Madgermanes estiveram sujeitos a trabalho escravo moderno na ex-RDA, acusa o criminalista António Frangoulis. É que sem conhecimento e consentimento terão trabalhado para pagar dívidas de Moçambique a ex-RDA.
De 22 a 24 de fevereiro a cidade de Magdeburg, aqui na Alemanha, acolheu um evento denominado "Respeito e Reconhecimento" que marcou os 40 anos da assinatura do acordo entre a então República Popular de Moçambique e a ex-República Democrática da Alemanha (RDA) que visava mandar para a ex-RDA jovens moçambicanos para estudar e trabalhar.
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DW-Madgermanes trabalharam para pagar dívidas de Moçambique a ex-RDA
Cerca de 20.000 jovens recomeçaram a vida num lugar completamente novo, fizeram planos e no final viram quase tudo ir por água abaixo quando regressaram a pátria. No plano do trabalho não chegaram receber as suas reformas e outras compensações, resultado de anos de trabalho.
Sobre o destino dado ao dinheiro descontado na folha do salário ninguém sabe bem até hoje, passados cerca de três décadas de reivindicações por parte dos chamados madgermanes.
Em Magdeburg, a DW África entrevistou o criminalista e jurista moçambicano António Frangoulis:
DW África: Durante a sua apresentação falou sobre o trabalho escravo moderno a que os madgermanes estiveram sujeitos durante o período em que trabalharam na ex-RDA. Quais são os fundamentos que o levam a concluir isso?
AF: Há um trabalho forçado, não remunerado, ou quando a renuneração é por demais incongruente com o tipo de trabalho, ou até há um outro pressuposto que é quando ultrapassa 12 horas [de trabalho], isso pode-se encontrar em vários escritos. E ademais, com base ilegal. Pelo menos estão aqui três pressupostos. Vamos recuar para 24 de fevereiro de 1979, [quando foi assinado] o famoso acordo que levou essas almas para longe da sua terra natal, da família, e até vou mais longe, para longe dos seus deuses enterrados. E o ponto número um do acordo de 1979, que é fulcral e base de partida para qualquer interpretação, é que foi escondido aos visados. Portanto, os visados só sabiam o que lhes foi dito.
DW África: Com tudo isso pode-se concluir que foi uma "trama" entre os Governos da ex-RDA e de Moçambique?
AF: Está dito. Há entrevista com o Dr. Ralf Strassburg, ele foi o responsável pela área de trabalho e salário de todos os moçambicanos, e ele diz isso na entrevista, e diz que os salários, porque o acordo preconizava a ida de trabalhadores para a antiga RDA, mas que na antiga RDA, está no acordo, para as empresas socialistas, aquela mão de obra seria por conseguinte encaminhada para as empresas que precisassem. E estes trabalhariam sob um contrato, até aqui parece estar tudo perfeito, entretanto quando foi a vez de pagar compensações, e em conversa não sei com quem, disseram inclusivamente que não sabiam que do salário que pagavam que pagavam aos trabalhadores que deviam pagar indiretamente. [suponho] que deviam ter contas, ainda não cheguei até lá, baseio-me na pesquisa que fiz, mas ouvi de pessoas autorizadas que as empresas pagavam. As empresas nem sabiam dos descontos que os trabalhadores sofriam. Portanto, primeiro eram 25% , está no acordo, mais tarde houve uma emenda e passaram a [descontar] 60%. E pelo que lhes foi dito esses 25% numa primeira fase e que mais tarde viriam a ser 60 a posterior e que mais tarde viriam a ser reduzidos para 40% ou 50% eram para enviar para Moçambique, o que lhes foi dito, e que receberiam lá.
Entretanto, chegados lá, e não é de duvidar, nunca foram pagos e nem explicados e nunca nenhuma autoridade explicou que o dinheiro deles serviu para pagar a dívida [de Moçambique a RDA]. Eles agora o dizem porque uma autoridade ligada aos vencimentos nessa altura, que é o sr. Ralf Strassburg, disse e voltou a dizer aqui [em Magdeburg] que esse dinheiro serviu para pagar a dívida, nunca chegou a sair [da ex-RDA], fez-se deduções, portanto, foi uma questão matemática...
