. De todas as posições portugueses chegavam informações e pedidos de ajuda. A 4 de setembro começa na serra Mecula um dos poucos combates que os portugueses não chegaram a perder. Resistiram quatro dias debaixo de fogo, em desvantagem numérica, e só pararam de disparar quando acabaram as munições.
A história guardou desses dias o comando heroico de Francisco Pedro Curado, a quem passaram a chamar o “Condestável do Rovuma”, e é dele, em artigo publicado após a guerra, a homenagem a um outro homem. “Quando a infantaria indígena do seu sector foi compelida a abandonar as suas posições de resistência, foi ainda Lacerda, o seu comandante, o último a retirar, mas com as suas metralhadoras e a fazer fogo, e, no assalto final, foi ainda agarrado a elas, que nem um só momento deixaram de cantar a canção da morte, que caiu para sempre.” Viriato Sertório da Rocha Portugal Correia de Lacerda, o chefe vagabundo dos sipaios do Niassa, nascido em São Julião da Barra, caiu por terra a 8 de dezembro na serra Mecula. Duas semanas antes, em Negomano, já com as armas caladas, alguém tinha pegado num canivete e escrito em nove árvores os nomes de Teixeira Pinto, Pinto Tavares, Ponces de Carvalho, Lucas, Levindo Vaz, Francisco António, José Aniceto, Manuel Isidro e Ferreira Pinto — enterrados ali ao lado. O local era outro, o dia também. Só o destino foi o mesmo.