A Guerra Civil de Moçambique terminou há cerca de 25 anos mas, homens e animais, ainda têm cicatrizes para cuidar. Antigos militares da RENAMO e da FRELIMO trabalham hoje em paz na Gorongosa.
O safari da tarde no Parque Nacional da Gorongosa (PNG) tem o ponto alto durante o pôr-do-sol, altura em que se sai do carro, com cautela, para beber um refresco e olhar para a planície cor de tijolo.
"Nós temos animais de grande importância. Num safari, todos os animais são importantes", explicou Castro Morais, o guia que todos os dias conduz turistas pela reserva à procura dos "big five".
Ouça a reportagem na íntegra. "Gorongosa: Memória de Elefante" é uma reportagem da jornalista Sara de Melo Rocha com sonoplastia de Luís Borges
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Estes grandes cinco mamíferos são os mais cobiçados, os mais perigosos e também os mais difíceis de ver. O PNG tem três destas espécies: o leão, o búfalo e o elefante. Faltam o leopardo e o rinoceronte. Todos querem avistá-los mas Castro não quer fazer grandes promessas para não passar por "guia mentiroso".
De todas as espécies da Gorongosa, os elefantes são os que têm mais fama. "Quando alguém está a conduzir a sua viatura e alguém aproxima dele, muito próximo mesmo, eles podem atacar. Eles querem sentir-se bem respeitados", refere o guia já habituado às mudanças de comportamento dos animais, sobretudo "das fêmeas quando estão com as crias".
Memória eterna
Não se trata apenas de instinto materno. A Guerra Civil de Moçambique deixou cicatrizes difíceis de curar. "Eles lembram de muito. Eles têm emoções", refere Dominique Gonçalves, especialista em mamíferos de médio e grande porte.
O comportamento dos elefantes resulta de 16 anos de guerra civil e de décadas de caça furtiva. No final dos anos 70, início dos anos 80, a RENAMO, a Resistência Nacional Moçambicana, instalou o comando central na serra da Gorongosa. Militares e população recorreram à fauna bravia para comer. Os elefantes eram mais valiosos. As pontas de marfim eram trocadas por armas.
Mesmo depois de mais de 25 anos do final da guerra, os elefantes da Gorongosa continuam vulneráveis "porque têm aquela memória estrondosa".
Os sobreviventes trazem cicatrizes na mente e na pele. "Às vezes, quando vemos um grupo, vemos que uma tem um buraco na orelha de uma bala. Outras têm a tromba um bocado cortada. A orelha rasgada", explicou a bióloga moçambicana.
Mas as cicatrizes emocionais são as que mais preocupam Dominique. "Quando acontece algum evento de caças ou coisas assim anormais, é claro que eles recuam e voltam a sentir aquela mesma angústia. Somos muito cautelosos com os nossos elefantes, até para aproximar ou mesmo com os turistas".
Cem elefantes
O cérebro de um elefante pesa quase cinco quilos. Tem o maior volume de córtex cerebral de todos os mamíferos terrestres. Consegue acumular conhecimento social e ecológico durante décadas. "Um elefante vive até aos 60 anos por isso, qualquer elefante adulto ou mais velho passou pela guerra" contou Mike Marchington.
Em 1992, ano do fim do conflito, o parque tinha perdido 90% da vida selvagem. O diretor de operações do PNG explica que, no final da guerra, restaram entre a 100 a 150 elefantes. Antes do conflito eram pelo menos 2500.
Foi um "declínio absolutamente catastrófico" mas a espécie começa a mostrar sinais de recuperação. A última contagem aérea mostra que o parque tem pelo menos 600 elefantes mas estima-se que possam ser 800.
As crias asseguram o crescimento da espécie mas adotam também o comportamento dos elefantes mais velhos. "Vai levar tempo até que eles se sintam mais confortáveis", refere Dominique.
Os especialistas querem confrontá-los e ensinar que nem todos os seres humanos carregam armas de guerra ou de caça. Dominique segue a metodologia de Joyce Poole, uma autoridade internacional em comportamento e comunicação de elefantes.
Memória dos homens
O conflito foi devastador para a natureza e para o homem. A guerra civil fez mais de um milhão de mortos e 3 milhões de refugiados. Se os elefantes não conseguem esquecer, muitos trabalhadores da reserva da Gorongosa querem seguir em frente. É que no parque vivem todos juntos: quem apoiou a FRELIMO e quem lutou pela RENAMO.
