O APOCALIPSE MOÇAMBICANO
- MOÇAMBIQUE FORTE PARA A GUERRA?
O medo já não consegue silenciar as populações, que se manifestam abertamente contra a agressividade do regime moscovita que as acorrenta. Todos tentam a fuga do país, abandonando os haveres. A alegria peculiar das populações deu lugar a vulcões de ódio em vias de erupção, enquanto o espírito de revolta penetra nas fileiras do Partido em todos os sectores, sem disfarces.
As forças populares abusam do poder, usam as fardas e as armas como escudo para violentarem mulheres, para praticarem assaltos criminosos, para distribuírem o pânico pelas populações, sabendo que as suas acções são facilitadas pela anarquia que assola os comandos, e pelos pequenos fulcros de revolta que, aos poucos, se convertem em rotina.
Samora Machel mostra-se apreensivo e tenta dominar a situação, sentindo que lhe foge o poder. Mas a sua preocupação volta-se contra os militares que tentam fugir ao seu dirigismo totalitário e não contra a corrupção.
Reúne com as Forças Populares em Boane e cria severas leis militares, proíbe a circulação na via pública, nos estabelecimentos civis, nos cinemas e cafés, de militantes uniformizados. Decreta penas pesadas de prisão a quantos forem encontrados armados sem missão justificativa. Reprime com raiva o que sabe que já não pode dominar.
A revolta, porém, não tocara apenas os militares, e as represálias do Presidente da República são ineficazes para combater a evolução de todo um movimento contra o regime, urdido nas mais elevadas esferas do Partido. E enquanto o povo, desconhecedor da realidade, recebe com alívio as medidas repressivas de Samora Machel, um batalhão das Forças Populares, estacionado na Machava, revolta-se contra a ditadura do Presidente da República e tenta ocupar, pela força, os pontos nevrálgicos da capital moçambicana.
A insurreição foi esmagada sanguinariamente mas um facto estava à vista dos observadores: As Forças Populares haviam encontrado a brecha por onde manifestaram a insuportabilidade ao regime. O povo, porém, mais uma vez pagou para aprender.
A intentona militar foi dominada mercê de uma denúncia, mas a desordem e o caos apoderavam-se do poder do regime socialista moçambicano, enquanto o líder se excedia com o entusiasmo da vitória fácil.
O grupo intelectual-marxista do Partido não partilha do mesmo estado de ânimo. Moscovo tornara bem claro que era necessário eliminar a oposição, seleccionando os membros do grupo dirigente com o afastamento dos menos receptivos às teorias comunistas. E o momento era oportuno, pois acirravam-se as divisões.
A ideia foi levada a Samora Machel disfarçada no comportamento imoral dos homens a sanear, e os antigos heróis, fanatizados em discursos, e apontados como exemplo de militância ao povo, foram indicados como imorais em comunicados oficiais, publicados simultaneamente em todos os órgãos de Informação do país.
As soluções de emergência, forjadas pelo cérebro marxista da Frelimo, continuavam deste modo a ser bem aceites por Samora Machel. Elas haviam sido iniciadas meses antes com a destituição de um dos mais importantes elementos do Partido, o governador Pedro Juma, responsável pelo governo da província do Maputo, onde se integra a capital. Bastava prosseguir a mesma política, e a cada acção de saneamento foi dada a mesma justificação: purificação de fileiras.
Mas a purificação mostrava-se ilimitada, pois o espírito de revolta contra o regime afectava dirigentes e dirigidos, havendo cada vez menor número de sobreviventes nos Comités Central e Executivo da Frente de Libertação de Moçambique, facto que nunca se havia verificado nos tempos de combate.
Mateus Malichocho foi acusado de desenvolver intrigas e actividades divisionistas no seio da Frelimo para satisfazer as suas ambições, de abusar do poder para usufruto pessoal, de fomentar a subversão e a indisciplina no seio das Forças Populares, tentando promover a sua desagregação. Foi expulso do Comité Central do Partido, a mais alta instância governativa da nação.
