EDITORIAL
Pela forma como a comunicação governamental está a ser feita sobre a crise em que vivemos, há evidência bastante a parecer que fomos vítimas de uma calamidade de ordem natural e que somos todos culpados por nascer em lugar propenso à intempérie. A dívida oculta, o mais olímpico roubo de dinheiro do povo alguma vez visto em África, como lhe chamou um jornal holandês, tende a desaparecer das abordagens sobre a crise, como se nada tivesse acontecido.
E uma arrumação semântico-discursiva que se tem encarregado de tratar da actual crise mais colada para a guerra e uma suposta conjuntura internacional, fazendo tábua rasa ao facto de a guerra ter sido patrocinada para justificar algumas facturas da dívida. Mais do que isso: a colocar os doadores que suspenderam o apoio directo ao Orçamento do Estado como sendo os vilões deste filme.
Agora é tudo milimetricamente costurado para que as dívidas sejam empurradas para um plano metafísico sem solução, ou melhor, em que parece não haver culpados, e, mais grave do que isso, em que tudo parece ter sido um delito leve, que, ao nos importarmos com ela (a dívida), facilmente somos confundidos com implicantes e inimigos do sossego.
Parece-nos que a declaração pomposa feita por Filipe Nyusi numa reunião partidária, segundo a qual “há indícios criminais” na questão das dívidas, não passou de um discurso inflamado, para fazer derreter o gelo nas hostes da comunidade doadora.
Causa admiração que, sendo Filipe Nyusi, nessa altura com o cargo de ministro da Defesa, parte importante no processo a todos os níveis, declare em reunião solene que haja matéria criminal nesse processo, e essa declaração seja assumida, como se de uma outra natureza se tratasse.
Tendo sido Filipe Nyusi o que foi nesse processo, a sua declaração não é leviana. Partimos do pressuposto de que tenha sido feita com base em algum fundamento ao seu dispor, dado o conhecimento profundo que detém do assunto, pelo seu envolvimento desde o primeiro dia.
Se a essa declaração não se segue qualquer procedimento, das duas, uma, ou atribuiu-se tacitamente a Filipe Nyusi igual tratamento, ou, numa outra hipótese, que Nyusi tenha aceitado fazer parte de uma encenação declarativa para melhorar a sua imagem e estrategicamente aparecer como o descobridor da pólvora.
Assumindo uma ou outra hipótese o que até aqui se cristaliza é que há uma actuação de parelha de encobrimento e protecção de grupos, e todo um povo vai sendo imbecilizado a olhos vistos, perante um crime que arrasou a economia e a esperança dos cidadãos, com grande potencial para hipotecar o futuro dos mais novos e qualquer possibilidade de visão patriótica sobre os recursos da indústria extractiva que agora vão sendo negociados pelos mesmos artistas, tendo como pressuposto um problema chamado dívida oculta que, na verdade, não obriga, sob qualquer ponto de vista, os legítimos donos desses recursos, que são os moçambicanos, homens e mulheres.
Se até agora permitimos que a Procuradoria-Geral da República vá ensaiando número atrás de número teatral perante um crime tão limpo, e os cidadãos não se levantam para defender o país, então alguma coisa de gravidade máxima se está a passar connosco como cidadãos.
Se já é arrepiante cruzar pelas ruas com os cidadãos que nos meteram nesta encruzilhada, impunes, e, em alguns círculos, celebrados como heróis, ultrajante para a nossa dignidade colectiva é ter que ouvir esses mesmos senhores a darem-nos lições de como sobreviver em crise, que eles próprios criaram, com a particularidade de não sentirem o efeito nefasto das suas acções.
Julgamos que se até a Procuradoria-Geral da República, que tinha prazos concretos e compromissos claros sobre o seu papel na investigação que foi levada a cabo pela “Kroll”, não apresentou qualquer resultado, fica claro que ela é parte do problema e nunca será a solução.
Depois de todos os elementos que a Procuradoria-Geral da República teve à mão de semear, neste caso em concreto, e, até aqui, não haja arguidos e, mesmo assim os titulares desse Ministério Público continuarem a achar que servem para alguma coisa que esteja próximo do digno, então a indignidade deverá ser achada no povo.
Se até aqui não há arguidos nem qualquer referência séria ao assunto, significa que a Procuradoria-Geral da República já se convenceu de que não tem, nos seus quadros, ninguém com moral ou idoneidade superior à dos bandidos que cometeram tal crime.
Ou, se calhar, tais bandidos são mais recomendáveis em matéria de moral do que os procuradores que aceitam serem o esgoto desses criminosos.
Cria alguma estranheza a qualquer cidadão com a pauta mental no nível mediano ver os titulares do Ministério Público a passearem em palestras nas províncias a exortar e a administrar banalidades, quando se sabe que existe um caso de Estado nas suas mãos e do qual depende o futuro de uma geração. Alguma coisa não está bem.
E esta geração de magistrados do Ministério Público que temos hoje na actual Procuradoria, que acredita que, ao pegar num relatório tão exaustivo e inquestionável como o da “Kroll”, em vez de instruir processos e constituir arguidos, põem-se a editar os nomes e torná-los codificados exactamente para defender o interesse dos “lesa-pátria”, ficará para a história sobre como os criminosos podem legalmente lixar a vida de gente honesta e continuarem impunes. Mas a história também reza que todos os cartéis do crime organizado, mesmo que tenham estado, em algum período, a dirigir as magistraturas, tiveram o seu fim. Os moçambicanos só precisam de acordar e assumir que fomos todos vítimas de um assalto que a Procuradoria-Geral da República quer fazer passar por uma visita de cortesia.
(Canalmoz / Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 23.04.2018