Por Major Manuel Bernardo Gondola
Garret Hardin [biólogo norte-americano], que já antes de Peter Singer¹ se ocupou do tema da ajuda ao desenvolvimento e do auxílio de emergência. Embora, também argumente de modo estritamente utilitarista Hardin chega a um resultado completamente oposto ao de Singer. Seu argumento em relação a ajuda emergencial as populações pobres é completamente laxista: a ajuda com recursos de subsistência e de saúde, endereçado aos pobres, contribui para que esses dêem a vida a cada vez mais crianças, sobrecarregando, dessa forma, a capacidade de sustentação de seu espaço vital. Surge, com isso, uma situação na qual será essencialmente necessário cuidar de mais famílias e enfermos do que actualmente. Hardin observa; nós [Estados Unidos e outras nações desenvolvidas] não podemos distribuir o bem-estar em partes iguais a todos povos, enquanto esses povos se reproduzem em velocidade diferenciadas. Se fizéssemos isso, conforme Hardin deixaríamos aos nossos netos, aos netos de todos nós, seguramente um mundo arruinado.
Garrett Harbin em sua tese sob título «Ética do Bote Salva -Vidas» o qual aconselho vivamente sua leitura esclarece, que os cidadãos das nações ricas são como os ocupantes de um bote salva-vidas, os cidadãos das nações pobres, são como náufragos na água, por consequência, estão condenados a se afogar [morrer] se não forem aceitos no bote. O bote advoga Hardin, já está sobrecarregado e seus ocupantes se vêem perante a alternativa ou de não aceitar mais nenhum náufrago ou de sobrecarregar o barco com a consequência de que todos se afoguem.
Na Alemanha por exemplo; também se fazem ouvir vozes, que argumentam de modo semelhante a Hardin. O neurologista e psiquiatra alemão Hoimar Von Dirfurth é um exemplo disso. Segundo ele:
“Também hoje morreram novamente 40 mil crianças, uma a cada dois segundos. Elas morreram de fome. […] Terrível? Muito pior: Se estas crianças não morrerem, se elas
não definhassem de fome no colo de suas mães, que já não têm forças nem para expressar o seu luto, se elas eventualmente sobrevivessem e até crescessem, para também terem filhos, então a catástrofe seria consideravelmente maior. […] Porque, para cada criança tomada individualmente, que hoje […] é salva, haverá na próxima geração quatro, ou cinco, ou seis crianças. E então, para preservar estes de uma miserável morte pela fome, os esforços unificados de 'Misereor' e 'Pão para o mundo' e muitos outros apadrinhamentos já não bastariam”.
Na verdade, os biólogos, via de regra são mais sensíveis para os limites de crescimento do que os profissionais de Ciências Humanas. A reflexão meramente utilitarista sobre as manifestações ecológicas colaterais do crescimento populacional por mais meritória que seja se entrelaça facilmente em paradoxos. Derek Parfit, designou a mais conhecida como conclusão: ela resulta de uma determinada interpretação da suposição de que, de duas possíveis situações de uma sociedade, deve ser preferida aquela na qual seja maior a soma total de felicidade [ou proveito]. Segundo esse princípio, uma situação B é melhor do que situação A, quando em B vive o dobro de pessoas do que em A e embora em B a qualidade de vida seja inferior à de A, essa diferença para menos é mais do que compensada pelo maior número em B. Essa comparação pode ser repetida de maneira análoga: uma situação C, na qual o tamanho da população é o dobro de B e a soma de todas as satisfações das pessoas mais do que a metade daquela que havia na situação A. Caso se volte a repetir esse tipo de comparação, pode-se finalmente postular uma situação em que a utilidade somada é maior possível, e por isso essa situação deveria ser preferida a todas as outras situações, embora nela a população [que é a mais numerosa possível] leve uma vida miserável, bem abaixo do limite de pobreza.
