Canal de Opinião por Adelino Timóteo
Nunca mais tornei a vê-lo, desde que furou a fronteira, para o Zimbabwe. Mas deixou-me uma confissão encravada na garganta, que não sei se devo revelá-la. No pico dos cruentos anos de carência, costumávamos sentar-nos aos muros e o sonho dos mais velhos era o de abrir.
Abrir significava evadir-se da realidade, partir para uma outra terra abastada, longínqua. E esse longe era o John ou o Zimbabwe. Era o mais tall do bairro. Desengonçado tinha para aí dois metros. Curioso, por mais incrível que pareça, era um dos guarda-redes do clube do bairro. Entre os postes, todas as bolas de cima ele as apanhava. As que lhe disferiam rente à relva, nos rés da terra, era um desastre, pois as mãos guardavam-lhe muita distância ao chão.
Alguém lhe descobriu a fífia e foi o prenúncio do fim da sua carreira. Ainda assim, via-lhe a treinar no Desportivo do Esturro, com o Marcelino, o Custódio, o Gimo e o João Gordo. Anos 80.
O clube tinha a sua sede social mesmo aí na Rua do Cabo Verde. Era uma madeira-e-zinco. Uma casa antes da esquina, pela qual lhe atravessa uma rua em toda a sua extensão, até dar à Armando Tivane, a Sansão Mutemba, antigo Ciclo Baltazar de Sousa, nas barbas dos Pais Ramos. Pois, o Marcelino e o Menodje costumavam-me levar para aquele clube. Era um entre muitos que havia na Beira.
Algures, ainda no Esturro, havia ainda o Rebenta Fogo. Uma praga de desportivos infestava a urbe: o Desportivo Unidos, aí na Avenida Alfredo Lawley, no Matacuane, e muito próximo ao Madjone, donde vivia a tia Celeste e o tio Manecas, o Desportivo do Matacuane. Nos Palmeiras 2, num apartamento, ora convertido numa clínica veterinária, lá estava o Clube os Onze irmãos. De que me lembro, Os onze irmãos pifaram depois de uma goleada a sério: Dez a zero.
O Nova Mahonga, que se reunia no Golfo, era também um ex-libris, com o seu guarda-redes Ezequiel. Nós rodávamos a Beira. A nós, como petizada, conhecer o portofólio dos clubes se impunha como cultura geral. Talvez vem daqui o meu amor pela cidade, pois na febre de me cultivar, fui amando os seus nomes e lugares. Era a maior cidade do mundo. Tinha os melhores neóns. Tinha os melhores jogadores do planeta terra. O Jordão apresentou-me o tio, o Zé Maria, que morava aí no Esturro e que jogara no Desportivo do Matacuane. E me falara que fora uma estrela. “Mas nunca ouvi falar desse nome”, atalhei eu. “Existiu”. “Palavra?!” “Palavra de ouro, desça-me cinquenta judas dos céus!” Eu lhe tinha pena, porque Zé Maria já andava num carrinho de rodas.
“Em que posição ele jogava?” – perguntei-lhe. “Era atacante. Quando rematava para baliza os guarda-redes só viam cobras no chão, e era golo”. A sua história era um mistério. Ainda o visitámos muitas vezes, para o ouvir falar de futebol. Em casa tinha fotos e um palmarés de troféus. Recordo-me que Zé Maria nos contou, que se tornara paraplégico porque no Ferroviário da Manga, onde os indígenas tinham um seu sub-campeonato, sucediam mistérios, de magia negra.
Era a magia negra de um clube que jogava com o outro, naquela copa. E como ele fora um avançado de talento, lhe fizeram um cuxo-cuxo superior, que o deitou em desgraça, paralisando-lhe os dois pés.
Todavia, os mais astutos clubes indígenas conseguiam feitiços no Malawi, de que se contava, o seu presidente, o Ngwazi, prescindira do serviço militar, porque tinha um terrível exército de abelhas, muito activas na persecução do inimigo, até ao último esconderijo.
E por falar em cuxo-cuxo, quando íamos aos treinos do Desportivo do Esturro, o Menodje costumava deixar comigo a sua pasta de pertences. Dizia-me que a podia abrir, mas nunca me animava a tal. Insistiu-me que o fizesse com cuidado, senão ele ia parar à cadeia. Naquele dia, seduzido pelos tentadores apelos, escondi-me muito bem a um canto e abri-a. Foi que encontrei uma revista com fotografias de mulheres e homens em poses indizíveis. Entre assombrado e envergonhado, vi-me com as virilhas acesas, e quando começava a ficar de pau feito, guardei o livro, pois envergonhado daquilo, que nunca me sucedera antes.
Desviei totalmente a atenção porque a equipa do bairro começava a perder. O dentuço do Menodje muito raramente defendia as cores do bairro. Mas neste dia, depois que guardei o livro e me advertir, cá para os meus botões, a manter-me de bico fechado, porque a vigilância andava à solta, nunca pensei que seria o último, em que assistiria o tal do nosso guarda-redes Castro jogar. O caldeirão ficava aí onde é hoje o estaleiro das TDM e da Televisa. Abrimos aquilo à mão. Chegaram os capitalistas e os tomaram. Neste dia ainda, Jogavam os do Macurungo contra os Brasileiros, da Rio Vivenda Construtora. Os Brasileiros eram bué craques, mas nem por isso, menos temerosos, porque o bairro contava com jogadores de nomeada.
Eram os melhores jogadores de Moçambique. Já o Pepe fora para Maputo e decidiu-se por alinhar o Castro Menodje, nos postes, porque tanto o Jossias como o André, que eram bons guarda-redes, faziam a tropa. E o Hibe, que também era muito bom guarda-redes, não sei o que andaria a fazer.
O clube do bairro contava com jogadores de craveira internacional, que alinhavam em clubes federados, capazes de desmistificar a fama e a invencibilidade dos brasileiros: o Simão, o Angito, o Luís e Carlitos, o Ziquibo, o Lucas, o Escriva, o Joãozinho e o Felisberto. (Adelino Timóteo)
CANALMOZ – 24.07.2018