Joaquim Maquival foi acusado da demonstrar negligência no cumprimento das missões de que foi incumbido, de utilizar fundos da Frelimo para satisfazer os seus vícios pessoais, nomeadamente a corrupção sexual. Foi demitido de Secretário Provincial, deixando automaticamente de fazer parte do Comité Central.
Leonard Cumbe foi acusado de se mostrar altamente ambicioso, indisciplinado, intriguista e boateiro, de ter utilizado fundos da Frelimo para satisfazer vícios pessoais, abusando do poder com idêntico fim, de ser corrupto sexual e moral, opondo-se frontalmente, através do seu comportamento de corrupção, à emancipação da mulher, manifestando por esta total desrespeito. Foi demitido de director-adjunto dos Serviços de Saúde da Frelimo.
Gideon Ndobe, ex-ministro de Educação e Cultura do Governo Provisório, foi acusado de indisciplina e falta de respeito pelas estruturas, de prática sistemática de embriagues, de imoralidade e desrespeito pela mulher. Foi demitido de Secretário Nacional do Departamento de Educação e Cultura, deixando automaticamente de fazer parte do Comité Executivo da Frelimo.
Estes saneamentos foram publicados na Imprensa em Abril de 1976, mas não chegariam dezenas de volumes para transcrever quantos se seguiram a estas primeiras depurações. O terror exercido por Samora Machel e ordenado pelo seu grupo de conselheiros bolchevistas baseava-se numa auréola de herói político que já não encontrava terreno de eleição nas massas moçambicanas. E como não era de crer que se tratasse de uma concepção original da política comunista os observadores divisavam, oculta em cada ordem, o longo braço do Kremlin.
Os jornais e a Rádio aprovaram, era certo, todas estas atitudes. Adulavam o Presidente. Aplaudiam-no num servilismo com que os leitores e os ouvintes não concordavam. Todos compreendiam, com a clareza que precede as grandes convulsões políticas, que Moçambique se abandonava a uma vontade estrangeira, afastando-se dos seus caminhos históricos.
Nenhum jornal pensava adiantado ou por si, nenhum profissional de Imprensa tinha ideias próprias, individuais. Aplaudiam quanto partisse do Presidente da República, sentindo uma fraca consolação nas palavras de incentivo do D.I.P., dirigido por Oscar Monteiro, um dos intelectuais marxistas, que isso mesmo desejava: Jornalistas autómatos ao serviço de jornais servis. Mas a República Popular de Moçambique tornava-se assim, e cada vez mais, menos popular.
O Comité Central do Partido, reduzido a menos de metade do número de elementos exigido pêlos Estatutos, aprovados em Congresso, e impossibilitado de os engajar entre as massas afectadas por uma agressiva sub-cultura, ou entre os militantes descontentes, aceitava, mais aparatosamente, a tutela da União Soviética. As idas e vindas de diplomatas enviados pêlos dois países, desmascaravam a dependência, cada vez mais humilhante e aflitiva, de Moçambique a Moscovo. Ao povo restava-lhe criticar, e a Samora Machel sentir-se de dia para dia mais isolado.
Não se julgara ele completamente apoiado pela população moçambicana na fase da Independência?
A sujeição a uma potência estrangeira, seja qual for a sua política, é sempre sujeição, e o povo moçambicano queria aliviar-se, por qualquer preço, do fardo de Portugal. Isso era, em parte, um apoio à Frelimo, e, por consequência, a Samora Machel. Mas a que Frelimo?
O povo sabia apenas que a Frente de Libertação de Moçambique era uma organização que lutava pela independência nacional, que lutava, portanto, pelo ideal colectivo das massas. As suas recentes inclinações políticas, as suas progressivas provas de sujeição a Moscovo, só eram do conhecimento de poucos observadores, e estes haviam sido silenciados durante o Governo de Transição. As massas populares só delas se aperceberam após a Independência, com o início das perseguições ideológicas e religiosas, com as nacionalizações, com os proteccionismos, que o espírito ideológico actual do Partido não se adaptava às necessidades da nação nem aos desejos do povo.
