EDITORIAL
Analisando mais friamente o acórdão do Conselho Constitucional que chumbou a cadidatura de Venâncio Mondlane, duas particularidades são de reter. A primeira é a de um descompromisso total e completo daquele Conselho com os factores determinantes da economia política nacional.
Esses factores determinantes passam inevitavelmente pelo exercício da busca pela pacificação do país e de uma cultura de reconciliação nacional, em que cada acto do Estado, sendo ele controlado por um dos contendores, deve acenar à outra parte essa vontade de abraçar o outro, de forma suficiente para se enterrarem os machados de guerra.
E isto não é nenhum convite ao avacalhamento da lei ordinária e constitucional para acomodar seja o que for, mas uma chamada à consciência, para que os testes de extremismo não voltem a incendiar um país já em si em estado de permanente de pré-ebolição. A segunda particularidade é essa ciência da conveniência legal a que as instituições do Estado se prestam, sempre que são chamadas a fazer qualquer exercício de hermenêutica da lei.
A cultura da interpretação e aplicação vingativa da lei por instituições do Estado é um sintoma de extremismo político, em que tudo feito é com inspiração na má-fé e de um “bota-abaixismo” sem paralelo. Sempre que se convoca uma hermenêutica da lei, aí já estamos todos preparados para que a interpretação seja feita de forma a defender o mais caninamente possível os interesses do partido Frelimo.
Certamente que a turba defensora dessas acções poderá perfilar-se para dizer que o Conselho Constitucional só aplicou a lei, e que opartido Renamo, por imperícia ou incompetência, instruiu mal um processo de reclamação eleitoral, fazendo um pedido de declaração de inconstitucionalidade onde não devia. Pois é verdade, como também está coberto de verdade o postulado de que o excesso de legalismo do tipo “pente fino” só é aplicável quando for para esfolar a oposição.
O que é que o Conselho Constitucional perdia – não em fazer vista grossa, que, no caso, nem seria necessária, – se interpretasse o requerimento da Renamo no espírito da sua intenção que é do domínio público, sendo também de ciência que as leis têm como o fim último a paz social? O Conselho Constitucional não perdia nada, tal como não violaria nenhuma lei, fazendo notar, na sua apreciação, que, embora o requerimento tenha sido mal formulado (aqui é preciso dizer que é um exagero o emprego da palavra “mal”), os doutos juízes daquele Conselho decidiram analisar a questão principal, para a salvaguarda de um bem maior, que é o direito à participação política que concorre para três objectivos consagrados constitucionalmente, que são o reforço da democracia, a tolerância e a cultura de paz.
Julgar meros detalhes processuais como questão principal, perante um pedido cuja não apreciação tem potencial de causar enormes danos à democracia e à paz, é de uma irresponsabilidade colossal. Mas, aí está, é um acto não acidental da parte dos juízes do Conselho Constitucional.
É um acto que cumpre a parte final de um ritual satânico cujos actos preparatórios já haviam começado na Procuradoria-Geral da República, quando Venâncio Mondlane foi chamado simplesmente para ser intimidado e, logo a seguir, para lhe ser rejeitada a candidatura na Comissão Nacional de Eleições. E, mais tarde, a quem cabia colocar bom senso neste festival de extremismo e intolerância, fez o pior. Cumpre-nos, então, colocar a questão mais importante: como é que pretendem reforçar a democracia e cultivar uma cultura de tolerância e paz, se, sempre que há eleições, o próprio Estado é usado como instrumento de administração do ostracismo político dos outros?
Reduzir essas rejeições a meros erros processuais é jogar o jogo antidemocrático.
Este processo eleitoral para o qual o Conselho Constitucional foi chamado, para arbitrar as reclamações, está a ser organizado à luz de uma lei que foi produto de um debate que só foi convocado a tiro, em que vários moçambicanos morreram, e toda uma economia foi paralisada. Assim sendo, o processo eleitoral para o qual vamos, ou nele já estamos propriamente, era um teste para aferirmos se todo o diálogo que está a ser feito é, ou não, de boa-fé, o suficiente para se esquecerem as matanças do passado recente e adoptar-se uma agenda civilizada, em que todos somos o país, independentemente das diferenças de pensamento.
Com uma negociação a decorrer em que a palavra-de-ordem é a confiança, muito por culpa do cinismo e da falsidade do passado recente, em que há apelo para todos termos acções de paz, a maior contribuição que o partido Frelimo consegue trazer é instrumentalizar o Conselho Constitucional e a Comissão Nacional de Eleições para rejeitarem a candidatura do seu adversário de armas, mantendo a expectativa de que a outra parte assuma isso como um acto de demonstração de calorosa aproximação.
Tudo indica que o Conselho Constitucional e os seus donos não vivem no mesmo país que foi sacudido por uma guerra civil recente, a que o léxico governamental chama “crise político-militar”.
Os juízes do Conselho Constitucional vivem uma outra realidade, exterior a todos esses factores determinantes, ao ponto de pouco se importar se as suas acções deterioram a estabilidade e harmonia social que está escrita na Constituição da República. Para que nos serve um Conselho Constitucional cuja actuação coloca em causa a paz e rasga os pactos da sua manutenção através de actos manifestamente intolerantes, travestidos de cumprimento escrupuloso da lei?
Uma implementação robótica da lei, que ignora a realidade sobre a qual essa lei será aplicada e os seus efeitos, anula completamente o espírito científico dessa lei. De todas as formas, o que se evidencia aqui é um partido Frelimo pouco interessado na paz, a fazer números de cinismo, simulando querer a reconciliação, quando, por outro lado, age com um extremismo a roçar o fascismo. Resta-nos saber como é que fica a conversa da paz e reconciliação.
P.S.: A reacção da Renamo ao acórdão do Conselho Constitucional é mais assustadora ainda e contraria completamente tudo o que anda a defender. Uma Renamo que não é capaz de defender os seus próprios membros contra a máquina político-aniquiladora também revela aonde esse partido está a ir. (Canal de Moçambique)
CANALMOZ – 18.09.2018