Entre as diversas datas das mais destacadas acções nacionais e estrangeiras em benefício da conservação da vida animal selvagem tem posição digna de citação especial a de 18 de Outubro de 1920.
João Pery de Linde, governador do Território de Manica e Sofala, sob a administração da Companhia de Moçambique, de 15 de Novembro de 1910 a 7 de Maio de 1913, de 21 de Junho de 1914 a 16 de Junho de 1919 e ainda de 28 de Junho de 1920 a 7 de Julho de 1921, ao olhar a herança única de zonas de fauna selvagem, soube antecipar-se à progressiva destruição, mandando, com elevada sensibilidade e superior visão, por despacho, reservar parte da circunscrição da Gorongosa para usufruto único dessa fauna, e determinou aos respectivos Serviços de Agrimensura o estudo da área e consequente demarcação.
O governante, interessado e activo, concretiza em breve a sua tão inteligente quão excepcional e oportuna iniciativa, criar.do, através da Ordem de Serviço n." 4178, publicada no Boletim Oficial n.º 6 da Companhia de Moçambique, datada de 2 de Março de 1921, «uma reserva de caça com a área de cerca do 1000 km3 para assegurar a protecção da fauna e da flora existentes na circunscrição da Gorongosa».
É de salientar que Pery de Linde ultrapassou o seu pensamento inicial, só por si tão digno como construtivo, valorizando-o, ou antes, completando-o, pois tornou extensiva à flora a mesma protecção.
Trinta e cinco anos mais tarde, aquando da preparação do Decreto n.° 40040, lei que hoje estabelece os preceitos destinados a proteger no Ultramar o solo, a flora e a fauna, atendeu-se ao prudente conselho dum especialista destes assuntos, que, certamente ao recordar as medidas de protecção já em uso nas províncias ultramarinas, disse: — «Aproximemo-nos dos problemas nos trópicos com a devida humildade; há muito que aprender antes que possamos ensinar».
De facto, Pery de Linde ditando, muito antes, o respeito pela vida do animal selvagem, benefício para a vida humana sob vários e valiosos aspectos, fez-nos aprender e deu um exemplo tanto mais de realçar quanto já vai distante de hoje a data de 18 de Outubro de 1920.
Nesse dia, transmitiu-nos o seu pensamento, próprio do espírito culto em sentir e saber, pois, em verdade, diremos que outros de igual ou maior saber meno3 fizerem nesse sentido ou até destruíram ou só diminuíram por lhes faltar a premissa que é o culto da Natureza ~ obra de Deus — do belo, só possível em alma sensível, mas forte, e sabendo sentir para além do materialismo comum.
A multiplicação efectiva da realização concebida pelo espírito de Pery de Linde cerca-nos, pois nos países vizinhos e para além dos da África Austral multiplicam-se as manchas de beleza viva que são as inúmeras áreas sob reserva e pelos mais diversos fins e graus, quer individualizados quer comuns para a fauna, a flora, o solo e os monumentos naturais.
Pery de Linde soube proteger os animais por lei completa, conservando o seu natural «habitat» para paralela protecção da flora. Seguiu, assim, o maravilhoso exemplo do presidente Kruger, que já em 1884 propunha que a fauna e a flora fossem protegidas em áreas especiais, estabelecidas para esse fim, e com o intuito de eliminar do seu território a ameaça constante que era para o desenvolvimento da agricultura e da indústria a presença dos animais selvagens apenas mantidos por leis de protecção directa.
Em 24 de Dezembro de 1935, no Boletim Oficial n.° 52 desta província, foi publicado o Decreto n.° 26 076, datado de 21 de Novembro do mesmo ano, que aprovou o novo regulamento de caça para vigorar no território sob a administração da Companhia de Moçambique. O art. 10.º do Decreto em causa considera a «Reserva da Gorongosa» e altera os seus limites, pelo que passou a ter a área de cerca de 3200 km2.
Era então Ministro do Ultramar o Dr. José Silvestre Ferreira Bossa, antigo secretário-geral da referida companhia, que, como tal, também havia percorrido a área da circunscrição da Gorongosa e reconhecido a imensidão da sua riqueza faunística.
Já antes tínhamos tomado parte na I Conferência para a Protecção da Faunae da Flora Africanas, realizada em Londres, que terminou pela assinatura, em 8 de Novembro de 1933, de uma Convenção, na qual, entre mais, nos obrigámos à constituição de «reservas naturais» e «parques nacionais», um dos principais objectivos da Conferência.
Já então, mas mais agora, os problemas da conservação da vida selvagem, relativa à fauna, flora e seu «habitat» em África, eram da maior importância, dada a acelerada percentagem de destruição, devida essencialmente à abertura do Continente à colonização, a qual coincidiu com o alargamento da agricultura e sobretudo da agricultura industrial e bem assim da criação das espécies domésticas; ao aperfeiçoamento dos meios de transporte, das armas de fogo, engenhos de caça e de captura e sua multiplicação, os quais abriram mercado ao novo comércio da carne dos animais selvagens e outras actividades, desde o comércio de mais despojos e troféus até à curiosidade do homem evoluído, apresentada sob a forma lucrativa do «turismo»; e à afirmação de que muitos dos animais da fauna selvagem, sobretudo os grandes herbívoros, destruíam as culturas, bem como à acusação de algumas espécies serem o vector e o reservatório responsável de muitas das doenças dos animais domésticos e mesmo do Homem, causa dos massacres muitas vezes praticados em numerosas regiões, desordenadamente e sem fundamento.
