EDITORIAL
Cerca de duas dezenas de moçambicanos tiveram a suas vidas ceifadas com requinte de brutalidade materializada por decapitação, em diferentes pontos da província de Cabo Delgado. Até aqui, não há garantia de que esses actos bárbaros não continuarão a acontecer. E tão certo quanto, ate aqui, não conhecemos qual e a opinião oficial do Governo sobre o que está a acontecer e qual a medida de resposta.
E, infelizmente, as fundações deste pais repousam sobre estruturas de violência que se recusam a constar apenas nos anais da História, por haver alguém que faça dessa violência o presente que hoje se vive e, muito provavelmente, a violência a nossa perspectiva do futuro. Se a isso se pode chamar nosso azar colectivo, pouco importa. Mas, se invocarmos algum argumento de má sorte, certamente que faz sentido a ideia de que o país se habituou aos heróis da violência.
Hoje, choramos os nossos irmãos vítimas da selvajaria que é servida em Cabo Delgado, mas, ontem, também chorámos as outras. Infelizmente, andamos aqui num festival de sadismo, em que decapitações são matéria corrente. Quem devia garantir segurança, continua calado, e o país não pára para questionar. É como se houvesse um acordo de resignação nacional
Mas, se ainda se pode justificar a ausência de muitos elementos para uma análise mais rigorosa do que se está a passar em Cabo Delgado, pelo menos o mesmo não se pode dizer para não analisar a reacção oficial em relação ao que se esta a passar e tentar compreender de que lado da coisa anda a militar quem nos governa.
A comunicação do Governo está a falhar a todos os níveis nesta crise. Até aqui, não se conhece a opinião do Presidente da República, que jurou servir o povo, numa situação em que é ao povo, o tal "patrão", a quem é arrancada a cabeça com objectos contundentes. É muito estranho que o Presidente da República não tenha opinião sobre isso.
Toma-se preocupante quando um Presidente da República preside a uma reunião do Conselho de Ministros e o porta-voz vem cá fora dizer que não se lhe oferece prestar qualquer declaração sobre o que está a acontecer em Cabo Delgado, porque simplesmente o Governo não tratou dessas matérias Certamente que qualquer cidadão de capacidade craniana média deve ter-se apercebido de que alguma coisa não vai bem neste Governo.
É que é incompreensível, a todos os níveis, que um Conselho de Ministros de um país sério reúna sem fazer referência á onda de decapitações que está a ocorrer numa província Se, no dia em que um cidadão atropelou cerca de vinte pessoas, o Presidente da República até foi prestar solidariedade às famílias, como é que o mesmo Presidente da República não diz palavra sobre cerca de vinte pessoas mortas não acidentalmente, mas por decapitação, numa cruzada insana que se revela acima do poder do Estado.
Cumpre-nos perguntar: quais são os critérios que o Presidente da Republica está a usar para que uns, que foram vitimas de um acidente, mereçam luto nacional., e outros, que estão a ser decapitados - por falta de segurança, ou seja, por uma omissão activa do Estado - mereçam apenas que o Presidente da República esteja mudo? Alguma coisa de grave se está aqui a passar, e não se trata de ponderação nem de qualquer outra figura de valor equiparado. Alguma coisa de estranha se está a passar com o Presidente da Republica e com o Governo.
O mais grave, nisto, é ter o Governo a dizer que esses crimes são crimes de delito comum e casos de Esquadra de Polícia. É de uma infantilidade assustadora. Não parece que seja por ingenuidade que não haja uma mente em todo o Governo, que se tenha apercebido que estamos perante ataques terroristas. Isto ultrapassa Esquadras e Policias de protecção.
Mas este é apenas o lado da actuação do Estado. A nível inferior, está a ser forjado um discurso contra a religião, para explicar um fenómeno que nada tem de religião. É muito estranho que as estruturas inferiores do Estado estejam a disseminar a ideia de que esses ataques bárbaros tenham algo a ver com o Islão, numa zona em que, historicamente, o Islão é a fé da maior parte dos moçambicanos que lá vivem.
Na nossa opinião, esse argumento sobre a religião tem o objectivo de nos desviar do essencial nesta questão. Custa-nos acreditar haja alguma doutrina islâmica que pregue a decapitação de outro ser vivente, pois isso é alheio á dinâmica de qualquer religião. Aliás, quem nos garante que, entre os decapitados, não existem muçulmanos? Colar a estes ataques o rótulo "islâmico" é esconder o verdadeiro problema e provocar um rastilho que facilmente pode caminhar para a pólvora do ódio e da intolerância religiosa. Qual é o objectivo que se pretende? Transformar os muçulmanos em "os maus da fita"?
Estamos preparados para, depois, pagar a factura das guerras religiosas neste pais? Não basta já a destruição de mesquitas que irresponsavelmente foi levada a cabo, sob o pretexto de que albergavam os assassinos.
Aquilo sobre o que não se fala, em tudo isto, é provavelmente o mais importante é que os documentos do plano de segurança marítimo e costeiro (relacionado com as dividas ocultas) já fazia referência a um alegado potencial de ataques terroristas, que deviam ser neutralizados ainda em estado latente, e que a grande bandeira do plano de protecção costeira que nos endividou era neutralizar ameaças dessa natureza Alguém já se questionou como é que, estando essas empresas com níveis de impopularidade muito elevados, exactamente nesse mesmo período concretiza-se uma das ameaças que eram mencionadas na justificação do plano de negócios.
Não andamos, aqui, com teorias de conspiração, mas todas estas coincidências fazem-nos pensar que estamos prestes a entrar numa espiral de destruição do pouco que nos resta como país, numa concordata entre os bandidos de fora, especialistas em fabricar crises onde há recursos, e os bandidos cá de casa, que estão sempre dispostos a recorrerem a todos os meios para conseguirem ter a maior quantidade de dinheiro possível nos seus bolsos.
É preciso lembrar que a Somália está como está porque os bandidos de fora aliaram-se aos bandidos somalianos e transformaram a Somália num país em que ninguém quer viver. A questão é: estamos a chegar a esse ponto. As ganâncias nacionais atingiram o nível de encomendar umas decapitações para espalhar terror e legitimar intervenções estranhas, para pagarmos com os nossos recursos? É por aí que decidimos enveredar? Ainda há tempo, temos tempo de pensar nesse grande erro que estamos prestes a cometer. Os moçambicanos que estão a ser decapitados são alheios a todos esses jogos de ganâncias e conspirações. São moçambicanos que só querem ter um prato de comida à sua mesa, com dieta à sua maneira, e desenvolver as suas actividades normalmente. Que erros cometeram esses moçambicanos? Vamos continuar a olhá-los apenas como coeficiente das ganâncias nacionais e estrangeiras? A resposta é "não". Isto tem de parar. Quem encomendou essas ideias, conspiração ou não, deve parar!
CANAL DE MOÇAMBIQUE – 15.06.2018