No discurso que leu no dia 20 de Dezembro de 2017 perante a Assembleia da República o Presidente da República aborda o desafio criado pelas dívidas secretas e ilegais contratadas pelo seu antecessor e sua equipa securitária (de que ele era parte como ministro da defesa). Ao fazê-lo, o Presidente da República roça no problema-mãe de todos os problemas: o das deficiências da Constituição da República de Moçambique. Essas deficiências são várias. No passado referi-me a limitação do direito de ser politicamente independente. O caso de hoje é o da emasculação das regras de pesos e contrapesos na distribuição e exercício do poder. Vou dar o exemplo da [in]dependência da Procuradoria Geral da República (PGR) em relação ao Presidente da República.
Nos parágrafos 73 e 74 do referido discurso lê-se (e cito): “… reiteramos hoje a total disponibilidade do Governo de apoiar a Procuradoria-Geral da República para a implementação célere das recomendações da KROLL e da Comissão de Inquérito Parlamentar, observando o princípio de separação de poderes, constitucionalmente consagrado. … no quadro da não interferência do Governo no poder judiciário.” Para o nosso Presidente isto materializa um tal “ princípio da boa governação e da separação dos poderes em Moçambique.”
Este pronunciamento revela uma clara deficiência da interpretação que o Presidente da República faz dos poderes e responsabilidades que a Constituição da República lhe confere. Contrariamente ao que o Presidente da República pretende fazer-nos crer, a Procuradoria-Geral da República de Moçambique está efetivamente sob sua tutela. A PGR não é separada do executivo, não é independente nem tem poder de contrapeso aos poderes do Presidente (que é Chefe do Executivo). Antes pelo contrário. Por exemplo, por definição da própria constituição o Presidente da República nomeia, exonera, e demite o Procurador e o Vice-Procurador Geral da República, sem nenhuma intervenção dos outros órgãos de soberania que fazem parte do sistema de pesos e contrapesos na distribuição e exercício do poder.
Um outro exemplo gritante do papel da PGR como instrumento do Presidente é o seguinte: enquanto a constituição consagra o poder da Assembleia da República de exercer ação penal contra o Presidente da República, pelo nr. 3 do artigo 153º da mesma Constituição a Assembleia da República se pretender exercer este poder deve ainda requerê-lo junto da Procuradoria Geral da República (o dito titular da ação penal).
Mais ainda, diferentemente do caso dos Tribunais em que a Assembleia da República tem o poder de ratificação da nomeação dos presidentes dos tribunais feita pelo Presidente da República, ou em que o judicial (Conselho Constitucional) pode declarar inconstitucionalidade dos atos do Presidente da República (e do seu governo) e da Assembleia da República, as decisões do Presidente da República em relação a quem dirige a PGR (e portanto em relação ao que a PGR faz ou não faz) não têm quem por lei as possa desafiar (a não ser no fórum improvável de uma possível declaração da sua inconstitucionalidade). É por isso que a gíria diz que em Moçambique o(a) Procurador(a) Geral da República vive nos sovacos do Presidente da República. Atura todo o mau cheiro, mas mesmo se o quisesse fazer não pode lavar o lugar porque não é o dono do corpo, e de resto a pessoa que lá vai sabe que aceitou ganhar a vida por desempenhar esse papel.
Não sei de onde é que este modelo foi copiado (já que as nossas leis são principalmente feitas assim) e se foi copiado bem. Acontece porém que ele resultou numa situação bizarra em que a Assembleia da República (que é um órgão de soberania -um dos cinco definidos pela Constituição, artigo 133º), tenha que requerer o exercício das suas faculdades constitucionais a um órgão que lhe é constitucionalmente inferior (a Procuradoria Geral da República não é um órgão de soberania).
Mesmo sendo um modelo ou formato defeituoso com o qual não concordo plenamente, o facto porém é que o Presidente da república tutela a Procuradoria-Geral da República, e portanto não tem que a ela “reiterar disponibilidade de apoiar”. A responsabilidade do Presidente da República (derivada das suas competências constitucionais) é dar instruções e fazer cumprir, e não fazer apelos e prometer apoios à distância. Não é credível a “separação de poderes” que ele advoga. A [in]ação da PGR é a expressão da vontade do Presidente da República.
É por isso que ele se refugia na nebulosa “boa governação e separação de poderes” que não é um conceito da Constituição da República de Moçambique. “Boa governação” é uma expressão que não aparece uma única vez na nossa lei mãe. Mesmo a palavra ‘governação’ só aparece uma única vez (no Artigo 74º), de um texto com mais de vinte mil palavras.
Quanto a distribuição do poder, o artigo 134º da constituição da República de Moçambique apela aos princípios de separação e interdependência de poderes.
O objetivo da separação de poderes é evitar que o poder se concentre nas mãos de uma única pessoa, para que não haja abuso, como o que ocorre no Estado Absolutista em que todo o poder concentra-se na mão do rei. A interdependência é necessária para que embora atuando de forma separada, independente e harmônica, os diferentes órgãos de poder mantenham as características do poder unitário e indivisível. Boa governação é o resultado da observância e respeito (em primeiro lugar pelos governantes) de uma Constituição que estabelece princípios e regras de um Estado verdadeiramente independente, soberano, democrático e de justiça social.
Dito isto, justiça manda dizer que nas suas circunstâncias o atual Presidente da República não pode agir para combater ou minimizar os efeitos dos grandes atentados contra o bem-estar da nação inteira por um grupo de pessoas em seu benefício privado. Não é que não tenha poder. Ele está desmotivado pela vulnerabilidade em que lhe deixa a sua associação partidária com os agentes do mal. Esse desincentivo para agir na direção apropriada é muito mais forte no caso das dívidas secretas e ilegais e outros escândalos dum regime de que ele fez e continua a fazer parte.
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