DW África: Facto que fortalece a sua posição de que houve um trabalho escravo?
AF: Exatamente. Porque se lhes tivesse sido dito que era preciso reter parte do salário e voluntariamente eles tivessem aderido [teria sido diferente]. Até porque posso dizer mais, haveria uns que diriam que nessa base não quereriam ir, mas eles foram com a consciência de que iam trabalhar, receber os seus vencimentos e que seriam os senhores dos seus salários.
DW África: Mas as autoridades alemãs e moçambicanas têm se esquivado a falar desse assunto e até algumas delas em participar de eventos como este para ajudar a esclarecer. Diz-se que quem não deve não teme...
AF: É tão liquido e claro. Repare, o acordo é bilateral e acordam diminuir a dívida, porque quando acordam as dívidas já existiam, em pequeno volume, mas existiam. cerca de 440 trabalhadores em 1979 porque a dívida era menor e também os descontos eram de 25%. Mas a medida que as dívidas se iam avolumando, com juros mais investimentos da RDA em Moçambique também há um aumento dessa dívida e aumenta-se o volume de mão de obra que deve seguir [para a ex-RDA] até chegar ao ponto que de uma só vez tiveram de ir cerca de dez mil. E aumenta-se também a percentagem do desconto do salário individual para 60% e o discurso é sempre o mesmo, de que esse dinheiro era para receberem em Moçambique. E vou contar mais, uma vez o então Presidente Joaquim Chissano chegou a dirigir-lhes as seguintes palavras: "vocês quando chegarem a Moçambique hão-de estar mais ricos que os meus ministros" e os madgermanes ainda se lembram disso.
DW África: E foi esse mesmo Presidente que foi insultado publicamente pelos madgermanes durante uma marcha do 1º de maio há algumas décadas...
AF: Exato. E há-de ser exatamente por isso porque ele chegou a dizer-lhes isso e aqui na ex-RDA. Isso reforçou a ideia de que os madgermanes iriam encontrar o dinheiro no país em metical. Ora, isso quando o alemão, que era credor e Moçambique sabia desde o começo que esse dinheiro jamais iria cair nas mãos do trabalhador. Significa que tinham a consciência do embuste.
DW África: E nesta fase em que está tudo estagnado, apesar de anos de luta, o que seria preciso fazer, por exemplo, para uma arbitragem ou mediação internacional para que haja pelo menos um desfecho do caso?
AF: Penso que houve uma irreflexão e irracionalidade no tratamento deste problema muito cedo, porque bastava uma abertura para com os madgermanes e honestamente negociar soluções e não teriam chegado a este nível. O que acontece é que o Governo moçambicano irrefletidamente optou por uma via que é da violência, que é a vida da mordaça, amordaçar os donos do dinheiro.
DW África: Mais um facto que também o leva a dizer que há uma violação dos direitos humanos?
AF: Já o acordo em si carrega a violação de um direito porque o trabalhador tem um direito fundamental, está na Constituição, está na Organização Mundial do Trabalho e na Carta Universal dos Direitos Humanos. O trabalho ligado a remuneração é um direito fundamental e o direito fundamental é um direito natural do Homem, é um direito humano. Há uma violação dos direitos humanos logo a partida e depois esta violação gerou, por parte do Governo moçambicano, uma torrente de violações dos direitos humanos, o direito a vida. Vamos pesquisar o caso dos madgermanes e vamos ver que muitos morreram ou estão a morrer torturados, baleados e raptados. Não têm famílias, os seus filhos não têm direito a saúde, a educação e não têm direito a crescer como outras crianças e isso faz deitar lágrimas. E isso trata-se de direitos humanos, e não há como contornar isso.
DW – 05.03.2019