Por: *PhD, Carlos Nuno Castel-Branco*
O PR Filipe Nyusi declarou, recentemente, que os bancos e "investidores" externos envolvidos devem partilhar a responsabilidade pelas dívidas (suponho que se estava a referir à componente secreta e ilicitamente assumida e garantida pelo governo de Armando Emílio Guebuza (AEG) de dívida privada, vulgarmente conhecida como dívidas ocultas, secretas ou ilícitas).
Embora esta declaração surja com dois anos de atraso e com "sentido de oportunidade" perverso (logo a seguir a uma série de tentativas - incompetentes e incoerentes, à la Maleiane - falhadas de negociação da dívida com credores), o PR tem razão no que disse.
No entanto, há três problemas fundamentais com esta declaração, dado o contexto em que ela se insere.
Primeiro, partilhar significa, grosso modo, dividir pelas (mais que uma) partes. Filipe Nyusi (FJN) definiu uma das partes, os bancos e "investidores" externos envolvidos. Mas não definiu a/s outra/s parte/s. Suponho que essa outra parte seja nacional, isto é, que FJN estaria a dizer que os especuladores internacionais deveriam partilhar a responsabilidade pelas dívidas ilícitas com as partes nacionais. Mas, quais são as partes nacionais? O Estado e o povo? Podem, estes, assumir a responsabilidade de pagarem por dívidas que não pediram, que não aprovaram, que desconheciam e de que não beneficiaram? O governo cessante, presidido por AEG, que tem responsabilidade colectiva e solidária pelos actos do governo, ainda que uma parte desse governo pudesse ter sido mantida na ignorância deste assunto? AEG e os seus aliados próximos, que possivelmente estariam envolvidos directamente, como mandantes e executores das decisões e acções conducentes ao escândalo das dívidas ilegais? FJN não pode ser ambíguo sobre isto, pois, como PR, ele é o primeiro responsável pela garantia da constituição, da legalidade e da soberania dos cidadãos sobre o Estado e sobre a sociedade. Ele tem de dizer, claramente, de que lado está e o que pensa fazer.
Caso contrário, o que FJN acaba de declarar - que as instituições financeiras internacionais envolvidas devem partilhar responsabilidades - poderá ser entendido como outra, mais uma, manobra de diversão para esconder o problema. A primeira manobra de diversão foi o não reconhecimento da existência do problema, recorrendo-se à mentira, omissão ou pretensa idiotice (Chang e Maleiane tornaram-se peritos nisto). A segunda manobra de diversão foi a campanha para consagrar a EMATUM como estratégia de consolidação e desenvolvimento do empresariado nacional no sector da pesca industrial. A terceira foi a declaração do secretismo do assunto por causa da defesa da soberania nacional - de estratégia de pesca, as dívidas ocultas tornaram-se em assunto de defesa e segurança nacional. A quarta foi a declaração dos denunciantes e críticos desta acção como anti-patriotas, a sua perseguição, bem como a emissão de mandatos de linchamento e agressão física - estas pessoas continuam, ainda hoje, ostracizadas no domínio de acção das instituições públicas, e sob ameaça física - os casos de Ericino de Salema e José Jaime Macuane são dois exemplos disto. A quinta foi a aparente honestidade do governo em falar das dívidas - o Primeiro Ministro apresentou a situação em detalhe no Parlamento - que serviu para esconder as dívidas ocultas dentro do conjunto geral do endividamento do Estado, diluindo o assunto. A sexta, foi o ataque ao FMI e aos doadores por terem fechado a torneira da ajuda internacional e por terem feito finca pé sobre a necessidade da auditoria externa - o assunto deixou de ser a ilegalidade da dívida e as suas implicações económicas e sociais para o País, para a soberania nacional e para a vida da maioria da população, para se tornar numa luta patriótica contra a afronta imperialista de ingerência nos assuntos internos. Portanto, patriotismo seria unirmo-nos, incluindo com os mandantes e executores das decisões/acções que resultaram no descalabro financeiro do país, para nos opormos ao FMI e companhia (quer dizer, esclarecer a situação não era interesse nacional soberano e legítimo, mas apenas ingerência externa). A sétima foi a farsa da auditoria externa, para a qual os mandantes não foram entrevistados, os executantes recusaram dar informação em nome da defesa da soberania nacional e da denúncia da ingerência imperialista. Esta auditoria pariu menos do que um rato, no sentido em que pouco mais informou para além do que já sabíamos, confirmando apenas que houve crime (definido como violação da constituição e da lei específica) e que não é conhecido o destino dos fundos (factos que já sabíamos), e não conduzindo a nenhum tipo de acção subsequente. Nem a PGR se digna continuar a falar deste assunto. Já houve auditoria, já se "matou" o assunto. A oitava foi a incompetente, incoerente e, mesmo, ridícula forma como o governo, na pessoa de Maleiane, tentou (ou não tentou) renegociar a dívida com os credores - provavelmente, com a intenção de mostrar à sociedade que não há opção ao pagamento integral da dívida, por mais odiosa que seja, pelo povo, porque os especuladores são intransigentes; ou como forma de ganhar tempo e granjear alguma simpatia internacional projectando-nos como vítimas de especuladores internacionais intransigentes (que são, mas ninguém nos mandou metermo-nos com eles).