Tomás de Jeropia trabalha no restaurante do parque há 10 anos. O jantar é dali a algumas horas mas há sempre trabalho para fazer na cozinha. Faz uma pausa rápida, que acaba por ser longa quando recuamos até ao momento em que foi recrutado pelos rebeldes.
"Eu fui apanhado. Não tive como fugir, tive que cumprir. Tive de treinar e depois começamos logo a ser espalhados a trabalhar", conta.
A vida na serra da Gorongosa era dura para os guerrilheiros da RENAMO. Havia pouco para comer e muitos combates com os soldados da FRELIMO, a Frente de Libertação de Moçambique.
"Morria às vezes a cada dia 50 homens" disse Tomás que, passado dois anos de vida militar, decidiu fugir para o Zimbabué. "Era tempo de crise de fome. Sofremos. Estou aqui porque deixei as armas e fugi".
A serra da Gorongosa tanto serviu de base para quem lutava, como de refúgio para quem fugia da guerrilha.
Jorge Nginga Chapomba também conseguiu escapar para o mato. Hoje trabalha como fiscal no parque. Conhece a savana como ninguém. Sobreviveu por lá 5 anos, até ao final da guerra. "Sofria com fome, comia fruta do mato, carne dos animais, mel", recorda.
Guerra de irmãos
O rebentar das armas anunciava a partida. Resistia-se enquanto se podia. Mas a fuga foi a resposta para muitos nativos da serra da Gorongosa.
"Treze de setembro de 1983 é quando a RENAMO assaltou isto. Nós tínhamos um comandante que andava de trincheira em trincheira. Disse que toda a gente tinha de sair para Metuchira porque a RENAMO já estava aqui dentro", relembra Tato Alexandre João, que aos 15 anos conseguiu chegar à Beira, escapando ao conflito.
Os irmãos mais velhos de Tato não tiveram a mesma sorte. Lutaram os dois na guerra. "Um estava contra o outro. Um estava na RENAMO o outro estava na FRELIMO".
Passando as trincheiras e chegando às cidades, o domínio passava para as mãos da FRELIMO. "Nós ficamos a favor da FRELIMO. O sofrimento [para os guerrilheiros da RENAMO] era muito maior em relação a nós que estávamos na FRELIMO. Nós tínhamos meio de transporte, tínhamos comida, nós viajávamos, estudávamos. Todos aqueles que estavam fechados aqui não tinham acesso a nada".
Antigos combatentes vivem em paz na Gorongosa
Com a queda da antiga união soviética, a RENAMO perdeu os apoios do Zimbabué e da África do Sul. Começaram as negociações para um tratado de paz. Roma foi a anfitriã do fim do conflito em 1992, quando governo e RENAMO assinaram um acordo que colocou um ponto final a 16 anos de uma guerra de irmãos.
Hoje todos vivem no Parque Nacional da Gorongosa como uma família. Trabalham lado a lado mesmo que antes tenham estado em fileiras diferentes.
"É uma forma de mudança porque, quando há luta, existe uma divergência. Mas isso não significa que quando há luta não deixamos de ser irmãos. Eu tive dois irmãos que lutavam nos dois lados. Mas quando acabou a guerra, se eles tivessem vivos, seriam sempre irmãos. O mesmo acontece aqui na Gorongosa", explicou Tato.
Não interessa contra quem lutaram. Tomás explica que o recrutamento de guerrilheiros foi feito de forma indiscriminada. "Uma pessoa como nós, ao sermos recrutados, não sabíamos qual era o objetivo deles". Hoje quer esquecer tudo.
Construir o esquecimento
Mia Couto, moçambicano e escritor, colabora com a Gorongosa enquanto biólogo. Acredita que Moçambique está em processo de reconciliação. Afinal de contas, só passaram 25 anos.
"Há essa intenção e as pessoas dizem, como lhe disseram a si: nós queremos esquecer. Provavelmente há aqui um tempo que é preciso dar porque não se pode insistir, não se pode forçar", referiu.
O escritor defende que é preciso respeitar e arrumar a memória. "O que é que se pode dizer a uma moçambicano que quer esquecer e esse desejo é um desejo profundo?", questionou.
Mia Couto afirmou que há sabedoria na necessidade que povos que passam por guerras têm em esquecer o conflito. "É preciso saber construir o esquecimento. E as nações foram muito feitas assim sempre. As narrativas oficiais dos países são fundadas principalmente no esquecimento, não tanto na memória. O mais importante é o que se esquece".
