O Misa Moçambique, organização de defesa da liberdade de imprensa, teme que haja pessoas no poder, no país, com margem de manobra para ameaçar jornalistas no próximo ciclo eleitoral, disse à Lusa o diretor executivo da organização, Ernesto Nhanale.
"Estamos num pais em que ainda há pessoas com cultura autoritária" a tomar decisões "nos centros de poder político, militar e policial", referiu, em entrevista, dois meses depois do rapto e espancamento, em Maputo, do jornalista e comentador político Ericino de Salema.
Ernesto considera que há "elementos mais que suficientes para recear" que situações de violência e repressão sobre jornalistas possam voltar a acontecer, "sobretudo quando nos avizinhamos de um período eleitoral".
"As eleições representam um risco para o jornalismo, na medida em que os partidos políticos querem uma imagem positiva do seu trabalho, não querem contrariedades", sublinhou.
Só que "o papel do jornalismo é monitorizar e não acariciar o poder político". Casos como o de Ericino de Salema são só os mais mediáticos.
O Misa regista outros incidentes pelo país em que os jornalistas são o alvo e admite que haja mais, só que passam despercebidos.
Questionado sobre quem são essas figuras que representam uma ameaça para a liberdade de imprensa, Ernesto Nanhale responde com um perfil de pessoas dispersas, que vão agindo por sua conta.
"No fundo são pessoas dispersas. Nunca ninguém se reuniu formalmente a dizer ?façam isto, mais aquilo'. Acreditamos que são pessoas que, gozando da sua posição individual, ao sentir um certo tipo de ameaças" ou por "estarem expostas" usam "o poder que detêm e as posições que representam para fazer essas formas de coação".
Para o diretor executivo do Misa Moçambique, "não há uma ação concertada, institucional, para promover esse tipo de atos".
Ainda assim, o problema persiste: "são pessoas que estão dentro do poder e, sentindo-se protegidas pelo poder, agem em nome individual" para ameaçar os jornalistas "de forma física, psicológica e, agora, da forma mais vil possível: usar o poder judicial" - numa alusão a recentes processos contra o semanário "Canal de Moçambique".
"Felizmente ainda temos tribunais que funcionam e que compreendem o papel dos jornalistas nos contextos democráticos", acrescentou.
O jornalista e comentador político Ericino de Salema, participante no programa televisivo "Pontos de Vista" do canal privado STV, foi raptado e espancado em Maputo, a 27 de março, depois de alegadamente ter recebido mensagens que o ameaçavam por "falar demais".
Sofreu várias fraturas, entre outros ferimentos, e encontra-se em recuperação numa unidade hospitalar da África do Sul.
Diversas organizações da sociedade civil moçambicana entregaram em abril uma petição à Assembleia da República, pedindo ao órgão para pressionar as instituições de justiça a esclarecer os casos de violência contra figuras incómodas para o poder.
Em 2015, o constitucionalista moçambicano de origem francesa, Gilles Cistac, foi mortalmente baleado na capital moçambicana depois de dar um parecer, acomodando a proposta de descentralização da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), oposição.
No ano seguinte o politólogo José Macuane sobreviveu após ter sido raptado e alvejado numa altura em que era comentador do programa "Pontos de Vista" - tal como Salema.
Nenhum dos crimes foi até hoje esclarecido pelas autoridades.
No plano político, o Governo da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder desde a independência do país, em 1975, condenou o ataque a Salema pela voz do primeiro-ministro.
"Queremos reiterar aqui e agora a nossa inteira confiança nas autoridades policiais no seu trabalho de combate ao crime no encaminhamento dos seus autores à justiça", afirmou Carlos Agostinho do Rosário, no parlamento, no dia seguinte ao sucedido.
O MISA Moçambique, escritório moçambicano do Instituto de Comunicação Social da África Austral, é uma associação sem fins lucrativos que tem como objetivos promover e defender a liberdade de expressão e de imprensa.
LUSA – 27.05.2018