A fome, a miséria, a incapacidade de governar dos dirigentes foram o primeiro toque a rebate. As prisões arbitrárias, a corrupção dos mandantes, o seu luxo, as directivas educacionais, os trabalhos forçados nas machambas colectivas, a implantação de aldeias comunais, viraram o povo contra a Frelimo.
Se a História da Construção de Moçambique, iniciada após a Independência em 25 de Junho de 1975, não tivesse sido acompanhada de tantas tragédias individuais, o Partido conquistaria o povo, pelo menos a grande parte dele que não conheceu a guerra, que não foi vítima das traiçoeiras minas. Nas zonas nortenhas o apoio retardaria, por grande parte da população ter assistido a massacres da Frelimo, ou ter entre os seus familiares alguém desmembrado pelas traiçoeiras minas, que, ao contrário do que sempre rezaram as propagandas do Partido, se viraram mais contra o povo do que contra o exército colonialista português. O apoio retardaria mas seria conquistado tarde ou cedo.
Com plena consciência de que seria necessário arranjar meios para atrair a simpatia das massas, Samora Machel começou a justificar todos os fracassos do seu Governo nos vestígios do colonialismo, na existência de uma burguesia nacional, nas atitudes dos Governos brancos da África Austral, tentando atrair o ódio do povo — que sentia virar-se contra o seu Governo — aos poucos portugueses ainda residentes em Moçambique, à Rodésia e à África do Sul, ao tempo que ia louvando as atitudes dos países progressistas, companheiros da mesma luta e irmãos de armas.
Samora Machel entusiasma-se. Parece-lhe que as suas ideias são animadas de uma força absolutamente autónoma, que basta-lhe querer para fazer. Afoito pêlos conselhos de Moscovo, começa a despejar o seu ódio aos regimes de Salisbúria e de Pretória em todos os discursos que pronuncia, um ódio que não é evidenciado pêlos outros Chefes de Estado africanos, nomeadamente pêlos que sustém o poder na África Austral.
Samora Machel insulta. Agride.
lan Smith é denominado por vagabundo, miserável, tabaqueiro, louco, mesmo quando procura soluções para o problema rodesiano, que é, afinal, o que todo o sub-continente ambiciona. E é enquanto decorrem conversações entre ele e um dirigente nacionalista, que o Presidente Samora, causando surpresa aos moçambicanos e aos observadores estrangeiros — que finalmente começam a suspeitar que a intenção de Samora é oferecer a Rodésia a Moscovo como os portugueses ofereceram Moçambique—, anuncia o encerramento das fronteiras, e pede ao povo moçambicano que construa abrigos anti-aéreos junto às residências, às machambas, aos lugares de trabalho, para que se proteja de hipotéticos ataques rodesianos.
Grande parte do mundo interpreta estas suas afirmações como uma formal declaração de guerra, mas é calma a reacção das autoridades rodesianas. Estas esclarecem que o encerramento das fronteiras, que sem dúvida afecta aquele país, prejudica muito mais Moçambique, a Zâmbia e o Malawi.
Confirmando as afirmaçães rodesianas, Joaquim Chissano, porta-voz do Governo de Moçambique, vai à O.N.U. e pede àquele organismo mundial um auxílio de urgência a Moçambique da ordem dos 50 milhões de dólares — cerca de um milhão e 250 mil contos — destinado a fazer face à perda de receitas da utilização dos portos moçambicanos pela Rodésia, das exportações moçambicanas para aquele país, e de outras ligações comerciais cortadas com o encerramento das fronteiras.