Novos tempos na Gorongosa
A assinatura de um acordo entre o governo Moçambicano e a fundação Carr em 2008 abriu uma nova página na história do parque. A organização norte-americana avançou com mais de 30 milhões de euros para financiar o projeto de restauração da Gorongosa numa parceria público-privada de 20 anos, que agora foi estendida por mais 25 anos, até 2042.
"É um projeto a longo prazo. Portanto, há aqui perspetivas de que muita coisa venha a acontecer" explicou Vasco Galante.
O diretor de comunicação do PNG foi das primeiras pessoas da equipa a chegar ao terreno. Percebeu que havia muito trabalho a fazer. " À volta do acampamento estava tudo minado. Não havia água para beber, não havia eletricidade. Não havia internet, não havia comunicações móveis. Agora temos uma coisinha um bocadinho diferente. Na altura isto era um bocado triste", recorda.
Hoje a reserva conta com mais de 80 mil animais de grande porte. O projeto de restauração trouxe novas espécies, reflorestamento e desenvolvimento humano. O acordo inclui também medidas de combate à pobreza, construção de escolas e centros de saúde para as cerca de 200 mil pessoas que vivem na zona tampão.
"Eles têm de ter orgulho deste parque e este parque tem de lhes dar benefícios. No nosso orçamento temos quase 50% é dedicado às populações da zona tampão, ao desenvolvimento humano fora do parque".
Greg Carr, o apaixonado pela Gorongosa
O dinheiro para o investimento veio das mãos de Greg Carr, um norte-americano milionário que inventou o voicemail. O filantropo passa metade do ano em Moçambique. Visitou o país pela primeira vez em 2004 a convite do presidente. "Pensei: é mágico".
Carr sabia que o parque estava em mau estado devido à guerra mas explica que "visto do ar, os rios estavam cá, as árvores estavam cá. E se tens o habitat, sabes que a vida selvagem pode voltar".
O filantropo defende que o turismo pode ser a resposta para um país como Moçambique, a começar com o exemplo do parque. "O Gorongosa é um dos parques nacionais mais bonitos em África. Podemos criar mais de 1000 empregos relacionados com o turismo neste parque. Cada um desses empregos pode ir para os moçambicanos", garantiu.
Carr defende a criação de diferentes tipos de experiências de turismo, desde as mais económicas para famílias, até às mais luxuosas.
Greg Carr assegura que 98% dos trabalhadores do parque são moçambicanos. "O PNG pertence às pessoas de Moçambique. Não se trata de estrangeiros a assumir o controlo do parque. Nós temos um administrador do parque que é moçambicano, que é indicado por um ministro", explicou.
Além do turismo, a Gorongosa tem atraído biólogos e investigadores de todo o mundo. "O que mais gosto do nosso programa de ciência é que estamos a educar uma geração de jovens moçambicanos para serem cientistas e conservacionistas", sublinhou.
O PNG está também a criar o primeiro mestrado em conservação e e biologia em Moçambique que começa já este ano e tem uma duração de dois anos.
Trégua por tempo indeterminado
Enquanto o cessar-fogo entre governo e RENAMO se mantiver, a Gorongosa pode respirar de alívio. Mas Carr quer que a política fique fora dos portões do parque. "Não estamos envolvidos em política. Não fazemos parte de nenhum partido político. Mas nós damo-nos todos bem. Ninguém discute política aqui", garante.
Greg Carr encara o PNG como forma de trazer estabilidade ao centro do país, sublinhando que "o cessar-fogo tem sido ótimo. O ano passado foi muito pacífico".
Entre avanços e recuos, o acordo de paz definitivo em Moçambique está a ser acenado há algum tempo. Há falta de consenso em relação à descentralização, desmilitarização e integração dos guerrilheiros da RENAMO nas Forças Armadas. Mas há sinais que trazem esperança.
"Não esperávamos que um dia o presidente Nyusi fizesse uma viagem para a montanha e sentar e falar com ele [Afonso Dhlakama]. Mas já fez por duas vezes. Nós temos a esperança de que essa trégua vai ser uma trégua definitiva. E se for assim, é uma trégua para os animais e é uma trégua para nós", assegura Tato João Alexandre.
Agora é tempo deles, dos animais. Somos convidados. O mato é deles.
"Agora a vida mudou muito para nós e para os animais. Os animais são os nossos patrões. Quando entram os clientes, vêm cá deixar alguma receita. Mas não vêm visitar-me a mim, vêm visitar os animais", comentou Tato.