Agora, FJN declara que esses especuladores devem ser co-responsabilizados (e tem razão), mas como não define o crime nem quais são a partes nacionais envolvidas nessa co-responsabilização, o que acaba de dizer pode ser entendido como mais uma manobra de diversão. Será que o PR anda a "dar tiros no escuro" para ver o que pega e para ver se acerta em alguma coisa? Será que ele está disposto a definir claramente, directamente, a quem tais especuladores se devem juntar como co-responsáveis, e de quê? Será que ele está disposto a prosseguir acções decisivas e claras para resolver este assunto em defesa da legalidade, do Estado e da soberania do povo sobre o Estado e a sociedade?
Segundo, FJN ainda não definiu o crime. Sobre o que é que as partes devem ser co-responsabilizadas? Qual é o crime? Sem reconhecer e definir o objecto sobre o qual responsabilização recai não faz sentido falar em co-responsabilização nem é possível definir as partes envolvidas. A mensagem de FJN parece indicar que alguma coisa foi muito mal feita - ele mencionou, como parte do seu argumento para co-responsabilizar especuladores internacionais, que eles não deveriam ter emprestado tanto dinheiro sem garantias a um "país pobre" - mas continua ambígua e não vai suficientemente longe. Quem foi pedir muito dinheiro a especuladores internacionais, sem garantias, mesmo sendo "um país pobre"? Quem aprovou isso? Foram respeitadas a constituição e a lei específica? Onde está esse dinheiro e em que foi usado ou por quem foi apropriado? Como foi obtido? Como é que o sistema público de avaliação e gestão da despesa pública (incluindo das garantias ao sector privado e do investimento público) permitiu isso? O que vai ser feito para que os envolvidos (mandantes e executores internacionais e os especuladores internacionais) digam o que aconteceu, de facto, e com todo o detalhe? De facto, de que é que os especuladores internacionais são co-responsabilizados e qual é a base material dessa declaração? Sem tornar isto absolutamente claro, e sem distanciar o Estado e o governo actual das acções do governo de AEG que culminaram neste escândalo, não faz sentido falar de nenhum tipo de responsabilização.
Terceiro, a declaração de FJN sobre co-responsabilização de especuladores internacionais chega com dois anos de atraso. Este problema começou a ser conhecido há quase três anos. Neste período, o governo de FJN foi extremamente hesitante, ambíguo, oportunista e andou sempre a correr atrás dos acontecimentos - mentiu, omitiu, assobiou para o lado, hesitou, tentou lavar as mãos, tentou desviar a atenção do assunto, e nunca agiu com segurança e com determinação. Neste contexto, será que as declarações recentes de FJN marcam uma viragem - para definir as partes responsáveis, de que são responsáveis e o que vai ser feito sobre isso - ou apenas se situam na mesma trajectória de diversão, oportunismo, ambiguidade e acção por inacção seguida até aqui?
Para ser levado a sério, o PR tem de definir quais são as partes responsáveis, de que são responsáveis e o que vai ser feito sobre isso. Estas são as três peças necessárias para declarar estas dívidas como odiosas e não pagáveis.
Se o PR precisa de ajuda para seguir estes passos, peça-a. Imagino que muitos milhões de moçambicanos e de cidadãos do mundo comprometidos com o progresso democrático, com a justiça social e económica e com a luta contra a financeirização estão dispostos a ajudar.
Não é entre os responsáveis pelo escândalo das dívidas ilícitas que FJN encontrará amigos - quando o assunto foi levantado no CC da Frelimo e quando ficou quente no parlamento e no debate público, a equipa de propaganda que se supõe possa ser pró-AEG (com ou sem aprovação deste) divulgou documentos oficiais que comprometem FJN com a EMATUM e Proíndicos; os agentes executores entrevistados para a auditoria internacional acusaram os nacionais que aprovaram e insistiram na auditoria de serem agentes do inimigo estrangeiro personificado na equipa de auditores internacionais.
Então, se quer ser levado a sério e mobilizar empatia e apoio reais, FJN e o seu governo terão de definir de que lado estão, e terão de deixar de tentar equilibrar-se sobre uma corda bamba imaginária por cima de um precipício habitado por grandes crocodilos, no meio de uma tempestade. Se quiserem continuar nesse "equilíbrio", façam-no sozinhos e não arrastem o país com eles. Aliás, o País não se deixará arrastar!
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