Essa conclusão, e eu me apoio em Parfit é absurda mas, ela resulta de um par de premissas nada absurdas entre outras a de que o padrão de vida de uma população se reduz a longo prazo, quando essa aumenta mais do que os recursos disponíveis.
Parafraseando Parfit, o tamanho de vida da população influência a soma de utilidade ou vantagem na mesma direcção e, num mundo limitado, não podem ambos crescer ilimitadamente. Você vê, considerações desse tipo não são apenas teoria cinzenta,
mas têm relevância imediata: na verdade, se numa sociedade a população aumentar constantemente, em algum momento, será atingida uma situação a partir da qual, ou o padrão de vida começa a decair ou a população deverá parar de aumentar.
Maximizar a população não significa maximizar o que é bom. Para o utilitarista, um mundo com crescimento demográfico nulo, mas com ilimitada sequência de gerações humanas é melhor do que um mundo, no qual a população cresce continuamente e desordenamento até o colapso. A comparação, entre situações populações diferenciadas é esclarecedora, uma vez que em muitos países, nos quais durante décadas a população aumentou consideravelmente, o padrão de vida realmente recuou. Na medida em que essa suposição realmente ocorre, as condições de desenvolvimento, também nos países com maior crescimento populacional, são hoje essencialmente menos dramáticas do que seriam, se os prognósticos de Thomas R. Malthus valessem.
Lembrando, que Malthus profetizou em 1798 que a população mundial aumentaria mais rapidamente do que a agricultura estaria em condições de prover, elevando a produção de meios de subsistência, mas esse prognóstico não se concretizou até hoje. Não obstante, não podem ser minimizadas as dificuldades que o contínuo crescimento populacional traz consigo em algumas regiões. Hardin recomenda, por isso, submeter a ajuda para o desenvolvimento e a ajuda emergencial a um sistema de «triagem» de modo semelhante como o faz uma equipa médica, quando os recursos médicos são escassos e nem todos os magoados poderiam ser tratados. A ideia da maximização do proveito sugere, então, ordenar em três grupos os necessitados de ajuda: no primeiro, aqueles que não sobreviveriam, mesmo se recebessem amparo médico; no segundo, aqueles que só sobreviveriam com imediato socorro médico e, no terceiro, aqueles que também sobreviveriam sem socorro médico.
Esse sistema de «triagem» e eu me apoio em Thomas Kesselring é um exemplo clássico de comprovação da tese utilitarista de que o tratamento igual de todos levaria, em casos específicos, a um resultado pior do que o tratamento desigual. E então, os feridos dos três grupos desejam que lhes seja prestado socorro. Destarte, para o primeiro grupo, socorro significa amenização da dor, talvez também prorrogação da
vida e, para os de terceiro grupo, a redução das sequelas dos ferimentos. Porém, pode-se dizer, que as medidas de salvação da vida têm prioridade, e isso vale para feridos do segundo grupo.
E se transferirmos o procedimento de «triagem» à ajuda para combater a fome no mundo e para o desenvolvimento, então incidem no primeiro grupo. Ou seja, aquelas sociedades ou países, cuja população já cresceu além da capacidade de abastecimento e cujo Governo reage de maneira incompetente a essa situação. Na verdade, Hardin os inclui no grupo dos “can’t be saved” (não se grava mas o contexto conta) dos perdidos sem condições de serem salvos, sem evidentemente revelar que nações ele tem em vista. O segundo grupo se compõe de países em que o crescimento populacional e a produção de meios de subsistência se encontram numa relação de reciprocidade inadequada, mas nos quais essa relação danosa é superada por medidas apropriadas de política populacional e agrária. No terceiro grupo, enfim, se enquadram nações com estrutura agrárias sadias e um comércio exterior suficientemente desenvolvido, as quais estão em condições de resolver por si próprias o desequilíbrio porventura existente entre tamanho da população e as capacidades de obtenção dos meios de subsistência.