Pery de Linde não foi apenas um indivíduo sensível, mas sim um governante que ao seu sentir soube aliar o estudo fundamentado, quanto mais não fosse, nos trabalhos publicados na vizinha Africa do Sul, onde as primeiras instruções foram de Van Ríebeck e datam de 1677. Talvez que a criação naquele território, em 1897, de várias reservas, entre as quais a do «Sábiè», presentemente o Parque Nacional Kruger, que certamente visitou, tenha sido uma das premissas que o levou à criação da «Reserva da Gorongosa».
A projecção do pensamento exposto, das ocorrências e das realizações consequentes provocou sucessivas reuniões internacionais de alto nível, em que cada vez mais se evidencia que a vida animal selvagem é potencialmente um dos mais valiosos e sempre renovados campos naturais, que podem ser inteligentemente utilizados para benefício dos países que ainda os possuem.
Seguindo o exemplo dado por João Pery de Linde, criaram-se em Moçambique, em épocas diversas, outras reservas; fixaram-se mais medidas de protecção e conservação; e foi progressivamente aumen- tada a «Reserva da Gorongosa», em redor da qual se constituiu uma larga cintura de protecção, formada por outras reservas e por coutadas.
Só em 1960 é que a culminância do pensamento de Pery de Linde, transmitido pelo seu inteligente despacho de 18 de Outubro de 1920, foi alcançada, por governante de igual sensibilidade, ao aceitar proposta fundamentada da Direcção dos Serviços de Veterinária, fez criar o Parque Nacional da Gorongosa, com a área de cerca de 5300 km*.
O Parque Nacional da Gorongosa é um campo cultural único, tendo não só valor nacional mas também internacional notável, como o têm todos os demais «parques nacionais» de qualquer território, Como as magníficas catedrais, os templos das religiões asiáticas ou as históricas cidades de arte, eles são parte da rica herança dos homens civilizados e deveriam ser conservados em custódia para gerações futurai. Como museus vivos de história natural, os «parques nacionais», africanos em particular, são as mais espectaculares áreas no seu género, inapagáveis exemplos sem comparação com os de qualquer outro continente.
Sendo o Parque Nacional da Gorongosa uma «área reservada para propagação, protecção e conservação da vida animal selvagem e da vegetação espontânea e ainda para conservação de objectos de interesse estético, em benefício e para recreação do público, e nas quais é proibido caçar, abater ou capturar animais e destruir ou colher plantas, salvo por iniciativa ou sob fiscalização das autoridades respectivas», dadas as possibilidades educacionais que oferece, deve transformar-se em objecto de orgulho nacional e ser do interesse de todo o cidadão deste território, que tem a sorte de possuí-lo.
Pery de Linde soube reservar-nos o espectáculo de um arraial de animais no seu «habitat» natural, um dos mais belos que se vêem na Terra.
À sua iniciativa deve-se um reconhecimento profundo, pois preservou-nos da destruição uma área tão apreciada por quantos compartilham a opinião de que os «parques nacionais» são, aquém aas razões científicas que os criam, um investimento económico destacado, pela razão de que as exigências mundiais sobre actividades recreativas deste género sobem rapidamente.
As belezas naturais, constituindo uma das melhores fontes de inspiração da vida espiritual e um quadro indispensável às necessidades psicológicas criadas por uma existência cada vez mais mecanizada, podem ali ser observadas e vividas.
O progresso, possibilitou-nos a descoberta ea colocação em obrade meios cada vez mais poderosos parase exploraram os recursos naturais. E, assim, a conservação do solo, das águas, da cobertura vegetal da fauna, dos sítios naturais ainda intactos e das paisagens características apresenta uma importância capital dos pontos de vista económico, social, científico, cultural e recreativo.
O empobrecimento progressivo dos recursos naturais conduzirá inevitavelmente a um abaixamento da sanidade da vida corrente.
Contudo, este empobrecimento não é incombatível e poderá ser freado, na condição de se persuadir o homem da estreita dependência em que está relativamente àqueles recursos e da necessidade de salvaguardar a Natureza e de não explorar as suas dádivas senão de maneira a garantir a prosperidade das sociedades.
A conservação e a protecção da Natureza e dos seus recursos apresentam-se, pois, de uma importância vital para todos os povos, e podem as organizações internacionais consagrar-se essencialmente a estes fins, destacadamente os do turismo, assim trazendo uma ajuda eficaz aos Governos na manutenção, alargamento e criação de obras como a que João Pery de Linde traçou em 18 de Outubro de 1920.
A redução ou destruição dos «parques nacionais», neste caso o da Gorongosa, seria uma profunda perda de nível mundial, mas também será um perigo imenso se o seu valor económico, científico e recreativo for encarado sem coesão ou só considerado tardiamente.
A Pery de Linde, governador ilustre do Território de Manica e Sofala que já deu nome a Vila Pery por vontade unânime dos seus habitantes como justo reconhecimento, nesta data, 48 anos passados para além do 18 de Outubro de 1920, a homenagem de gratidão de Moçambique.
In: Ultramar.- vol. VIII, nº 31, (1º trim. 1968), p. 157-161
Em tempo: Será que os actuais responsáveis do Parque Nacional da Gorongosa se lembrarão de que farão 1oo anos em 18 de Outubro de 2020 que Pery de Linde mandou, "com elevada sensibilidade e superior visão, por despacho, reservar parte da circunscrição da Gorongosa para usufruto único dessa fauna, e determinou aos respectivos Serviços de Agrimensura o estudo da área e consequente demarcação." Foi a 18 de Outubro de 1920.