O pedido de Joaquim Chissano leva o Conselho de Segurança da O.N.U. a solicitar a todos os braços da Organização, nomeadamente ao «Conselho Económico e Social», ao «Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento», ao «Programa Alimentar Mundial», ao «Banco Mundial», ao «Fundo Monetário Internacional», e ainda a todas as instituições especializadas da O.N.U., que socorram Moçambique.
Ao mesmo tempo o ministro da Defesa da Rodésia afirma à Imprensa, em Salis-búria, que seria melhor que o Presidente Samora Machel, em vez de pedir ao povo moçambicano para abrir abrigos anti-aéreos o ensinasse a produzir para não morrer de fome, e recorda a velha verdade que do cano de uma espingarda nunca nasceu uma espiga de trigo.
Como reagiu a Imprensa moçambicana à atitude de Samora Machel?
Como sempre, com aplausos.
O «Notícias da Beira» achou motivo para uma série de crónicas laudatórias, o «Notícias» seguiu o mesmo caminho, e o «Tempo», como semanário, copiou-os.
Por vontade de todos eles — e bastaria o camarada Presidente ordenar — as forças da Frelimo, sem avião, sem marinha, sem estrategas, apoiadas apenas em guerrilheiros sem experiência bélica, destruiriam a Rodésia e a África do Sul. Mas algum jornal lembrou a caótica situação económica de Moçambique? Algum jornal indagou, junto de economistas, se o país teria possibilidade de sobreviver sem as receitas fornecidas e proporcionadas pelo intercâmbio comercial praticado pelas fronteiras rodesianas?
Onde encontrava Samora Machel a sua força, para colocar Moçambique às portas da guerra?
No povo? Claro que não. Então onde?
A guerra era uma guerra de fronteiras, de civilizações e as frentes eram formadas pelo comunismo moscovita e pela cultura ocidental presente em África.
O poeta Heirich Heine profetizava, oitenta e cinco anos antes do revolucionário Lenine introduzir o comunismo na Rússia czarista:
«O comunismo é o nome secreto de um terrível antagonista que vai precipitar o domínio do proletariado com tudo o que ele implica, numa batalha contra os modernos regimentos da burguesia. Será uma luta árdua... Como acabará? Somente os deuses e as deusas, que privam com os segredos do futuro, poderão dizer. Uma coisa, porém, é certa: «Comunismo» ainda pode ser, para nós, uma expressão estranha; pode errar, desocupado, nos escuros sótãos, descansando em miseráveis colchões de palha; mas, sem dúvida alguma, um papel heróico lhe foi destinado na tragédia moderna, e ele está apenas à espera da deixa para fazer a sua entrada em cena. Não devemos, portanto, perder de vista tal actor; de tempos a tempos temos de noticiar os ensaios secretos que faz ao preparar-se para a grande representação. E essas notícias serão muito mais importantes do que todas as outras, sobre escândalos de eleições, intrigas de partidos ou de gabinetes.»
Não será toda a actividade comunista em Moçambique um ensaio secreto de preparação para o grande espectáculo? Não se verifica, pela actividade extraordinariamente desenvolvida após as ocorrências no Médio Oriente, que é a África o alvo principal da União Soviética, e que é ainda neste continente que ela se mostra claramente, sem disfarces, afirmando-se senhora da situação nas palavras e nas acções, aliviada dos antigos receios que tinha às potências ocidentais incompreensivelmente adormecidas?
Ao se imiscuir nos assuntos africanos — e Angola é o mais cabal exemplo — a União Soviética não esconde os seus interesses imperialistas. Pelo contrário, mostra-os claramente como dominadora.
Onde estranhar, então, que Samora Machel, sacrificando ainda mais o povo do seu país, proporcione a Moscovo a tentativa de desmantelamento dos governos ocidentais africanos, atirando o sub-continente para a guerra? Mas quem se espanta ainda, se olharmos à obsessiva mescla de sadismo e de ódio que dirige todas as suas últimas atitudes políticas?
NOTA: Encontram a obra completa em http://www.macua.org/livros/escalada.html