Os nervos continuam à flor da pele na província de Cabo Delgado depois de os mais recentes ataques a aldeias remotas terem matado 35 a 40 habitantes desde o último domingo de maio.
Os sócios de um supermercado em Pemba, capital provincial, são suspeitos de ter simulado um assalto no dia 13 de junho para encobrir um desvio de verbas, numa encenação que envolveu disparos para caixotes vazios, onde estariam os supostos bandidos – mas onde afinal não havia ninguém.
A polícia, no local, anunciou que se tratava de um falso alarme, mas ainda hoje se podem consultar textos em portais na Internet, falando de um ataque com dois mortos, entre reféns.
No dia, o susto levou outras instituições da cidade a fechar portas temporariamente, alimentando rumores de que o alegado grupo que tem aterrorizado aldeias isoladas mais a norte tinha chegado a Pemba.
“Houve gente que me disse ter ouvido rajadas de metralhadora”, que nunca aconteceram, disse à Lusa uma empresária portuguesa em Cabo Delgado que nessa manhã pegou no telefone para procurar obter informações.
A desinformação, refere, ilustra o nervosismo.
Um dos últimos ataques que se suspeita ser da autoria de grupos escondidos no mato aconteceu em Natugo, distrito de Macomia, aldeia junto à qual um homem foi encontrado morto, com golpes de catana.
Dias antes, no mesmo distrito, aconteceu um dos mais destrutivos atos da vaga de violência, um ataque que provocou sete mortos e arrasou parte de uma aldeia, Naunde, com 164 casas tradicionais (em blocos de barro, estacas e capim) incendiadas, deixando 760 pessoas desalojadas.
“Ladrão, ladrão”, foram os primeiros gritos que irromperam na noite, pelas 23:00 de 04 de junho, recorda Mariana Abedi, 62 anos, chefe da localidade de Naunde.
Dois homens acudiram à chamada, mas começaram a ser atacados com catanas e ouviu-se um novo grito de alguém que assistia a tudo: “Guerra. A guerra já entrou”.
Os outros habitantes acordaram, saíram de casa com “azagaias [lanças] e catanas”, prontos a agir, recorda Maurício Miranda, primeiro secretário da povoação, mas os agressores “dispararam armas de fogo” e os que tentavam defender Naunde ficaram “descontrolados”.
As habitações foram saqueadas e depois incendiadas num cenário de confusão em que “não se via nada, ainda não havia lua”, refere Mariana, que retém a imagem de caos com “crianças a correr, sem os pais”.
Sete pessoas foram assassinadas: três decapitadas, uma degolada e outras três golpeadas com catanas até caírem ao chão.
Os cinco carros que ligavam a Mucojo, povoação mais próxima, e a Macomia, sede de distrito, foram incendiados.
A parte central de Naunde é hoje um tapete de uma ponta à outra da aldeia, de pedras e barro cinzento, estilhaçado, misturado com cinzas de colmo e estacas de madeira, chão que ainda cheira a queimado.
Moradores cozinham, trabalham no meio dos destroços, dormem ao relento, observam a destruição que os rodeia com a mesma incapacidade da noite em tiveram de esperar que as chamas parassem, porque não tinham como as apagar e o vento soprava forte, conta Mariana.
Questionada sobre a origem do mal, a chefe da localidade refere que os autores “são filhos que conhecem Naunde”.
“São pessoas como nós”, porque ninguém entra como eles entraram “sem conhecer a casa”, acrescenta.
“Nunca suspeitámos que viviam aqui, nunca houve nada” que suscitasse desconfiança.
Capulanas, comida e materiais de construção são doações que vão chegando, ao mesmo tempo que regressam os moradores deslocados pelo medo.
Um medo crescente porque, dois dias depois, a 06 de junho, ardeu Namaluco, alguns quilómetros a sul, com 200 habitações destruídas – e mesmo que tudo se reconstrua foi semeado um sentimento de insegurança que chega à sede de distrito, Macomia, a mais de 50 quilómetros por estradas acidentadas em terra batida.
Pelos caminhos percorridos, a Lusa encontra militares estacionados em três locais, com armas de fogo e viaturas e sem adiantarem pormenores – apesar das tentativas, outros contactos com as autoridades não tiveram resultado.
Shebane Shea, jovem que enche garrafinhas de plástico com óleo alimentar para venda no mercado, no centro da vila de Macomia, passa noites em claro.
“Cheguei a dormir no mato, numa noite em que corriam rumores aqui no mercado que ia haver um ataque” à vila, conta à Lusa, ao explicar que é preferível estar ao relento para não ser apanhado em casa, que alguém podem incendiar.
Jacinta Medi também dorme fora de casa e já nem a roupa tira, adormece tal como está trajada ali no mercado, de túnica e lenço à cabeça – e o marido segue-lhe o exemplo.
“Não há tempo para namorar com esses ataques”, conta.
Suleimane Namanca, agricultor, queria armas para combater “essa Al-Shabaab, mas o governo não as dá”, lamenta, acreditando que só com uma debaixo da almofada voltaria a dormir bem.
Anastácia Jerónimo é natural de Nampula, capital provincial a cerca de 500 quilómetros para sul e faz negócio no mercado de Macomia com o marido, tanzaniano.
“A minha mãe sempre chora”, conta Anastácia, mãe que não quer ver a filha rumar àquelas terras a norte.
Sinan Jamal passou a abrir a banca de fritos mais tarde.
Chegava a fazer negócio a partir das 05:00, mas agora abre só depois das 07:00.
Sabe que a polícia anda pelas ruas durante a noite a proteger a população, mas confessa ter sono leve: “Os meus ouvidos estão sempre lá fora, à escuta”.
LUSA – 23.06.2018