A onda de violência que vem a desenvolver-se na zona costeira de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, está associada ao extremismo religioso islâmico e começou há quase duas décadas, recordou hoje o investigador Fernando Jorge Cardoso.
Esta situação, que ganhou uma dimensão de maior escala em outubro de 2017, com os primeiros ataques violentos, “nada tem que ver com a exploração de gás na região”, afirmou à Lusa o coordenador de Estudos Estratégicos e do Desenvolvimento do Instituto Marquês de Valle Flôr e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE/IUL.
“O que está a acontecer na zona costeira a norte de Cabo Delgado não começou, contrariamente às informações, em 2017. Em 2017, começaram alguns actos de decapitação, que tiveram uma repercussão bastante forte em termos mediáticos, porque neste momento falamos de grandes investimentos de gás na mesma zona”, sublinha.
Fernando Jorge Cardoso atribui a autoria da situação a uma “seita de dentro do Islão”, que vem a actuar na região desde há cerca de duas décadas. “Em Moçambique existem três organizações islâmicas. Uma delas é apoiada financeiramente pela Arábia Saudita, às claras”, explica o investigador. Trata-se, segundo Fernando Jorge Cardoso de “um acordo feito ainda no tempo de Samora Machel, em 1981, em que o chamado Conselho Islâmico foi autorizado a receber financiamento da Arábia Saudita para avançar com a sua versão mais wahabita, mais salafista, do Islão.
Obviamente, não colocando em causa o Estado moçambicano nem se metendo nas áreas seculares” do Estado. “O que aconteceu neste Conselho Islâmico, que tem a supervisão do wahabismo, da corrente wahabita em Moçambique, foi que numa parte do conselho, particularmente representada por elementos mais jovens que tinham sido mandados estudar em madrassas [escolas religiosas islâmicas] da Arábia Saudita e de outros países islâmicos, houve uma cisão. Isto aconteceu em 2000”, afirma.
Esta “cisão”, segundo Fernando Jorge Cardoso, levou à edificação no norte de Cabo Delgado de um conjunto de mesquitas, onde começou a ser pregada uma abordagem radical do Corão e da ‘sharia’, a lei islâmica. “Seis mesquitas começaram a pregar um islão muito mais radical e houve uma primeira sublevação, em 2010, por parte da população, que queimou uma dessas mesquitas, considerando que eram demasiado radicais”, explica o investigador. “Houve ali um problema interno das interpretações do Islão, que levou a que houvesse uma reação deste tipo”, diz Fernando Jorge Cardoso, que situa neste momento o início de um processo de radicalização, “não só [no seio] do Conselho Islâmico, mas também de outras organizações islâmicas, contra esta versão mais radical do islão”, associada à violência como estratégia de “forçar a população” à adoção das suas práticas e da sua visão do Corão e da ‘sharia’.
Por isso, sublinhou o investigador, “o Conselho Islâmico de Moçambique, o tal ramo mais wahabita, incentivou e continua a incentivar uma intervenção militar do Governo na zona”. A radicalização, por outro lado, levou a que aquela facção militante moçambicana se aproximasse de elementos com a mesma visão radical do Islão no outro lado da fronteira norte do país, na Tanzânia, segundo Fernando Jorge Cardoso.
“Esta seita mais fundamentalista do wahabismo estende-se por uma região que ultrapassa o rio Rovuma, que passa para o lado da Tanzânia, e manifesta-se através de uma interpretação religiosa do Corão em que as pessoas deverão rezar descalças, deverão rezar com um punhal -- no caso, o punhal é substituído pela catana -, não deverão frequentar as escolas ocidentais - e daí dizer-se que estão ligados à questão do Boko Haram ou do Al-Shabaab, que é como a população local os chama”, explica o investigador. “Portanto, isto é um problema interno, latente, que vem de trás”, em que “os ataques são feitos contra autoridades administrativas ou contra a população, ela própria”, sublinha Fernando Jorge Cardoso.
Também não se trata de “uma insurreição dos muani”, continua, “porque os muani - um grupo ou etnia com cerca de 200 mil pessoas, que se estende pelo nordeste de Moçambique e ilhas do Ibo com ligação forte à Tanzânia, presente na própria língua; muito distinta da etnia macua, a que pertence a maioria da população de Cabo Delgado, ou maconde, que é a segunda grande etnia nessa região -- também estão a ser mortos”.
“Os objectos da violência, das decapitações e de todos estes actos são a população da área. Portanto, isto não é uma insurgência de natureza étnica ou social contra o Estado ou contra as companhias petrolíferas”, diz. “Estamos na presença de uma situação que acontece noutras partes do planeta. Não há uma tentativa de separação de parte do território ou de substituição do Governo ou mesmo de ataque a interesses económicos. O que aqui se está a passar é uma violência primária, que tem a ver com o convencimento de uma interpretação religiosa (...), começou muito antes da descoberta de gás, e também não se deve à intervenção externa de uma Arábia Saudita ou Qatar, mesmo que por interpostas entidades, ou por financiamento que venha daí”, defendeu.
“Aliás, estes grupos actuam com catanas e um ou outro elemento tem uma espingarda. Não são grupos armados. Não são grupos financiados, com material moderno, o que não quer dizer que as coisas não evoluam”, acrescenta. “Se se mantiverem durante muito tempo. É por isso que têm que ser contidas”, conclui. (Lusa)
MEDIA FAX – 23.01.2019