Você vê, Hardin é sem dúvidas um habilidoso provocador que gosta de chocar com suas ideias quem lê seus escritos. A sua imagem sugestiva de bote salva-vidas e eu me apoio mais uma vez em Thomas Kesselring², acaba se mostrando falha a um olhar mais microscópico. Os cidadãos dos países desenvolvidos estariam antes acomodados num navio de luxo do que num bote salva-vidas. Do mesmo modo, a comparação entre a ajuda como meios de subsistência e a escolhida, num barco sobrecarregado de pessoas se afogando é um embuste. E…, para não ser chato, está provado que os cidadãos dos países altamente desenvolvidos [Ocidente/Estados Unidos] não correm absolutamente riscos maiores caso eles se empenhem para acudir os desfavorecidos por esse mundo fora. Parafraseando, António Guterres ex-Director Geral da ACNUR [hoje Secretario Geral das ONU] se eles decidirem a receber um número sempre maior de pessoas, que imigram de países mais pobres para seus países, o navio de luxo talvez ficasse sobrecarregado em algumas épocas.
Seja como for, uma imigração maciça do mundo da pobreza para os países desenvolvidos deveria, com o tempo, reduzir neste último a qualidade de vida. Todavia, Hardin não considera tal migração. O anarquista se posiciona peremptoriamente até contra a ajuda para o desenvolvimento e contra o auxílio emergencial, e isso com o argumento de que uma geração mais tarde, só haveria pessoas condenadas ao náufrago. Conforme, Hardin a única exigência que os privilegiados [nações desenvolvidas] prestem assumir consiste no facto para permanecer no quadro proposto de não lhes ser poupada a visão dos que estão afogando [morrendo]. Sem considerar que a omissão de socorro conduziria a um resultado igualmente desastroso, o próprio argumento você vê, já é em si cínico e laxista em grau elevado.
Na verdade, Hardin não desenvolve com mais precisão o espírito do bote salva-vidas. Seu argumento talvez se torne mais clara, se caso rectifique sua inadequada imagem do bote salva-vidas, considerando simplesmente as consequências, que a ajuda aos pobres poderia ter para eles próprios a longo prazo.
Do mesmo modo, o argumento de Hardin sobre a superpopulação é problemática por diversas razões:
1) O grau de participação que, no iniciou dos anos 90, tinham os asiáticos e os africanos na população mundial, estava em 71,2%, o que são 7% menos do que sua população entre 1650/1750, que é estimada em 78,4%. Isso é um claro índice de que o crescimento demográfico na África e na Ásia ainda não superou de nenhum modo os da Europa e da América. Hardin também parte de falsos pressupostos de que a tendência reprodutora permaneceria estável durante vários anos. No entanto, desde que ele em companhia de outros biólogos pela primeira vez lançou os apelos de Cassandra, diversos países reconheceram o problema e elegeram a queda da fertilidade como prioridade dos Governos. As cifras de nascimento nas últimas décadas caíram drasticamente em muitos países: no Brasil e na Indonésia a fertilidade entre 1970/1992 retrocedeu em um terço, na China e no Sudeste da Asia (Correia do Sul, Tailândia) até em mais da metade. (Banco Mundial, 1994). O facto da população mundial continuar crescendo rapidamente tem diversas razões. O número de filhos por casal,
agora como antes, se movimenta mundialmente acima do nível necessário para manter o tamanho da população e sobretudo, apesar de que o tamanho da família tenha decrescido bastante, os indivíduos que nasceram nos anos com o maior número de nascimentos, estão recém entrando na idade adulta.
2) Hardin teria despertado mais alto grau de credibilidade se tivesse posto sob a lupa crítica o estilo de vida exageradamente luxuoso da quinta parte mais privilegiada da população mundial, esboçando, então, um programa de desenvolvimento durável para os países altamente desenvolvidos, ao invés de direccionar sua atenção exclusivamente ao crescimento populacional no Sul.
