A prisão do ex-Ministro das Finanças, Manuel Chang, é como que um abalo sísmico para a nossa elite política. Mas também um atestado de irrelevância para a nossa Justiça. Chang foi preso na África do Sul, a mando da justiça americana. Chang foi preso no OR Tambo, em Joanesburgo, onde estava em trânsito para o Dubai, onde boa parte do dinheiro sem rasto da dívida oculta foi guardado. Ele foi o Ministro desse sinistro endividamento, que levou este país ao descalabro. Com ele, uma franja enorme de dirigentes, sob a tutela do ex-Presidente Armando Guebuza, enriqueceu e os moçambicanos ficaram mais pobres.
A prisão de Chang é hoje motivo de celebração para muitos moçambicanos afectados. Celebra-se sobretudo porque parece estarmos perante o início do fim da impunidade de quem andou a delapidar o Estado à custa do bem comum. No entanto, Chang ainda é apenas um suspeito. Como ele, são tantas as eminências pardas que ao longo destes anos desfilaram nos corredores aveludados da política local, enriquecendo ilicitamente: governantes, ex-ministros e ex-PCAs, lobistas de todo o jaez, que conseguiram o passaporte da impunidade sob a cobertura de um partido, a Frelimo, que trocou a sua vocação popular tornando-se num clube de traficâncias e compra e venda de indultos sem responsabilidade criminal.
A prisão de Chang é um golpe pesado nessa teia de cumplicidades. Muitos dos que beneficiaram do roubo estão agora receosos do que lhes pode vir a acontecer. A cortina de protecção esfumou-se. E todos se reduziram agora à sua mortal insignificância, o mundo desabando sobre suas ganâncias. Hoje, olhando para trás, muitos se interrogam cinicamente sobre se não teria sido melhor a elite política ter iniciado um processo endógeno de responsabilização, à nossa habitual maneira manipulada. Ter-se-ia preso uns tantos envolvidos, recuperados alguns activos e, através desse gesto de responsabilização, ainda que teatral, acenado aos doadores do Orçamento do Estado, que eventualmente retomariam o apoio e o país escaparia desta crise tremenda. Uns anitos depois e os ladrões seriam indultados legalmente. Mas a Frelimo preferiu arrastar as coisas, manipulando uma PGR acéfala, protelando a justiça com o seu tique próprio de arrogância e pretensão ditatorial.
Agora, parece tarde demais. E as consequências estão à vista.
A primeira consequência é de dimensão penal. Manuel Chang vai ter que fazer uma delação premiada (“plea bargain”), partilhando muito do que sabe sobre a acumulação corrupta de riqueza no quadro da dívida oculta e doutras artimanhas de enriquecimento ilícito, usando moeda americana. Não que os americanos não saibam. O FBI já tem informação cabal sobre quem prevaricou e encheu os bolsos com dinheiro alheio. Seja ele das dívidas, do tráfico de drogas, das mafias ou de qualquer outra manigância de depredação do Estado. Um acordo de delação com Chang seria apenas para incluir, no leque dos seus informantes, uma das figuras centrais da recente delapidação financeira de Moçambique. Prender Chang primeiro foi estratégico porque ele é o pilar, que sabe tudo.
Por outro Chang não tem muita escolha. Com 63 anos, até é provável que já tenha feito um acordo com o FBI: aceitar ser preso em Joanesburgo, fora da jurisdição moçambicana (e, portanto, evitando sofrer um acidente estranho). E se ele foi preso por acordo, é provável que já tenha “derramado todo o feijão”, garantindo uma pena menor ou mesmo evitando ir a Tribunal, mas revelando com detalhe como o esquema revelante para a investigação foi urdido e o grau do envolvimento de cada eminência. Seja como for, daqui em diante ninguém dentro dessa elite vai dormir tranquilamente. Ou viajar para fora de Moçambique. Nos cafés de Maputo e no subconsciente dos implicados, uma pergunta não cala. Quem será próximo – eis a questão. Alguns começam a dar conta que afinal a impunidade não valeu a pena. Foi como trocar uns anitos nas mansas masmorras da Machava por décadas de confinamento numa prisão federal de alta segurança. A justiça negada à leve maneira moçambicana está agora chegando com os modos sagazes do sistema penitenciário americano.
Outra consequência é de ordem política. Tudo o que vier agora depois de Chang terá implicações negativas para a já desgastada imagem da Frelimo. Por isso não vale a pena festejar, com álcool a rodos e tiros ao ar. O partido, que apadrinhou a impunidade desde a transição para a democracia, com estranhas maneiras de proteção recíproca entre suas elites, vai sair beliscado. A pré-campanha está aí à porta. Se há bem pouco tempo o Presidente Nyusi apresentava-se como o único candidato legítimo à eleição pela Frelimo, o impacto da detenção de Chang sobre a sua presidência, sobretudo pela forma como ela veio protelando a responsabilização criminal, é devastador e tira-lhe uma boa dose de legitimidade.
O equilíbrio de forças dentro da Frelimo vai perder solidez. A antiga família presidencial já anda vivendo um alvoroço. Não sabem o que está a acontecer. E estão com medo. E se a perspectiva de que Chang foi entregue aos americanos, como já é suspeito nalguns círculos, ganhar um sólido corpo de evidências, o PR Filipe Nyusi vai ser amplamente contestado, havendo até quem lhe quererá arrastar para a lama. Outros, por causa de sua assinatura (de Filipe Nyusi) apensa aos documentos do endividamento, vão tentar apontar-lhe a porta de saída. Nas próximas semanas, veremos uma Frelimo ao rubro. Com uma guerrilha interna aberta como nunca. E uma imagem pública nas ruas da amargura, à entrada das eleições mais decisivas para a sua manutenção no poder.
Filipe Nyusi até podia tentar reverter o dilema dessa imagem desgastada, trazendo ao público um novo discurso, designadamente sobre a responsabilização criminal da dívida oculta e deixando claro que, para ele, a prisão de Manuel Chang é um procedimento de justiça instrumental contra a corrupção e que até é bom para Moçambique. É provável que essa mea-culpa possa ter algum impacto positivo na sociedade, mas para ganhar a maioria no parlamento em Outubro, a Frelimo vai ter de fazer das tripas coração, tentando a todo o custo reverter a imagem já amplamente desgastada de uma formação em conluio com o saque do erário público, que aumentou vertiginosamente aquando da ascensão de Guebuza em 2005 mas que Nyusi nunca não conseguiu interromper. (Marcelo Mosse)
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