3) Entrementes, esse crescimento é de facto sensivelmente refreado em algumas regiões; na África subsaariana, pela epidemia da SIDA. Como sabemos o preço humano, emocional, social e económico dessa epidemia e outras doenças [malária, tuberculose, ébola] é tão alto, que a atitude de espera passiva dos países privilegiados já não pode, de nenhuma maneira, ser justificada do ponto de vista ético. Então, você vê, a recomendação de Hardin, de se adoptar, por razões demográficas, uma extrema reserva em relação a ajuda ao desenvolvimento e combate a fome e a pobreza é laxista e chocante nessa situação do que o era antes de aparecimento súbito da epidemia do SIDA nos nossos países.
4) Do mesmo modo, a argumentação de Hardin apresenta ainda outros contornos fracos. A apreciação literalmente negativa da ajuda para o desenvolvimento e do amparo emergencial resulta objectivamente da postura de Hardin, que poderia ser designado como «ética de reserva ou restrição»: numa acção e eu me apoio mais uma vez em Kesselring, sempre deve ser omissa, quando não se tem uma visão clara de suas consequências.
Conforme Hardin, o nosso meio ambiente é um enorme sistema é complexo de elementos e processos interagindo uns com os outros, e a maioria das interacções é conhecida. Interrompendo a rede da vida por uma intervenção casual: quão alta é a probabilidade de que não ocorra nenhum dano? Ela decerto é imperceptivelmente baixa. Por isso o princípio conservador consiste em realmente não empreender nenhuma mudança sem uma prévia investigação.
Você vê, Hardin somente se orienta pela experiência de incursões no ecossistema e transfere-a despercebidamente para intervenções em sistemas sociais. Com essa postura, e eu me apoio mais uma vez em Kesselring, ele não faz jus ao facto de que não só as acções possam ter consequências que não conseguimos abranger, mas também omissões. De que modo se desenvolve um incêndio florestal se não o apagarmos, bem como o feito estufa, se não fizermos todo possível para refreá-lo?
De maneira diversa do que Singer, Hardin argumenta como se, numa omissão, as consequências negativas fossem menores peso do que no caso de uma acção. Nalgumas vezes essa diferenciação é apoiada por nossas próprias apercepções como: «Deixar morrer é melhor do que matar». Não é a mesma coisa, se eu não intervenho numa catástrofe que está brotando, uma vez que, isso não está em meu poder, ou se eu não o faço [embora o pudesse fazer], porque estou de acordo com suas consequências. Você vê, em muitas situações reais, intenções e reflexões exercem de facto uma função moralmente decisiva, mesmo que seja menosprezada numa ética utilitarista.
Em último lugar, Hardin não considera suficientemente que nós querendo ou não, já somos sempre autores em sistemas complexos. Quase que todo que fazemos tem certas consequências e efeitos colaterais que não conhecemos em todos os seus aspectos. E.., apesar das semelhanças em suas argumentações utilitarista, Singer e Hardin como viu se distinguem, no entanto, radicalmente em suas recomendações. Singer leva a sério o receio de Hardin, de que, a ajuda para o desenvolvimento poderia disparar o crescimento populacional, porém aponta com razão para o facto de os objectivos da ajuda para o desenvolvimento: melhor formação, reformas agrarias, emancipação das mulheres, poderem facilmente ser escolhidos de tal modo que os receios de Hardin fiquem sem sustento.
n/b:
¹ Filósofo australiano é o mais conhecido defensor da ajuda internacional entre os utilitaristas em sua Obra «Ética Prática» aconselho vivamente sua leitura principalmente estudantes de Ciências Sociais e Filosóficas.
² Ver; «Ética, Política e Desenvolvimento» e aconselho vivamente sua leitura, principalmente estudantes de Ciências Sociais e Filosóficas.
Manuel Bernardo Gondola
Maputo, 10 de Fevereiro 2019